A construção da imagem da ativista política no início do século XX: sufrágio e representação feminina no cinema mudo

No início do século XX, grupos articulados em defesa dos direitos políticos da mulher ganhavam visibilidade pelas novas estratégias empregadas por uma parcela radical das ativistas sufragistas, conhecidas como suffragettes. Além dos tradicionais jornais que informavam e publicavam fotos impactantes das ocorrências envolvendo as associações femininas, as imagens em movimento tiveram papel importante na divulgação do retrato político feminino dessa época. A proposta que se segue explora brevemente a imagem da mulher politizada, construída e popularizada pelo cinema mudo, tendo em vista a vasta produção de obras relacionadas ao tema do sufrágio feminino.

As manifestações em defesa dos direitos femininos vinham acontecendo há muitas décadas e algumas publicações emblemáticas podem ser consideradas a origem de um movimento feminista de cunho particularmente político, conhecido como a primeira onda do feminismo. Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, publicado em 1792 pela inglesa Mary Wollstonecraft, é um exemplo. Nessa obra, a autora apresenta muitas críticas políticas e morais à sociedade patriarcal. Ela defendia a igualdade intelectual entre homens e mulheres, atribuindo a responsabilidade pela condição de inferioridade da mulher na sociedade à educação inadequada que recebiam, mostrando que ingenuidade e infantilidade não eram condições naturais do gênero feminino.

Outra publicação importante sobre esse assunto é A Sujeição das Mulheres de John Stuart Mill em co-autoria com sua esposa, Harriet Taylor Mill. Publicado em 1869, o escrito defende a igualdade de gênero, sobretudo no que diz respeito ao casamento. Entusiastas de um pensamento muito diferente do tradicional, o casal influenciou jovens instruídas que tiveram acesso às suas publicações e que compartilhavam das mesmas convicções. Um grande exemplo é Millicent Fawcett, inicialmente secretária na Sociedade Londrina pelo Sufrágio Feminino e, anos mais tarde, presidente da popular National Union of Women’s Suffrage Societies (NUWSS), essa ativista teve um papel muito importante na luta pelo sufrágio.

A NUWSS se manifestava através de ações pacíficas e meios legais, as associadas organizavam palestras explicativas e promoviam seus objetivos em discursos e publicações. Além disso, buscavam apoio político e alguma representatividade junto aos candidatos que apoiavam a causa feminina no cenário político inglês. No entanto, a ausência de resultado após anos de empenho levaram algumas dessas mulheres a questionarem as estratégias do grupo, pois acreditavam que o pacifismo era ineficiente e que os trabalhos de caridade desviavam o foco do objetivo principal. As desavenças levaram algumas dissidentes a fundarem a Women’s Social and Political Union (WSPU) que deixava de lado o tradicional trabalho filantrópico praticado por esses  grupos e dedicavam-se exclusivamente à luta pelo sufrágio (DUBOIS, 1987, p. 39).

Sob a presidência de Emmeline Pankhurst, essa associação adotou o lema: “ações, não palavras” e passou a atacar qualquer grupo político que não apoiasse sua causa. Organizavam manifestações com cartazes e palavras de ordem, mas ficaram famosas por quebrarem vitrines e se acorrentarem em espaços públicos. Embora as táticas violentas fossem mal vistas por grande parte da sociedade, por volta de 1909, a associação atingiu o auge de sua popularidade.

Na mesma época, a partir de 1908, a Pathé-Frères popularizou as newsreels ou cinejornais, um tipo de noticiário que trazia imagens documentais seguidas de intertítulo explicativo. A atração semanal, chamada Pathé News, era realizada pela British Pathé, um estúdio próprio para produção desse conteúdo situado em Londres e que era exibida junto com a programação regular de filmes nas casas de espetáculos. O noticiário apresentava desde manifestações pacíficas até mulheres sendo presas e conduzidas pela força policial, um caso particular foi o acidente que matou a ativista Emily Davison em 1913, registrado pelas câmeras da Pathé e lançado como parte de um cinejornal com o resumo da corrida do rei em Derby, onde o acidente ocorreu.

Os cinejornais acabaram popularizando a suffragette e aumentando o interesse do público por essa figura polêmica. Durante anos, comédias que exploravam a imagem da mulher politizada fizeram sucesso e diversos estúdios lançavam continuamente obras que representavam essa figura de uma forma caricata. Boa parte desses filmes abordavam o assunto com deboche, mostravam mulheres mandonas, irresponsáveis e até violentas, agindo impulsivamente e desequilibrando a sociedade tradicional. Para representar as ativistas, sobretudo ao fazerem referência às suffragettes e suas ações violentas, escolhiam atrizes mais velhas e pouco atraentes (SLOAN, 1981, p. 417).

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“A Lively Affair”, de 1912. Na cena, as ativistas jogam cartas durante uma reunião. O filme termina com as mulheres presas e seus maridos caçoando delas atrás das grades.

