Luzes da cidade onde (não) se envelhece

“Belo Horizonte
A cidade em que se nasce não é sempre a cidade em que se nasce. Às vezes é preciso partir, com os olhos descalços e o coração ignorado, em busca de nascimento – os lugares são tantos e é tão difícil reconhecer-se num mapa quanto num espelho. Alguma cidade se investe num nascimento, entre a mineração e o mar. Alguma cidade se elege entre tantas para a vida, e nem sempre a vida de regresso. As cidades também foram inventadas e têm seu destino. As ruas cruzadas como as linhas das mãos”.
Ana Martins Marques em A vida submarina.

Difícil determinar onde começa – e encerra-se – uma cidade. E, talvez pela dissemelhança, algo próximo aconteça ao gesto da escrita. Próximo a uma janela onde me acompanha somente a visão da Baía de Guanabara, os carros amontoados na paisagem que habito como nômade e a imagem de um Cristo que, às vezes, é redentor mesmo da vida deslocada, perfaço o percurso para dizer de um filme em que Belo Horizonte seja um personagem tão forte. A escolha por um texto conciso, analítico, objetivo, poderiam, de fato, conduzir-me a um lugar em que o fato de ser belo-horizontina não importasse tanto, não se revelasse. No limite da busca, porém, tornam-se indeléveis as marcas nos olhos que já a traziam antes, já a percebiam junto e com o cinema. E, contando com a liberdade que um filme talvez renasça, é possível a escolha de uma memória e lembranças como ferramentas.

Em A cidade onde envelheço, Marília Rocha conduz-nos a um passeio pelo tempo, pela cidade e pela maturidade em que os elementos cotidianos estão imbricados, orgânicos, não se dissolvem ou sobrevivem dissociados. Há um convite próximo àquele que, arriscamos dizer, lembra-nos das aberturas e narrativas de Abbas Kiarostami sobre Teerã. Se o diretor iraniano, ao refletir sobre Gosto de cereja, declara que “O filme é uma espécie de geografia da minha vida interior” (BERNARDET, 2004, p.95) e Jean-Claude Bernardet nos lembra que a compreensão dos filmes do cineasta se dá “na poética do movimento e dos sistemas em constante reorganização, atualmente alimentada em nós pela teoria da complexidade” (BERNARDET, 2004, p.92), o longa-metragem vencedor do 49º Festival de Brasília do cinema brasileiro nos pede atenções semelhantes. Não é a primeira vez que Rocha desenvolve filmes cuidadosos nas abordagens dos espaços e locais: Acácio se desloca entre o Brasil e Angola, A falta que me faz se detém em uma juventude de mulheres íntima a Serra do Espinhaço, Aboio reconhece quando os homens e a cantiga não têm muitas fronteiras entre si. Entretanto, neste novo filme, a cidade parece existir e persistir apesar do homens – ou, quiçá, podendo acolhê-los. Se Francisca chega a Belo Horizonte, saindo de Lisboa e, a partir de um cotidiano que não se mostra com previsões ou com possibilidades maiores que os dias, há tramas nas ruas, nas lojas e nos outros que independem de uma ligação com a vida individual. O tempo das paisagens, dos encontros fortuitos, da cultura espontânea que parece incentivar o conforto para se pedir cigarros aos desconhecidos é a conclusão da única possibilidade do passeio. São apenas os detalhes e efemeridades capazes de seguir juntos aos homens. Na direção de Marília, cada plano é importante como cada dia tem sua densidade ampliada quando visto em perspectiva, quando o que é efêmero encontra significado em uma narrativa possível. Esse gesto é acompanhado da direção de fotografia de Ivo Lopes Araújo, em que os planos revelam um detalhe do rosto contornado por luz ao acordar e acender um cigarro, as pintas de dois torsos que se encontram sem a precisão de nomear o relacionamento que os definem, o equilíbrio – apenas por ser jogo – de pés que caminham em um meio-fio no alto do Carlos Prates. Francisca se apresenta mais sóbria que a amiga que a visita em busca do futuro, Teresa; elucubramos, porém, que essa lucidez tenha se revelado apenas por já ter vivido o encantamento, a partilha e a fraternidade tão próprias a Belo Horizonte.

Ao chegar para encontrar a amiga, Teresa parece viver e usar como ferramenta a pretensão que diz: “Eu não vou envelhecer”. Difícil encontrar outra cidade no Brasil em que seja mesmo possível a tentativa de não envelhecer como Belo Horizonte. Parece-nos que os lugares em que a fraternidade e o comum são mais acessíveis, menores, é possível, como Tereza, testar rapé em um boteco sujo com um desconhecido de camisa colorida. É possível acender esse lugar da rebeldia com o sistema, com o capital, ir a um show de punk rock, subir no palco e lembrar que nada está definido. Apesar da idade, apesar de nossas origens, as casas alugadas, as casas cujos azulejos são simétricos e de estéticas estranhas possibilitam que sejamos uma versão mais livre – e bela – de nós. Guardemos a ternura e a aventura possível de dançarmos fado nesta sala como os palcos mais nobres, a travessura de pegar bonés emprestados para imitar raps, a espontaneidade de tocar percussão na parede com colheres quando a realidade for dura. A sororidade do encontro entre duas amigas, a benção dos gauches e anjos-tortos cantada por Jards Macalé, a possibilidade de se inventar o mar no Parque Municipal não se encerra em Belo Horizonte ou em Lisboa: o que é necessário é uma outra forma de viver, um viver cujas formas não se dissociem do lado esquerdo do peito.

Porque, afinal, a complexidade das coisas simples é talvez o maior desafio dos homens. Como bem ensinou Paulo Mendes Campos, “Vinte séculos de cristianismo não extinguiram em nós o gosto ácido do desprendimento, o amor impensado pelas coisas do mundo: sol, frutos, fêmea subjugada sobre a relva”¹. Se envelheceremos ou não em Belo Horizonte, talvez não seja possível dizer. No entanto, meus caros amigos, que bom carregar conosco essas imagens, essas histórias, a tranquilidade que nossos companheiros se reúnem ainda em casas com quintal e árvores baixas para delinearem o acúmulo do tempo. O lugar em que amadurecemos talvez seja transitório, talvez seja fixo ao abrigar em si corpos, afetos e vivências que não cessem nunca a incerteza – e o assombro – perante ao que é vivo. E seguimos como esses reflexos nos carros daqueles que, com saudade dos que partiram, apenas podem prosseguir.

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Fonte: www.mariliarocha.com

Nota
¹ Trecho de Carta a Otto, ou um Coração em Agosto de Paulo Mendes Campos
Referências Bibliográficas:
BERNADET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami.  São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
Por Laís Ferreira Oliveira