Os interstícios do Cambridge

Era o hotel Cambridge (2016), de Eliane Caffé, realiza radicalmente algumas estratégias que orientam uma considerável parte do cinema brasileiro contemporâneo: propõe a realização cinematográfica a não-profissionais do cinema, encenando cotidianos e histórias reais dos atores participantes, ao mesmo tempo em que ocupa os espaços urbanos nos quais se insere.  É como uma constatação da impossibilidade de se desvincular as pessoas de seus modos de vida nos espaços em que habitam e partilham diariamente. O filme revela, logo em seu início, aquilo que é fundamental a sua conduta. Contemplamos uma sequência de imagens que migram do cenário urbano da cidade de São Paulo, geral, até as imagens internas de um edifício em condições deterioradas. Entramos no que foi, certo lugar do tempo, o hotel Cambridge. Agora, a construção é morada reivindicada pela Frente de Luta por Moradia (FLM) através da tática de ocupação. Tais imagens iniciais se mostram interessadas nas condições materiais do local, não apenas no sentido de dar destaque ao seu estado de conservação, mas seus segmentos mais estruturais, os encanamentos, a rede elétrica, as escadarias, um velho aquecedor geral.

O prédio, apesar das condições, ainda vive, como nos revela a dimensão sonora em uma ênfase na experiência expandida do cinema: escutamos os sons da vida do edifício, virtualmente inaudíveis no real, o percurso da água nos canos, os ruídos dos circuitos elétricos. Um hiperrealismo sonoro que dissolve as fronteiras entre um desenho de som incidental e a sonorização diegética. Essa é a conduta, um cinema que, através de seus artifícios, permite a aparição do que é dado como ausente na experiência da vida cotidiana. É esse cinema que se realiza a partir de uma pressão urgente do presente, tendo o real enquanto matéria fílmica, mas que também assume para si um modo de aparição aliado às convenções da ficção, que tem motivado o uso de termos como o cinema-híbrido. Apesar de precedido por importantes filmes que movimentaram também este campo de discussão, como Branco Sai, Preto Fica (2014) de Adirley Queiróz, A Vizinhança do Tigre (2015) de Affonso Uchôa, entre muitos outros, Era o Hotel Cambridge também manifesta a força de um impacto de desestabilização das expectativas quanto às definições rigorosas dos modos fílmicos.

A ideia de um cinema híbrido, no entanto, parece mover o pensamento ao encontro de um corpo fílmico fragmentado, como se, no caso desse cinema, pudéssemos remontar na experiência do filme as “ascendências” dos modos documentário ou ficção, supostamente combinados em gesto de hibridação. Tal possibilidade de mapeamento não parece possível nesses filmes. A recusa ao híbrido se verbaliza no discurso da própria realizadora Eliane Caffé, ao assumir como ficção o trabalho realizado, mesmo lidando ocasionalmente com imagens oriundas de filmes documentais e de imagens-flagrante captadas por iniciativas de midiativismo, que, ainda assim, segundo ela, entram no filme como “produto de uma construção ficcional erguida plano a plano no árduo trabalho da edição (…)” (CAFFÉ, Eliane; CAFFÉ, Carla, 2016:243). Observa-se então uma valorização da ficção enquanto exercício, sem o medo de que o fictício seja aquilo que organiza as tensões da realização fílmica sob uma lógica do controle, ou o que submeteria o encontro com oferecimentos do real a um pressuposto de coerência, artificial e homogeneizante. Perde-se o receio do argumento, da organização do roteiro, do afastamento do autêntico. Uma ficção liberta de ser aquilo que faria o cinema trair o real. O risco, agora, é de fazer documentário, da ambição do retrato, da denúncia, ou de dar valor demais ao descontrole e ao flagrante da interação com o aparato ao invés do gesto de ceder o controle e a criação de histórias.

