Magia reprimida e a gênese da obscuridão

Depois de oito filmes com grande sucesso nas bilheterias mundiais, parques temáticos nos EUA e uma peça de teatro recém estreada no West End, a franquia de J. K. Rowling inicia uma nova etapa com o lançamento de Animais Fantásticos e Onde Habitam (2016), o primeiro de uma série de cinco longas metragens. Seguindo a tendência de outras grandes marcas do entretenimento¹, esses novos produtos não acompanham os mesmos protagonistas que os anteriores, mas adaptam os universos fantasiosos e expandem-no – o jornalista Ben Child define esse tipo de adaptação como “super spinoff”, em que personagens coadjuvantes meramente citados na história principal são colocados como figuras centrais das novas narrativas, sejam elas sequels ou prequels. Assim, a premissa dessa nova saga é acompanhar como Newt Scamander escreveu o livro Animais Fantáticos e Onde Habitam, material didático usado pelos alunos de Hogwarts sete décadas depois². Outra característica importante da narrativa é a proposta de imbricamentos do mundo bruxo com a história mundial, o que dialoga também com os filmes adaptados de HQs X-Men: Primeira Classe (2011), em que os mutantes estão envolvidos na crise dos mísseis, Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), cujo protagonista é um super-soldado da segunda guerra mundial e Watchmen: O Filme (2009), que em determinado momento revela um de seus personagens como o assassino de presidente Kennedy. Animais Fantásticos inicia sua história na Nova Iorque de 1926, período entreguerras e pré-crise de 29, e incorpora as questões sócio-políticas da época à trama. Nesse gesto, são criados paralelos e atravessamentos entre o universo dos não-bruxos e o dos bruxos, tocando em temas como a ascensão do fascismo, as lutas por direitos civis nos EUA e problemáticas de ordem ecológica. No entanto, por mais interessantes que sejam tais paralelos, principalmente se formos identificar permanências de certas questões na atualidade, o filme carece de maior coerência em termos de representatividade e representação, dobrando-se sobre as contradições e limitações do nosso planeta de trouxas. O que fica como potência dessa obra é o prazer visual de observar os adoráveis monstrinhos cuidadosamente confeccionados em computação gráfica.

Billywig, espécie de marimbondo-beija-flor mágico, em diversos momentos surge voando no quadro e literalmente dirige-se ao espectador, saltando aos olhos com o efeito de 3D estereoscópico e evidenciando o regime de atrações³ tão caro a esta obra. Uma das subtramas constitui-se em uma aventura pela cidade para buscar animais fugidos, basicamente uma digressão para dar a ver estes bichos e conferir mais ação à narrativa, sem maiores implicações na trama principal envolvendo o grande monstro da série (como veremos adiante). Há sequências inteiras dedicadas a explorar a riqueza de detalhes das criaturas fantásticas criadas para o filme e sua complexidade de movimentos, com planos em que a câmera chega a abandonar os protagonistas humanos (passamos a ouvi-los em off) para passear pelos bichos. O convite a um prazer visual estende-se também à apreciação da pulsante e cinzenta Nova Iorque do início do século XX, que mais uma vez é destruída no cinema, agora pela magia. O comportamento da câmera no filme segue a direção dos longas anteriores protagonizados por Harry Potter: ela possui um status mágico, muitas vezes flutuando em movimentos “impossíveis” (ou de execução extremamente complexa) se utilizadas as estruturas de maquinária do nosso mundo, outras vezes atravessando paredes junto com os personagens.

Nesse sentido, é fundamental o personagem de Jacob Kowalski (interpretado por Dan Fogler), um não-maj (versão norte-americana de trouxa, ou seres humanos não-bruxos) que se deslumbra com tudo o que seus olhos descobrem neste universo oculto. A primeira função narrativa de Kowalski relaciona-se à expectativa de identificação do espectador (igualmente não-maj) que poderá compartilhar de seu encantamento com o universo fantasioso. A tradicional estrutura de planos ponto-de-vista é recorrente: vemos Jacob olhando para fora de quadro, a câmera revela alguns elementos fantásticos e, em seguida, voltamos ao rosto de Jacob reagindo maravilhado. Como aponta Goldberg: “Para Harry [Potter], cada nova descoberta era algo do qual ele fazia parte. Com Jacob, nós compartilhamos seu maravilhamento, (…) mas é um sentimento agridoce, pois também somos forasteiros. Somos gratos por estar acompanhando a jornada, mas sabemos que ela terá um fim.” Contudo, diferente de Jacob, o espectador não é obliviado (tem sua memória mágica apagada, semelhante ao recurso usado em MIB – Homens de Preto, de 1997), e isso pode ser um problema se considerarmos que grande parte do público já conhece este mundo mágico graças aos outros filmes e, portanto, o excesso de deslumbramento muitas vezes torna-se enfadonho para os fãs mais antigos.

