É preciso contestar: a arrogância de “Os Incontestáveis”

Até onde podemos ver o cinema a partir de uma discussão de gênero e respeito às mulheres? É possível nos defendermos por detrás da narrativa do gênero cinematográfico, do argumento como elementos que justifiquem a representação do outro de forma opressora? Ou, no limite, essa atitude se situaria no mesmo lugar em que estiveram as representações históricas e misóginas das mulheres e do trato racista com os negros? Em uma discussão ampliada, seria possível aceitarmos o uso de black faces¹ em filmes que pretendem representar o passado e a exploração dessas pessoas?

Não, não seria aceitável. A ficção e o cinema não são maiores que o contexto em que são lançados: não é possível ao filme ignorar que ele está no mundo. Em Os Incontestáveis (2016), Alexandre Serafini aposta em um road movie, em que a história de uma viagem de exploração, diversão, prazer e conquista de um território passa por um claro lugar misógino e machista. Há quem argumente: são os personagens que são machistas, o gênero cinematográfico em que o filme se baseia é tradicionalmente marcado por esse posicionamento dos homens. Para aqueles personagens, conquistar terras, bebida e mulheres está no mesmo patamar. Nenhuma dessas questões, porém, desvalida um fato: é uma escolha consciente representar as mulheres dessa forma. É uma opção colocar mulheres submissas a um gângster em uma espécie de harém, forçá-las a obedecer o outro que a combate e conquista, optar por um personagem que, quando o revólver não atira e não consegue suicidar-se, diz “buceta” para sentir prazer frente às tentativas frustradas da morte. Escolher representar o outro é ter consciência das formas possíveis: escolher colocar o prazer dos personagens masculinos antes de um lugar de respeito às mulheres é um gesto político. Ainda que, de forma esguia, o filme reivindique para si o humor e o escárnio com armaduras maiores.

O descompromisso e a prepotência do filme ao considerar-se maior que o tempo presente, quando não é mais aceitável – ao cinema, à publicidade, à literatura e a à vida – destinar às mulheres o lugar de satisfazer o prazer masculino, encontra-se com a arrogância que conduz a um desmantelamento da narrativa. A jornada de carro realizada por Belmont e Maurício, as pessoas que encontram no caminho, o terreno do Estado da União de Jeová, o contato com as pessoas na estrada para que elas passem a integrar a travessia, não se sustentam ao longo do filme. A União de Jeová como território é um fato histórico. Udelino Alves de Matos saiu da Bahia para ocupar os territórios e vales na fronteira entre Minas Gerais e Espírito Santo. Com a Bíblia como instrumento, Matos propunha uma comunhão entre lavradores, fazendeiros e jagunços em torno de sua própria figura, assim como a redistribuição dos territórios e o não pagamento impostos. Distantes de uma organização federal do Estado, em um lugar em que as leis pareciam não serem capazes de atingir, a União teve um curto período de existência, não alcançando as proporções de comunidades semelhantes, como Canudos. Na obra de Serafini, esse fator histórico é apropriado para se tornar uma viagem de diversão, em que o lugar messiânico – e a busca do paraíso – vai em direção à satisfação do gozo masculino. No entanto, ao final do filme, o regozijo que o motivou faz com que já não saibamos mais para onde caminha a narrativa, o que significam as ações que vemos nesse sonho de prazer e gozo. Mais do que nunca, gozar por gozar é insuficiente: ao cinema e à vida. Consciência e respeito são elementos necessários à imagem. O desejo de quem fez não é o de quem vê, e ignorar a quem fere o cinema é apenas satisfazer a si. E sabemos: também o cinema se faz naqueles que o assistem.

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Nota:

¹ Mecanismo utilizado ao longo da história do cinema em que homens brancos pintavam o rosto de negro, especialmente em uma época em que pessoas negras não eram contratadas para serem atores.

por Laís Ferreira Oliveira