Para esse cinema, parece não ser preciso chamar a ficção de outra coisa. Ficção enquanto um horizonte do que pode o cinema para além da abertura às performances de si, que já há muito tempo compõem o fazer documental, de uma cessão da fabricação e invenção ativa da matéria fílmica. Carmem da Silva Ferreira, líder da Frente de Luta por Moradia, interpreta a si mesma na narrativa do filme e surge no que poderia ser considerada uma representação unidimensional. Não temos contato com sua intimidade, sua história, seus hábitos. Ela surge fracionada em sua posição de ativista e líder de movimento social. Aquilo que em um documentário poderia surgir como um uso utilitário e sociológico do indivíduo é, aqui, arriscado enquanto figuração simbólica, de modo que Carmem também negocia seu próprio interesse de aparição. Apenas mostrar já não é o suficiente. A ideia de uma contrapartida definiu o horizonte ético do projeto como forma de lidar com as tensões que emergem entre a captura e a devolução da riqueza sensível de um mundo no qual o cinema se intromete. Não ceder, apenas, um espaço dentro da imagem, mas dividir o gesto próprio da criação do que virá a ser uma imagem de cinema:

Concluímos que a produção do filme deveria pensar em contrapartidas que pudessem empoderar o movimento e melhorar o cotidiano daqueles que ocupam temporariamente os edifícios abandonados do centro da cidade. (…) Com essa demanda de participação a direção de arte passou a ter um papel fundamental no processo, pois poderíamos trabalhar com a cenografia do roteiro e, ao mesmo tempo, executar reformar no edifício ocupado, operando na fronteira entre a arquitetura e o cinema. (CAFFÉ, Carla, 2016:13)

Não por acaso, o projeto do filme fez-se integrado à Associação Escola da Cidade, entidade sem fins lucrativos de formação em Arquitetura e Urbanismo, que moveu os estudantes a aprenderem e trabalharem na pré-produção e desenho de produção do filme, de modo que as transformações feitas na ocupação do Cambridge fossem contribuições ativas ao espaço que serviria de locação. O filme reúne, assim, amadores e profissionais, que dividem as ferramentas do fazer em diferentes segmentos da realização. É por isso que, diferentemente de uma mera sutura de um sistema heterogêneo de um fazer híbrido, o filme é sempre uma singularidade complexa própria dos entrelugares que produz.

Não é apenas por essa atuação direta do fazer cinematográfico na reconfiguração dos espaços que Era o hotel Cambridge se faz entre o cinema e a arquitetura. Ao dialogar tematicamente com o trânsito dos refugiados, com a ocupação dos espaços privados tomados como públicos, com o direito à dignidade da moradia, o filme desenha uma relação curiosa entre uma modalidade da escritura cinematográfica que poderia ser considerada como intersticial, em seu intervalo de intensidades que evocam os imaginários da ficção e documentário na experiência de realização e recepção, e o próprio modo de intervenção nos espaços que inaugura, propriamente, interstícios. O interstício surge, assim, como uma espécie de figura heurística, ou seja, os valores representados pelo conceito são redistribuídos como novos conhecimentos possíveis sobre a produção de imagens no cinema contemporâneo. O conceito deriva, inicialmente, da disciplina biológica e responde especificamente “à pequena área, orifício ou espaço existente na estrutura de um órgão ou tecido orgânico. É o espaço intercalar entre as células, moléculas, órgãos.” (GUERREIRO, Marília Rosália). É justamente por dar conta de elaborar um espaço intercalar que se define por um “não pertencimento” de polos demarcados, por ser um intervalo próprio que não participa de nenhum dos conjuntos circundantes a ele, que foi possível ao conceito ser adotado por outros campos do conhecimento.

O intersticial comparece instrumentalmente na teoria do cinema, mas é parte fundamental em trabalhos sobre o espaço na geografia e arquitetura, principalmente sob os estudos do urbanismo. Na geografia e na arquitetura, interstícios urbanos podem ser considerados:

(…) como o conjunto dos espaços abertos da cidade, isto é, todos os “vazios”, delimitados e conformados por interfaces verticais e/ou horizontais, restando sempre, todavia, uma interface livre, de contato com o meio exterior. Podem ser públicos, semi-públicos ou privados. Tipificando e exemplificando, os interstícios são: os espaços convencionalmente classificados como livres (espaços públicos e semi-públicos como parques, praças, largos e térreos livres); os espaços que, apesar de livres em sua essência, não são vistos e apropriados como tal nas cidades brasileiras, por não caracterizarem espaços de convivência urbana (espaços públicos e semi-públicos como ruas, calçadas, galerias, miolos de quadra); e os espaços abertos que não são livres, mas sim privados (jardins de casas e condomínios, quintais, varandas, terraços, coberturas). (PIZARRO, 2014:45)