Newt (Eddie Redmayne) e Jacob (Dan Fogler)

Newt (Eddie Redmayne) e Jacob (Dan Fogler)

Isso nos leva à segunda função narrativa de Kowalski. Este personagem possui uma importância vital na temática mais ampla explorada por Rowling pois, para Jacob, “bruxos e bruxas não devem ser temidos. De todas as criaturas estranhas que Newt carrega em sua mala, Jacob não olha para elas com revulsão ou medo. Ele pode ficar chocado, mas não demonstra nojo ou repulsa.” (Goldberg) Ou seja, pensando nos conflitos entre trouxas e bruxos e nos discursos de ódio surgidos nesse contexto, o personagem em questão possui um comportamento exemplar, devido à sua fácil aceitação das diferenças e, melhor ainda, seu fascínio e desejo de fazer parte daquele mundo. Em se tratando dos aspectos mais especificamente ecológicos, o problema invade também a comunidade bruxa: os seres humanos são tidos como nocivos para a fauna encantada, especialmente os bruxos norte-americanos, que possuem uma política de extermínio de beasts (erroneamente traduzidos para o português como “animais”, seriam melhor entendidos como “feras” ou “bestas”, explicitando seus atributos selvagens ou assustadores). Nesse âmbito, o novo herói Newt Scamander surge como uma mistura de Noé com Darwin e mestre Pokémon, que carrega dezenas de animais com risco de extinção em uma mala enfeitiçada – interpretado pelo mais novo queridinho de Hollywood, Eddie Redmayne, escalado para garantir o carisma de protagonistas que representam tudo aquilo que os grandes produtores consideram estranho ou anormal, como uma mulher trans, um cientista portador de doença degenerativa e, agora, um bruxo nerd que faz dança do acasalamento com uma rinoceronte mágica. “Eu costumo irritar as pessoas,” diz Newt, em determinado momento do filme, mas só consigo identificar essa possível irritação pelo excesso de fofura, o que torna o personagem plano4 e pouco instigante para conduzir outros quatro longas metragens. Entretanto, voltando a pensar na temática mais ampla da nova saga, a forma carinhosa com que ele lida com os animais fantásticos e sua atitude conciliadora em relação aos trouxas dão sentido ao seu protagonismo. Ele defende fervorosamente seu zoológico pessoal com o intuito de pesquisar as criaturas que nele habitam para protegê-las dos humanos – curioso notar a ingenuidade dos animais, que mesmo ameaçadas pela nossa espécie, ajudam-nos quando convocados, diferente de filmes como Fim dos Tempos (2008), também situado em Nova Iorque e arredores, em que a natureza se rebela contra a humanidade.

Os Estados Unidos são retratados como um local retrógrado e inóspito. De uma maneira geral, as áreas urbanas são super povoadas, vê-se uma efervescência de ações e movimentos, as pessoas estão sempre ocupadas, retrato de uma fase do capitalismo tão próspero e eufórico quanto opressor. Diferente da representação de uma terra de oportunidades e liberdades, a América é povoada por seres mesquinhos e autoritários: até mesmo a protagonista Tina Goldstein (Katherine Waterston) coloca em risco a própria vida e a do mocinho em uma tentativa frustrada de auto-promoção. O MACUSA (sigla para Magical Congress of the United States of America, ou Congresso Mágico dos Estados Unidos da América) revela-se uma instituição controvertida pois, apesar de governada por uma mulher negra (Seraphina Picquery, interpretada por Carmen Ejogo) – o que, pelo senso comum, seria associado a ideias progressistas – possui leis que proíbem o casamento entre bruxos e não-majs, defendem a pena de morte, além da acima citada política de extermínio de beasts. Isto é, independente de lideranças, existe toda uma estrutura legislativa e de poderes que se sobrepõe à sociedade e contribui para injustiças e violências. Essas analogias se refletem também no mundo não-maj, caracterizado por descaradas conexões entre a política e a mídia hegemônica: o filho do dono de um grande jornal impresso é senador e tido como possível candidato à presidência do país.

