Quantos afluentes desaguam num rio?

O que pode um rio no universo dos homens? O que significa para um rio nascer, ir em direção à foz, receber os afluentes? O percurso de um rio, a bacia hidrográfica a qual pertence, é um dos elementos responsáveis por caracterizar a geografia de uma determinada região. Os meandros, as curvas de um rio, são resultados de processos, considerando a natureza do solo, a  quantidade de sedimentos ali presentes. Há, porém, outras formas de entender a sede, o trabalho que conduzem alguém a um rio – ou os percursos por onde alguém é conduzido. Uma paisagem de Yangtze (Changjiang, 2017),  de Xu Xin, acompanha a trajetória do rio Yagntze, da marina de Xangai até sua fonte, no Tibet. O convite para o tempo desse rio é outro: ver o que acontece às suas margens, recordar os eventos que tiveram espaço no seu leito, não é possível pela agilidade do progresso ou pelo protagonismo dos homens ilustres. Há, ali nas margens,  nas águas fundas, nos rostos do homens comuns, uma outra memória e história da China.

Os planos longos e silenciosos do longa-metragem de Xu Xin retomam tempos ancestrais, durações próximas à natureza, em que a vida prossegue em um cronologia própria. O curso do rio e o curso do tempo se aproximam: para ver o que acontece às margens é preciso observar com cuidado, com gestos silenciosos. Próximo ao porto Tongling, um homem se alimenta com peixes, que parecem podres. Vemos, também, homens que escavam; ao fundo, sons de fogos – seriam de guerra ou de artifício? Talvez de ambos. Há várias coisas que acontecem afastadas do rio, não as veremos, mas elas afetarão a vida ali presente. A imagem das cenas de trabalho, dos circuitos da navegação, parecem habitar um território em suspensão: se um rio sempre navega, nunca será o mesmo, como podem, em oposição, homens escolherem suas margens com morada fixa? Nesse rio de longa extensão, há várias formas e possibilidades de moradia. Da imagem de um homem pobre e andarilho, vamos até àquela da antiga vila de Dandong. Por lá, galinhas ciscam, enquanto, outra vez, ouvimos, de longe, os ruídos de trabalho. Há algo da vida ordinária que parece seguir do mesmo jeito, enquanto lá, no outro espaço, em outro desenvolvimento, máquinas que produzem persistem como foram programadas.

Mas esse não é o universo da resignação. Conhecemos a história de um ponto de pesca destruído por um barco a partir da figura de um homem cujas mãos foram mutiladas pelo acidente. Ele procurou Pequim, mas as consequências se modificaram pouco. Não é esse homem que nos conta a sua história. Ouvimos pelo narrador os dados desse fato que ocorreu. No entanto, o homem olha, brevemente, para a câmera. Ao longo de Uma paisagem de Yangtze, o encontro do cineasta com as pessoas que filma provoca ligeiras alterações na ordem daqueles cotidianos. Por um breve tempo, o homem que perdeu as mãos por causa de um grande barco e não teve o amparo que esperava das autoridades é visto e olha para alguém que o vê. Depois, a vida prossegue quase como era antes. Em outro encontro, na província de Jingzhou, vemos um homem que parece colecionar e guardar dinheiro numa mala. Ele tem o rosto sisudo, parece preocupado; quando conversa com o cineasta, porém, sorri. E mostra os maços de dinheiro, amarrados cuidadosamente. O gesto de escutar e ver pessoas comuns, anônimas, não vistas, sugere outra narrativa para o rio de Yangtze. O curso fluvial não é mais apenas o do maior rio da Ásia: é o trauma de um homem que perdeu as mãos ali, é a vista da paisagem de um estranho cuja alegria é um acúmulo pouco usual do dinheiro.

O mundo de fora, da matéria, do trabalho é muito maior que os homens. Em uma determinada sequência, assistimos homens que enchem sacos de terra. A imagem vista de cima, do alto, torna aquelas pessoas miúdas, pequenos pontos entre tantos sacos de areia acumulados. Algo semelhante acontece quando vemos a imagem de um guindaste: quantas vezes mais um guindaste é mais alto que um homem, quantos homens cabem nas garras de um guindaste? As almas dos homens parecem ter mais proximidade e similaridade com a natureza: em um dia frio, as águas do rio amanhecem cobertas de neblina, em uma fantasmagoria talvez possível de ser entendida como os resíduos das vidas que ali passaram. Todavia, enquanto isso, é preciso ainda construir uma nação, atender ao chamado cívico. Em um plano que vemos uma pilha de entulho ao lado de uma estrada, uma faixa alta, acima da rodovia, anuncia: “patrocine o comitê central comunista” e convida a ser solícito, a patrocinar a empresa. Ao lado, há uma cristaleira sem o vidro da frente, quebrada, deixada ao lado de onde passam as pessoas, onde cruzam os homens, onde segue o progresso, o nacionalismo. Olhar para as margens – de uma estrada, de um rio – parece apontar para os elementos quebrados, os vidros partidos, o que ficou esquecido e inacabado enquanto as águas e o trânsito seguiam.

Um rio pode representar muitos perigos e mortes. Sabemos de um navio cargueiro que vira com cinco marinheiros dentro, conhecemos os cinco estágios de uma represa próximo a um desfiladeiro. Se o medidor de água atinge um nível muito baixo, torna-se perigoso: o chão exposto destrói o ambiente. Ali tibetanos se sacrificam – há poucas mulheres no grupo. Ocorreu um terremoto. No entanto, em um ponto do rio, cantam canções comunistas para celebrar Mao Tsé Tung, dois homens fazem um show na beira do rio, há um teatro com muitas luzes acontecendo em um grande navio. Na paisagem de Yangtze, vida, morte, alegrias e perdas não se dissociam: são os afluentes próprios do rio, aquilo que ali deságua, os volumes das águas que seguirão até a foz.

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por Laís Ferreira Oliveira