Ruídos da natureza, o tempo das histórias e o sabor da vida

de tantos instantes
para mim lembrança
as flores de cerejeira.
Matsuo Bashô

Em Sabor da vida (An, 113min, 2015), de Naomi Kawase, há o tempo próprio da floração das cerejeiras. Longa-metragem cuja estrutura narrativa talvez seja o de acesso mais fácil ao público na fimografia da cineasta, o filme não aposta, contudo, na agilidade dos gestos. É como se a obra se desenvolvesse a partir do que expressa Tokue, protagonista do filme sobre o mundo: “Nós viemos para vê-lo e ouvi-lo. Já que é assim, não precisamos ser alguém”. À primeira vista, a narrativa se desenvolve sem grandes pretensões: acompanha a rotina de um homem que vende dorayakis – panqueca doce recheada com uma pasta de feijões vermelhos -, os dilemas de uma estudante pobre, a persistência de uma idosa que sobreviveu à doença. No entanto, é por meio desses episódios corriqueiros que Kawase constrói aprendizagens preciosas à existência.

Considerando-se a história recente japonesa, Tokue é uma personagem emblemática. Senhora de 76 anos, cujo corpo carrega marcas e cicatrizes do período em que esteve contaminada pela hanseníase, Tokue almeja trabalhar na venda de doraki sem ambições maiores que a oportunidade de circular – e conviver – livremente pelos espaços da cidade. Por décadas, os portadores de hanseníase no Japão foram submetidos a um regime de isolamento no país. Em 2001, o governo japonês, representado pelo primeiro ministro Junichiro Koizumi, foi condenado a pagar indenizações aos ex-portadores de hanseníase no país. A decisão judicial baseou-se na prorrogação das determinações da Lei de Prevenção da Lepra, de 1953, e revogada apenas em 1996. Desde 1960, já havia tratamento disponível por meio de medicamentos que possibilitavam que os contaminados pela doença não fossem mantidos isolados. A decisão foi tomada considerando que a ação do governo japonês violava os direitos humanos dessas pessoas.

Apesar do passado tortuoso, Tokue não se lamenta ou entristece. Há uma comunhão serena com a natureza que norteia sentidos possíveis ao cotidiano. É necessário escutar as histórias que nos contam os feijões, ouvir os passarinhos enjaulados que pedem por liberdade, obedecer ao vento que pede que se escreva ao chefe, entender a lua cheia quando pede que se prossiga. Em diversas passagens, Tokue parece demonstrar uma alegria pertencente somente às crianças. Ou, talvez, aos idosos, aqueles que já perderam muito e, mediante às perdas e à morte, reaprenderam a nascer diariamente atentos a belezas pequenas, ainda não descobertas. Cozinhar uma pasta de feijão não poderá nunca ser apenas cozinhar uma pasta de feijão, como seria um hábito próximo ao de adquirí-la pronta a granel no mercado. Aquilo que é produzido, as escolhas de um percurso no universo comum devem refletir uma perspectiva frente ao que é vivo, aquilo que se sente. Não se poderá nunca cozinhar dorayakis sem a aptidão para os doces, porque não seria sincero, ignorar-se-iam as vozes internas, que ressoam como as da natureza. Próxima à morte e ao sofrimento, Tokue opta por se deter no movimento das folhagens e das flores da cerejeira, por ser deter na árvore que simboliza a renovação e a esperança.

Se a força das mãos de Tokue não é suficiente para erguer as panelas, a potência  da escuta e do olhar são fortes o suficientes para questionar a opressão e a injustiça. Sentaro, preparador das panquecas dos dorayakis, também é condenado por um passado já inexistente. Encontrar Tokue não é somente reaprender a cozinhar pasta de feijão: é entender a fragilidade da vida e, por isso, não permitir que se esvaiam dos dias a beleza, a partilha e a coragem.

Referências:
Governo japonês aceita indenizar ex-leprosos. BBC Brasil. 23 de maio de 2001. Acesso em 12 de setembro de 2016.
Cultura japonesa. Acesso em 12 de setembro de 2016.
por Laís Ferreira Oliveira