No meio de tantos agentes “malignos” desse universo distópico, fica difícil identificar um vilão marcante no filme. Seriam as leis, a repressão, os abusos? O filme inicia com notícias de ataques empreendidos por Grinewald, um bruxo das trevas, mas sua verdadeira identidade só é revelada no final da projeção e, mesmo assim, ele não fora o responsável pelo caos e destruição ocorridos ao longo da história. Mais complexo que os outros filmes da saga, baseados na rasa dicotomia de bons vs. maus (com alguns agentes infiltrados aqui e acolá que, no fim das contas, revelam-se bons ou maus, como a trajetória de Snape), Animais Fantásticos nos apresenta uma multiplicidade de discursos confusos enunciados por personagens contraditórios. Vemos uma sociedade que se auto-aniquila movida por ideias vazias. Uma seita anti-bruxaria revela-se composta por bruxos. Toda a fala de Graves/Grinewald (interpretado inicialmente por Colin Farrell e depois por Johnny Depp, uma vez revelada sua verdadeira identidade) defende os bruxos em relação aos não-majs e, de fato, as leis construídas pelos bruxos para se protegerem acabam se tornando nocivas a eles próprios. Contudo, ele mistura a suposta defesa de um grupo oprimido com ideias proto-fascistas privilegiando nós em detrimento d’eles, convocando o conflito. Os bruxos aqui parecem mais uma minoria étnica do que nos outros filmes, existe uma preocupação maior com o equilíbrio de forças entre trouxas e bruxos, enquanto na saga Harry Potter isso não era uma grande questão – os bruxos eram retratados como claramente mais poderosos e os discursos/movimentos/atitudes nazistas advinham de uma linhagem de bruxos “maus”, que desprezavam os trouxas e os bruxos mestiços, aniquilando-os sem grandes dificuldades. Em Animais Fantásticos, situado em um momento histórico anterior, essas forças destruidoras e preconceituosas estão apenas começando a ganhar força.

Se fôssemos corporificar o monstro da nova saga, este seria o Obscurus, uma espécie de parasita que se forma quando um jovem bruxo reprime suas habilidades mágicas. Se, ao invés de aprender a controlar seus poderes e canalizá-los em feitiços, uma criança bruxa suprime sua magia devido a abusos físicos ou psicológicos, essa energia volta-se contra ela e devora-lhe internamente, desenvolvendo uma força maléfica que explode com a fúria da portadora. Credence Barebone (Ezra Miller) é o jovem obscurial do filme, que sofre todo tipo de agressões e seu comportamento vingativo e disruptivo é o principal causador de mortes ao longo da história. Sua revolta é tratada pelos mocinhos como explosão patológica mas, para o Estado, o mais correto é executá-lo. Esse monstro se assemelha às fusion figures (ou figuras de fusão) definidas por Nöel Carroll a respeito dos filmes de horror: são criaturas que transgridem distinções categóricas de interior/exterior, morto/vivo, máquina/carne e assim por diante, tendo como marca central uma composição de forças conflitantes em um mesmo indivíduo (a maioria das personagens em histórias de possessões podem ser consideradas figuras de fusão). Portanto, temos aqui a construção de uma mitologia em que o espírito maligno mais perigoso que existe é gerado a partir do corpo de crianças que precisam esconder suas próprias naturezas por auto-defesa em um mundo hostil. Situando o lançamento deste filme no ano em que preocupantes forças conservadoras consolidam-se em nosso mundinho trouxa com amplo apoio popular, podemos considerar esta narrativa no mínimo relevante no atual cenário político. Porém, é igualmente frustrante perceber como, apesar disso, os personagens LGBT, negros e membros de outras minorias são invisibilizados na franquia de Rowling.

