O Presidente, o Juiz e a Câmera

Um homem arma um tripé e instala sobre ele uma câmera. Ajusta o foco, fecha o quadro, assegura a conexão dos cabos, verifica o armazenamento dos cartões e a autonomia das baterias – seguindo orientações e protocolos expressos anteriormente. A sala para a qual a câmera olha é branca e ampla, sem janelas. Neste momento, ainda está vazia. O quadro, também vazio, se concentra sobre uma cadeira. É para aquela cadeira que a câmera deve olhar, seguindo a ordem do homem, tão logo ele aperte o botão. O homem, um servidor público qualquer, tem como função técnica (dentre outras, ao que parece) fazer com que a câmera olhe para o lugar definido na hora adequada. Não foi diferente com a saída da fábrica dos irmãos Lumière. Era preciso que os homens, mulheres, bicicletas e cachorros tivessem a justa medida de seus movimentos em função do tempo disponível. O tempo da câmera. Não vem sendo diferente no cinema desde então, sempre que há controle e garantias de que o mundo não invada o olho da câmera com sua força imponderável – e o que passa é que o mundo invade, ainda assim, à revelia. 

A sala agora está cheia. A cadeira antes vazia é ocupada pelo ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que é visto pelo olho da câmera – e que muito em breve passará a ser visto também por uma multidão de olhos à espera desse olhar que, neste momento, ainda só pertence à câmera. Lula e seus advogados de defesa sabem que uma câmera nunca “olha”, apenas. Ela produz um mundo com o que vê e, no mesmo gesto, inventa um espectador para aquilo que vê. De ABC da Greve (Leon Hirszman, 1990) a Entreatos (João Moreira Salles, 2004), entre centenas de milhares de imagens produzidas sobre sua figura pública e privada, Lula sabe que uma câmera nunca “mostra”, apenas. Ele e seus advogados de defesa sabem também que a política é a produção de uma mise-en-scène – no Brasil atual, talvez seja mesmo uma mise en abyme¹. E, tratando-se de uma mise-en-scène, as coisas não estão ali aleatoriamente, como um lance de dados jogado ao acaso. Ela faz abolir mesmo o acaso [ou por vezes o dissimula, em seu total domínio]. Na mise-en-scène do cinema e da política, as coisas nos são dadas a ver através de eleições: de imagens e sons, corpos moventes e em repouso, quadros abertos e fechados, olhares e palavras. Revelações e ocultamentos.

Lula, o sindicalista, em "ABC da Greve"

Lula, o sindicalista, em “ABC da Greve”

É por reconhecer que a política é uma distribuição e disputa entre formas complexas de ver e dizer que Lula e seus advogados solicitam que o olho da câmera do aparelho judicial expanda seu ângulo de abertura. Para eles, a câmera da Justiça Federal produz continuamente “uma imagem distorcida”². Nela, apenas o réu é visto, o que “[claramente] resulta em prejuízo ao acusado, uma vez que sua imagem é apresentada ao público em geral de forma inferiorizada”, argumentam. Leni Riefensthal, o Ministro Goebbels, Eisenstein, o cidadão Kane, William Bonner, o Superman, Rita Hayworth, Capitão Nascimento, o Cristo crucificado, Corisco, todos nos relembram em suas imagens o ângulo dos heróis, líderes, musas, mártires, guerreiras e mitos – e também o contraplano (por vezes, invisível) dos derrotados, vitimados, oprimidos. Em qualquer curso de cinema não tardará o momento em que alguém apresentará numa escala de planos a oposição entre a câmera que mergulha e a que ascende, bem como os efeitos ópticos, físicos e simbólicos implícitos em nossos regimes de espectatorialidade – secularizados pelo mundo ocidental fetichista e voyeurista que o cinema colaborou para configurar. 

Lula, presidente do povo, em plongée e grande angular, retrato característico do fotógrafo presidencial Ricardo Stuckert

Lula, presidente do povo, em plongée e grande angular, retrato característico do fotógrafo presidencial Ricardo Stuckert

Lula enquadrado de um modo desfavorecido perde parte significativa de sua força e presença retórica, marcas de um presidente que não poupou esforços na produção de uma imagem vigorosa, cativante, aguerrida e virulenta, garantidora da adesão das massas às suas investidas orais. Para os advogados de defesa, a posição da câmera, seu enquadramento, colaboram para que Lula se fragilize diante de seus acusadores. Assim, solicitam que se faça uma “modificação na forma de captação de imagens das audiências para registro do que se passa em todo recinto onde ela se realiza e direcionamento da câmera à pessoa que está a fazer uso da palavra, não a deixando repousar exclusiva e fixamente na pessoa do interrogado, mas, sim, promovendo a gravação da íntegra do ato, incluindo, mas não se limitando, a todos aqueles que fizerem uso da palavra”.

Incluir todos aqueles que fizerem uso da palavra na imagem. Para Lula e os advogados de defesa é preciso que o quadro da câmera seja invadido pelo entorno, pelo que está fora. É necessário convocar o magistrado, os advogados de acusação, escrivães, todos os demais agentes e funcionários que compõem a cena do depoimento – tomado pelo espetáculo dos pés à cabeça. No enquadramento do Estado, há um campo – Lula, o réu, potencial criminoso, que deve provar sua inocência. E há um fora. Uma voz de sotaque paranaense carregado, sem rosto, mansa e zelosa, rígida quando necessário, sem perder a compostura. A história do cinema também colaborou na consolidação dos efeitos dessa voz off, cuja presença desprovida de corpo ainda assim altera a composição da imagem, lhe dá contornos, a pressiona pelas bordas como se estivesse a entrar, permanecendo no exterior segura sem partilhar a carne da imagem, quase sempre de saída. O primeiro pedido é aceito e o juiz intervém a favor de Lula e seus advogados, permitindo um enquadramento mais aberto e mais revelador da cena em conjunto. O campo visível e o extracampo sonoro agora somam-se numa só imagem. 