É curioso, no entanto, pensar que um filme como Era o hotel Cambridge, que elege como cenário um edifício, possa se relacionar com um conceito de interstício que comparece nos estudos de urbanismo frequentemente como os vazios residuais desenhados pelos intensos processos de edificação. A heurística se sustenta quando notamos que o modo de relação estabelecido pelo ato de fazer um filme se concentra, justamente, nos espaços de convivência que se estabelecem inescapavelmente na forma de ocupação. Em um espaço desenhado originalmente para a habitação provisória, despertencida, há uma comunidade que não se caracteriza pela negociação diária dos universos particulares, mas pela convivência e manutenção das defesas dos direitos em comum, o que não implica em uma dissolução dos indivíduos em um corpo político unívoco. A instância narrativa do filme, que monta conversas banais, choques culturais, memórias íntimas e ações de classe política é que permite acompanharmos as cristalizações e desabamentos das determinações por propriedade. Sobre isso, o filme opera um interessante gesto cinematográfico: desloca imagens de filmes documentários realizados sem qualquer conexão com o filme brasileiro, sendo Blood in the mobile (2010), de Frank Poulsen e a Chave da casa (2009) de Paschoal Samorae Stela Grisotti, para se tornarem presentificações das memórias dos personagens ficcionais Ghandu e Rassam, refugiados do Congo e Síria, respectivamente. Os personagens, por sua vez, relacionam-se diretamente com as experiências de vida dos atores não profissionais que os performam. Tal uso ficcional de uma imagem originalmente referencial, de fazer memória com a vida dos outros, realiza uma zona de indiscernibilidade que exige o trânsito entre a afirmação da identidade a partir de uma determinação proprietária, a trajetória de vida, os vínculos de pertencimento, e sua realização paradoxal a partir de um material que não lhes é próprio.

A experiência da encenação feita pelo ator não profissional, sem o apoio de um repertório de técnicas, coloca-o em uma situação radical. Através das orientações do texto cinematográfico, da mise-en-scène, o ator performa uma identidade que se relaciona com vivências imaginadas que não foram, necessariamente, vividas por ele. Em dado momento do filme, os personagens refugiados conversam com familiares através de vídeo-conferências, também atores não profissionais que simulam na interpretação o parentesco, performam a partilha de memórias, saudades imaginadas, dão vida a existências fortuitas, que duram um segmento de filme e, portanto, urgem por dar conta de muito com pouco.

Essa operação do cinema, de permitir rearticulações de tempos, de causas e efeitos, do reemprego de imagens e dos discursos dos participantes sobre si mesmos é o que desafia realizadores, participantes e espectadores ao lugar de reconhecimento em que as causas de si vêm de fora. Isso se aproxima do que, para Vladimir Safatle, produz um deslocamento radical de um modo de pensar a política: diferentemente das dinâmicas da cultura e da economia, a política des-identifica: “(…) ela os des-localiza de suas nacionalidades e identidades geográficas, da mesma forma que ela os des-individualiza de seus atributos psicológicos” (SAFATLE, 2015:354). Não é apenas a diferença que é o elemento central das dinâmicas no Cambridge, mas como elas se relacionam em um princípio de solidariedade (acima da tolerância), sob a forma de um corpo político de objetivo comum, em um processo de destituição que é compreendido no seio do interstício enquanto tal. Se Jacques Rancière nos diz que a política é, não a organização necessária, mas “a exceção aos princípios segundo os quais tal organização opera” (RANCIÈRE apud SAFATLE, 2015:354), a política sempre se daria enquanto produção de interstício. Talvez seja esta a forma de fazer política que o cinema de Era hotel Cambridge busque, não a pretensão de realizar, mas de estar à altura de participar.

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Referências bibliográficas:
CAFFÉ, Carla. Era o hotel Cambridge. Arquitetura, cinema e educação. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2016.
GUERREIRO, Marília Rosália, Interstícios urbanos e o conceito de espaço exterior positivo. Lisboa: Revista Forum Sociológico nº 18, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), 2008. p.13-19.
PIZARRO, Eduardo Pimentel. Interstícios e interfaces urbanos como oportunidades latentes: o caso de favela Paraisópolis. São Paulo, 2014. Dissertação (Mestrado) – FAUUSP.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Por Pedro Drumond