“Antes do fim”, dancemos ao vento

A imensa máquina da medicina (hospitais, laboratórios, farmácias, médicos, inseguro saúde, aparelhos de diagnósticos por imagem etc, e mais cosméticos, alimentação…) produz a nossa longevidade. Somos um produto dessa indústria. Produto e fonte de riqueza. A máquina precisa manter nossa longevidade para se expandir e lucrar. A preocupação da máquina capitalista não é nos manter vivos com qualidade de vida, mas manter em nós a bio. À máquina não interessa o ser vivo, mas a bio de que ele é portador. Um primeiro passo para resistir à máquina que nos alienou de nossos corpos é se recusar a técnicas de prorrogação da bio em nós. Passo mais radical para eliminar a fonte de riqueza da máquina: o suicídio consciente e lúcido como forma de resistência extrema e de reapropriação de nossos corpos.”
 Jean-Claude Bernardet

Com os braços abertos na extensão de um banco de praça, o personagem de Bernardet em Antes do fim – Work in progress (2017), de Cristiano Burlan, retoma e diz essa passagem escrita pelo ensaísta. Com a serenidade de quem, ao pensar e escolher performar a própria morte no instante em que a vida ainda é prestígio, o protagonista aborda a possibilidade da morte com a maior consciência e liberdade possível ao sujeito em vida. E a única estratégia capaz de evitar a decadência. A libertação pela morte não é, porém, a opção de sua companheira, interpretada por Helena Ignez no filme. Em conversas sobre a possibilidade de um suicídio coletivo e questionando a opinião da companheira sobre a decisão, o diálogo acontece com a mesma serenidade com a qual ambos, vestidos como quem vai à festa, passeiam, vão à drogaria comprar viagra.  Porém, ao ler um livro sobre o amor em que o autor afirma que definharia caso sua parceira morresse, a personagem de Ignez afirma: “pois eu não”. A personagem continuaria vivendo, essa  sim seria a maravilha pela liberdade.

A partir da perspectiva de Bernardet, podemos pensar que escolher o suicídio talvez seja uma das opções mais próximas ao cinema na resolução da vida. Lembremos, por exemplo, o que diz André Bazin sobre a natureza do cinema e da fotografia, segundo o qual caberia à imagem reter pequenos rastros do real, mumificar aquilo que é vivo, embalsamar o tempo. Ali, próximo ao desejo da morte, a imagem é a certeza das resoluções mais simples. Em um diálogo com uma imagem no espelho, Bernardet diz ao seu reflexo que os problemas e questões deles são de solução imediata: basta que se apague a luz, que a existência reflexa se encerraria. No limite, aqui se diz da vida perpetuada pelo cinema: a representação da vida, a perfomance da morte importam pouco, complexificam menos. Diante da imagem, há apenas um único estamento:  há vida enquanto há luz, há nada quando a projeção se encerra. Também é essa a dinâmica do tempo: há apenas um imenso presente no contato com a imagem, o passado não se impera e o futuro não se materializa. Retomemos o que diz Didi-Huberman em Diante do tempo: anacronismo e história das imagens:

Diante de uma imagem – não importa   quão   antiga   –,   o   presente   não   cessa   jamais   de   se   reconfigurar, mesmo que o desapossamento do olhar tenha completamente cedido lugar ao hábito enfadado do “especialista”. Diante de uma imagem – não importa quão recente, quão contemporânea ela seja –, o passado também não cessa jamais de se reconfigurar, pois esta imagem não se torna pensável senão em uma construção da memória, chegando ao ponto de uma obsessão. Diante de uma imagem, temos, enfim, de reconhecer humildemente: provavelmente, ela sobreviverá a nós, diante dela, nós somos o elemento frágil, o elemento passageiro, e, diante de nós, ela é o elemento do futuro, o elemento da duração. Freqüentemente, a imagem tem mais memória e mais porvir do que o ente que a olha. (DIDI-HUBERMAN, 2000, p.10)

Antes de um filme sobre as fronteiras entre a morte e a vida, a obra de Burlan pensa nos limites entre a vida e a imagem. Essa talvez seja a consciência do cinema como a liberdade possível ao homem: é pelo cinema que se imagina o mundo, mantém-se alguma fantasia. Logo na sequência inicial, Bernardet e Ignez aparecem comentando a imagem de um casal que passeia na praia, elucubrando sobre as possibilidades de conversa entre o casal – e o que diriam na mesma situação. Pouco tempo depois, revela-se que, na verdade, o que assistiam não era a visão de uma praia, mas uma projeção de cinema de uma cena realizada próxima ao mar.

O cinema como tensionador do tempo não aparece apenas no registro da memória, mas nas imagens que guardam, mesmo que na ficção, as lascas da vida que se foi. Ignez se olha no espelho, maquia, coloca uma máscara de plástico que possibilitaria, ainda que por poucos instantes, a presença de outra pele. No entanto, confessa: “injurei a beleza”. Em seguida, insere-se um fragmento de Copacabana, Mon Amour (1970) em que a juventude ainda a protegia do tempo quando a personagem de Ignez gritava próxima a um fantasma no passeio: “pavor da velhice!”. O que se pensa do envelhecimento, também, modifica-se ao longo da vida. A personagem de Ignez retoma a obra A sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han. O livro questionaria o excesso de positividade do mundo contemporâneo, em que há uma compulsão por se trabalhar o tempo todo, pensar o tempo todo. Essa dinâmica comprometeria o ócio, essencial à criação. Na velhice, porém, haveria outra escolha temporal possível: as coisas já gastas e perdidas, a pouca espera possibilitaram inventar um percurso e cotidiano em que fosse possível brincar e passear no cemitério.

Em uma das sequências finais do filme, Bernardet e Helena Ignez aparecem caminhando em uma montanha, com os abraços abertos. Os gestos dos personagens e o movimento desses corpos se assemelham a uma das cenas mais conhecidas de O sétimo selo (1957), de Ingmar Bergman. No filme, após diversas sequências de encontros e tentativas de escape da morte, dentre as quais um longo jogo de xadrez, os personagens dançam uma espécie de marcha fúnebre, e contorcem os corpos perante a morte inevitável. Na obra de Burlan, porém, a morte vista como escolha não constrange ou oprime: é a liberdade e a entrega consciente ao vento. E, na proximidade dela, escolhe-se cortar bem os cabelos, dançar sereno com as imagens, celebrar o cinema.

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Cena de “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman, em que a dança com a morte é um fardo inevitável

Referência bibliográfica:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps – Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris:Minuit, 2000.
por Laís Ferreira Oliveira