O risco do voyeur em “Baronesa”

A política advém quando aqueles que “não têm” tempo tomam esse tempo necessário para se colocar como habitantes de um espaço comum e para demonstrar que sim, suas bocas emitem uma palavra que enuncia algo do comum e não apenas uma voz que sinaliza a dor. Essa distribuição e essa redistribuição dos lugares e das identidades, esse corte e recorte dos espaços e dos tempos, do visível e do invisível, do barulho e da palavra constituem o que chamo de partilha do sensível. A política consiste em reconfigurar a partilha do sensível que define o comum de uma comunidade, em nela introduzir novos sujeitos e objetos, em tornar visível o que não era visto e fazer ouvir como falantes os que eram percebidos como animais barulhentos.  (RANCIÈRE, 2010. p.21)

É um risco ao cinema assumir o lugar de voyeur. Acompanhar a vida do outro como quem a observa distanciado, dar a ver o mundo exótico, aquele ao qual não é possível ao universo exógeno ao filme, pode incorrer no risco de não considerar o risco de olhar. Reconhecer a responsabilidade intrínseca – e possível – ao gesto de ver. O cinema como voyeur tudo registra, compromete-se a mostrar tudo: a violência, a dor, a intimidade, a destruição. Em trânsito, um voyeur perpassa e transita os acontecimentos da vida, sua atenção não se detém, não adensa a complexidade daquilo que é vivo. O cinema voyeur apenas abre a porta, a janela, tira o tapete da porta da casa para que a adentremos até mesmo sem limpar os pés. E não encontra a sensibilidade necessária para que ultrapassemos a dor, reconfiguremos a ordem já dada no mundo, formemos uma outra comunidade, possamos nos tornar políticos.

Em Baronesa (2017), de Juliana Antunes, a câmera dá a ver a vida na Vila Mariquinha. Não há, porém, uma consciência clara do que seria possível ao cinema na relação com a vida daquelas pessoas. A violência na periferia, a brutalidade do Estado, os desafios da pobreza já estão no mundo: bastam-nos os excessos e desrespeito que pululam em reportagens televisivas, gritam nos jornais. Logo em uma das primeiras sequências da obra, ouvimos uma criança dizer que cortará o cabelo para poder ajudar o pai a sair da cadeia. Em outra sequência, acompanhamos, pelo rosto de desamparo de um menino cuja idade não ultrapassa os três anos, os sons de uma briga violenta entre a mãe e seu outro filho no interior da casa. Aqui, parece ser muito bruto mostrar a violência: como mostrar o rosto de uma criança que pode mesmo estar apanhando da mãe por um ato de desobediência que não parece ser grave o suficiente para tamanha agressão? No entanto, como é possível ao filme ainda compactuar com o gesto da mãe, colocando-nos à espera e à escuta junto com outro menino abandonado? Com o nariz escorrendo, o  garoto que estava com a mãe sai da casa. O menino encontra-se com a criança que já estava  sentada na soleira da porta, cuja ausência de reação aos gritos parece configurar que já está habituado a eles. No mundo, o cinema não se exime do que há de trágico; pode, porém, optar por uma visibilidade capaz de criar dissenso, desviar e fabular narrativas para que a esperança não parta apenas da vontade de uma terra distante, mas se coloque no cotidiano. E, mesmo ali, o filme nos mostra que a alegria é possível: em uma caixa d’água se inventa uma piscina, joga-se capoeira no meio da rua, crianças correm atrás de porcos na convivência com o espaço em que ainda, apesar da chuva, é possível a diversão e a liberdade. Deixar a violência como espetáculo jamais constituirá um gesto político em si.

Dar a ver a realidade das mulheres não constitui, imediatamente, um gesto de respeito e empoderamento dessas pessoas. Em uma cena, vemos uma das protagonistas, Leid, conversando com o atual companheiro sobre o filho. O parceiro diz que parte do filho é seu, que ele chegou para completar a formação da criança nos dois meses finais da gestação. Leid questiona a piada, mas termina rindo com ele. Reiterar um discurso recorrente e preconceituoso sobre o abandono e a multiplicidade de parceiros das mulheres negras não as liberta, não as auxilia a enfrentar a violência diária. O cinema voyeurístico se esquece que quem o produz não verá com os olhos do espectador: fazer um filme junto com outro é também cuidar de respeitá-lo. Nesse sentido, é sintomático que o único momento em que se parece querer revelar o processo fílmico seja na fuga da violência. Quando começa o tiroteio, a câmera treme, balança, pretende mostrar-se o cinema direto, lembrar que também o filme corre perigo. Contudo, por que somente quando a equipe corre perigo, quando o prazer de ver não pode ser mantido, que a câmera foge, esconde-se? Há violências explícitas e tão graves ao longo do filme às quais a câmera segue apenas como espectadora e não se desvia. Talvez porque essas outras violências atinjam apenas aos personagens, não aqueles que filmam.

 Em meio à violência, criar esperança e temperança não é das tarefas mais fáceis. Deslocar-se de narrativas cotidianas que envolvem a memória de estupros sucessivos, técnicas para carregar drogas na vagina, esperar pelo marido preso, perder o companheiro é um obstáculo. Há, porém, força e resistência nessas mulheres que ultrapassam a fabulação que o filme pretende – e que se fragiliza. Dançar como se portasse uma metralhadora ou escrever uma carta de despedida de Baronesa são gestos de ficcionalização de uma realidade onde essas ações parecem mecanismos que o cinema trouxe de fora para ensinar aquelas mulheres a acreditarem numa vida possível. No entanto, sob a fragilidade desses símbolos, esquece-se que há muito mais vitória e persistência na imagem de uma mulher que ergue tijolos e coloca cimento entre eles para viver – e possibilita a vida reinventar-se entre pedras, a partir da areia, no que é bruto.

Referência Bibliográfica
RANCIÈRE, J.  A estética como política.  DEVIRES – Cinema e Humanidades, v.7, n.2 p. 14-36, 2010.
Por Laís Ferreira Oliveira