Desde Dumbledore, que só anos depois de terminada a saga HP foi revelado pela autora como gay, sem nenhuma menção mais explícita no livro a esse dado do personagem, todas as relações entre os jovens bruxos de Hogwarts são heterossexuais. Em todo o rico universo composto por centenas de criaturas absurdas, a autora não construiu nenhum personagem relevante sequer com alguma identidade de gênero ou orientação sexual não-normativa. Se essa é uma escolha deliberada com o intuito de trazer para a franquia possíveis leitores/espectadores que eventualmente se incomodariam com personagens estranhos, em 2016 não dá mais para engolir um filme com dois casais de protagonistas brancos heterossexuais com romances extremamente forçados e mal desenvolvidos. Não nessa franquia e muito menos com esse vilão. Sem contar que justamente o que há de mais próximo de uma relação homoafetiva em Animais Fantásticos se dá entre Graves/Grindewald (o bruxo das trevas) e o jovem assassino queer dominado pelo obscurus, em becos mal-iluminados e com consequências nefastas para toda a humanidade. Sobre representatividade étnica, se a narrativa se passasse na Europa dos anos 1920, até poderíamos relevar a quase ausência de personagens negras nos mundos bruxo e não-maj. Porém, a ambientação é feita nos Estados Unidos e, além da presidenta, de uma enfermeira-carrasca, e da breve passagem por uma casa de jazz onde vemos uma gnoma cantora com traços que remetem a uma mulher negra (ainda assim, não humana), o suposto apartheid bruxo é visto apenas pelo lado branco. O que é extremamente inverossímil, já que a presidenta é negra, o que apontaria para uma sociedade bruxa não (tão) preconceituosa e aberta à participação de afro-descendentes. Concluo, então, que essa representação problemática deriva, sim, de um casting despreocupado com certas questões que deveriam ser melhor observadas em uma produção supostamente progressista.

Para amparar essa reflexão, trago algumas ideias de Jean Claude Carrière: “Cada estágio na vida do cinema impôs sua própria moda à era histórica que retratava.” Segundo o autor, ao assistir um filme da década de 1950 sobre os anos 1920, questões e estéticas das duas décadas se confundem, o presente modifica o passado construído, fundindo diversos tempos na mesma imagem. Na Nova Iorque de 1926 construída noventa anos depois, vemos claramente uma vontade de falar sobre angústias contemporâneas, mas é ridículo constatar que, mesmo em um filme produzido por um sistema de estúdios não mais regulado pelo Código Hays, o conservadorismo ainda impera e encareta a criação artística.

Pickett, o Tronquilho de Newt

Pickett, o Tronquilho de Newt

Notas:
1 Como nas franquias Matrix, Star Wars, e nos contos de fadas das princesas Disney.
2 Uma edição “para trouxas” deste livro já fora lançado comercialmente (editado no Brasil pela Rocco), juntamente com Quadribol Através dos Séculos, outro livro do universo ficcional.
3 Regime de atrações: conceito resgatado por Tom Gunning para definir o tipo de imagem cinematográfica com um endereçamento direto ao observador, o que provoca uma perturbação no regime narrativo (em que o olhar está associado ao do voyeur, à imersão confortável em um mundo diegético). Segundo Gunning, “A estética da atração dirige-se diretamente ao público e, como nos primeiros filmes de trem, exagera esse confronto numa experiência de assalto. Mais que um envolvimento com a ação narrativa ou uma empatia com a psicologia de personagens, o cinema de atrações exige uma certeza inteiramente consciente da imagem cinematográfica engajando a curiosidade do espectador. O espectador não se perde num mundo de ficção ou no seu drama, mas permanece consciente da ação de olhar, da excitação da curiosidade e de sua satisfação. (…) Este cinema dirige-se ao espectador e mantém sua atenção, enfatizando o ato da exibição. Satisfazendo essa curiosidade, ele distribui uma dose geralmente breve de prazer escópico.” (GUNNING, 1995, p. 55) O autor traz o conceito para o cinema contemporâneo, afirmando que “o cinema de atrações persiste no cinema posterior, apesar de raramente ele dominar o formato do longa-metragem num sentido amplo. Ele fornece uma corrente subterrânea que flui sob a narrativa lógica e o realismo diegético, produzindo aqueles momentos de dépaysement cinematográfico apreciados pelos surrealistas.” (ibidem, p. 56)
Pensando nas estruturas narrativas clássicas, são considerados “redondos”, “esféricos” ou complexos os personagens que apresentam não apenas qualidades, mas também fraquezas e defeitos e que se transformam ao longo da história. Os personagens “planos” possuem um desenvolvimento psicológico mais raso, constituídos de uma única qualidade ou ideia, sem grandes mudanças e que apresentam condutas repetitivas.
Referências bibliográficas:
CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 115-116.
CARROLL, Noël. The Philosophy of Horror or Paradoxes of the Heart. Nova Iorque: Routledge, 1990. p. 41 a 44.
GUNNING, Tom. Uma estética do espanto: o cinema das origens e o espectador incrédulo. In. Imagens. Unicamp. número 5, ago/dez, 1995. 
por Vitor Medeiros