Câmera 01 - O olho da câmera e a presença invisível do juiz

Câmera 01 – O olho da câmera e a presença invisível do juiz

Câmera 02 – Campo e contracampo

Câmera 02 – Campo e contracampo

Mas, há ainda um segundo pedido. Lula e seus advogados de defesa querem uma outra câmera. Não uma câmera qualquer, dessas que só “olha”, como parece querer-fazer-crer o juiz Moro em sua argumentação. É a câmera de Ricardo Stuckert, que sabe como ninguém como Lula deve ser visto. Stuckert, filho do fotógrafo responsável por enquadrar o último general presidente do Brasil, acompanhou o ex-presidente em palanques, assembleias, reuniões, churrascos, praias, campos de futebol, bastidores. A esse segundo pedido, o juiz Moro diz não: “A gravação pela parte da audiência com propósitos político-partidários não pode ser permitida”, afirmou, dizendo que essa prática seria “absolutamente estranha à finalidade do processo”.

Se Lula e seus advogados de defesa sabem que câmera alguma apenas mostra ou olha, imparcialmente, o esforço do magistrado é fazer da imagem o bastião da verdade. É aqui que a imagem colapsa. Ao afirmar que a gravação parte de propósitos partidários, o juiz indiretamente infere que aquelas duas primeiras câmeras e suas decisões formais estariam então despossuídas da capacidade de gerar algo cujos fins não fossem o mero registro, a pura e simples representação da ordem das coisas. São os dados e os fatos, tudo o que a lei demanda e necessita para prosseguir. A afirmação de Moro é contundente: trata-se de eliminar da imagem a política fazendo-a com que ela se transforme num espelho reflexo do mundo. Retorno ao platonismo mais arcaico, problema típico de representação.

Se concordássemos com o juiz Moro, poderíamos argumentar então que a questão se encerra aí, nos modos como a imagem faz ver, faz dizer, faz circular. O embate se daria entre a câmera bastante partidária de Stuckert e as câmeras-neutras da Justiça Federal, cujo enquadramento é definido pelo servidor público que não olha, só mostra. Novamente, embate binário entre as boas e más formas da imagem. Entretanto, há outro movimento necessário. Ao fazer dizer, ver, mover, a imagem também nos dá a medida justa do mundo sobre o qual se inscreve, da rede técnico-afetiva que arma a cada novo disparo, dos poderes que engaja em sua existência enquanto imagem. Naquele caso, no mundo de Moro, as imagens não serão jamais operadoras, produtoras de uma forma subjetiva que escapa aos que figuram em cena, aos próprios sujeitos que a produziram e suas escolhas formais, plásticas, éticas. Ela é uma face tão plana e transparente que nela só vemos o que os corpos e falas podem nos dizer enquanto discursos e narrativas, isoladamente. As imagens são avulsas, truncadas em sua capacidade de conexão e desconexão. Aqui, elas nunca são nada em si, estão sempre a serviço de algo, de alguém – de um partido, do judiciário, de um processo, de um crime. São como artefatos cuja importância está dada em função do que podem exercer a cada nova rodada de negócios, de novas cartas na mesa.

Assim, a imagem vê rompida significativamente sua capacidade intrínseca de relacionar-se com o que a antecede, com o que está adiante, com o que está fora e com sua exterioridade mesma. Perde também talvez aquilo que seja o que lhe faz ser política: a potência de perturbar os nomes das coisas, de intervir na distribuição das nossas formas sensíveis, de permanentemente nos dizer que elas não estão aí para serem continuidades do mundo. É porque o mundo não basta que insistimos nas imagens. Mas, para isso, é preciso que, a todo tempo, esteja fazendo com que as imagens entrem em circulação com os lugares de onde vêm, as redes que constroem e desmoronam, os poderes que fazem brilhar ou os vagalumes que resistem. Para isso, as imagens precisam engajar um espectador. Em sua investida contra as imagens, a favor de um regime de emparelhamento entre o mundo e o mundo representado, sem diferença, o que o juiz faz é negligenciar o lugar do espectador em nome de uma transparência total.

À frente do mundo do espetáculo que já o engoliu, o juiz não entendeu o que podem as imagens. Ou talvez o tenha entendido claramente, assim como Lula e seus advogados, no reconhecimento de que a política e a estética não se desvinculam – e por isso as imagens fazem temer.

Notas
¹ O escritor e ensaísta francês André Gide, em 1891, escreveu em seus diários sobre o conceito de mise en abyme enquanto uma estrutura narrativa que estabelece algum grau de reflexividade – por semelhança ou contraste. Numa apropriação mais genérica, a mise en abyme trata de uma narrativa no interior da própria narrativa, num jogo de multiplicação labiríntico do universo teatral, pictórico, literário ou cinematográfico.
² As aspas foram retiradas do texto redigido pelos advogados de defesa de Lula – Cristiano Zanin Martins, Roberto Teixeira e José Roberto Batochio. A petição encaminhada ao juiz Sergio Moro foi também publicada em dezenas de veículos de comunicação na semana anterior à audiência.
Por Isaac Pipano