Diante do cenário construído pelos cinejornais e alguns filmes de ficção, as associações passaram a produzir filmes que desmistificassem a figura das ativistas. Além dos meios tradicionais de comunicação utilizados pelos defensores do grupo, o cinema foi mais uma ferramenta incentivadora dos ideais sufragistas (MCBANE, 2006, p. 191). Em 1912, 1913 e 1914, o National American Woman Suffrage Association e o Women’s Political Union produziram três melodramas e uma comédia,  dois desses melodramas são Votes for Women de 1912 e 80 Million Women Want-? de 1913. Os filmes apresentavam belas heroínas em contextos que uniam política, romantismo e interesse familiar (SLOAN, 1981, p. 412).  Através desses filmes, as organizações tentavam se aproximar de um número cada vez maior de mulheres, desfazer a imagem negativa e convencer o público da capacidade política feminina. Diferentemente do que se imaginava, essas mulheres não buscavam a anulação de seu papel social como esposas ou mães, mas acreditavam ser capazes de assumir mais uma atribuição, a atividade política, na qual eram marginalizadas.

Um dos filmes mais emblemáticos desse período foi Die Suffragette, realizado em 1913 na Alemanha. Além da obra colocar a protagonista Asta Nielsen, uma estrela mundialmente famosa no papel principal representando a sufragette Christabel Pankhurst, é um dos poucos filmes sobre o tema que mostra de forma clara e impactante as práticas das sufragistas radicais e a resposta da sociedade para suas ações.

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Nelly, em “Die Suffragette”, realizado em 1913. Na cena, a protagonista recebe alimentação forçada, após realizar greve de fome na prisão.

Mesmo que em número bem menor que as populares comédias discriminatórias, é possível encontrar filmes que não estão ligados oficialmente aos movimentos políticos, mas que se mostram críticos ao patriarcado, analisando o exagero nas ações de homens e mulheres em relação aos direitos de cada um. É o caso de filmes como Les Résultats du Féminisme (Gaumont, 1906) e Burstup Holmes’ Murder Case (Solax, 1913), ambos dirigidos por Alice Guy-Blaché, realizadora francesa. Seus filmes não promovem as convicções sufragistas abertamente, mas defendem o equilíbrio entre homens e mulheres em inúmeras situações, mostrando que o papel social feminino estava realmente no centro das discussões. Até mesmo atrizes famosas se envolveram nessa polêmica, tornando-se grandes influenciadoras de opinião e, mesmo elas, mudaram de ponto de vista ao longo do tempo a respeito do sufrágio (MUSSER, 2013,  p. 156).

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No filme “Les Résultats du Feminisme”, de 1906, os papéis sociais de homens e mulheres se invertem

Através de diversos gêneros, o cinema transmitiu a relação dos movimentos pelo sufrágio feminino com a sociedade no início do século XX. A polêmica em torno do assunto permitiu a criação de imagens caricatas, até mesmo confundindo o público quanto aos objetivos das diferentes associações sufragistas, enquadrando todas as ativistas em um mesmo grupo.

O cinema mudo estabeleceu por algum tempo um modelo feminino subversivo que procurou se igualar ao protagonismo masculino e às suas habilidades, através de obras que colocaram mulheres no papel principal, atendendo à demanda do público. De qualquer modo, é preciso lembrar que outras representações cinematográficas fizeram muito sucesso apresentando mulheres em papéis sociais tradicionais. Tudo isso nos revela reproduções diversificadas da realidade de um período em que representacoes do feminino e do masculino estavam no centro das discussões, pelo menos nos Estados Unidos e em parte da Europa.

Referências bibliográficas:
DUBOIS, Ellen Carol. Working Women, Class Relations, and Suffrage Militance: Harriot Stanton Blatch and the New York Woman Suffrage Movement, 1894-1909. The Journal of American History , Vol. 74, No. 1 (Jun., 1987), pp. 34-58.
MCBANE, Barbara. Imagining sound in the Solax films of Alice Guy Blaché: Canned Harmony (1912) and Burstop Holmes’ Murder Case (1913). Film History, Volume 18, pp. 185–195, 2006.
MUSSER, Charles. Conversions and Convergences: Sarah Bernhardt in the Era of Technological Reproducibility, 1910–1913. Film History: An International Journal, Vol. 25, No 1-2 (3013), pp. 154-174.
SLOAN, Kay. Sexual Warfare in the Silent Cinema: Comedies and Melodramas of Woman Suffragism. American Quarterly, Vol. 33, No. 4 (Autumn, 1981), pp. 412-436.
Referências filmográficas:
Les Résultats su Féminisme (Gaumont, 1906)
A Day in the Life of a Suffragette (Pathé-Frères, 1908)
For the Cause of Suffrage (Meliès, 1909)
When Women Vote (Lubin, 1909)
When Women Win (Lubin, 1909)
Will It Ever Come to This? (Lubin, 1911)
Oh! You Suffragette! (American Films, 1911)
The Reformation of the Suffragettes (Gaumont, 1911)
A Lively Affair (Vitagraph, 1912)
A Suffeagette in Spite of Himself (Edison, 1912)
Emily Davison (Suffragette) killed by King’s Horse at Derby (British Pathé, 1913)
Burstup Holmes’ Murder Case (Solax, 1913)
Die Suffragette (PAGU, 1913)
How they got the vote (Edison, 1914).
Por Camila Suzuki