Não nos afastemos muito: sobre “Espelho negro” e “Dao Khanong”

O cinema talvez seja um espelho passível de movimento, em que os encontros – com os outros, consigo – ainda se façam possíveis. Nesse caso, o tempo é a variância principal. No breve curta Espelho negro (Black Mirror, 2008), de Anocha Suwichakornpong, temos contato com superfícies, luzes e cores do mundo. Em alguns exercícios de magia,  um espelho negro é considerado um instrumento de adivinhação e visualização: utilizando um pedaço de vidro, pinta-se um dos lados do vidro de preto, deixando o outro transparente. Durante o seu uso, a observação se constrói a partir das imagens que se formam no espelho pelo reflexo de uma vela, que cria imagens nebulosas. A compreensão desses sinais pode ser variada: talvez algo sobre o presente, um vestígio do passado, algo que aponta para o futuro. Ao assistimos aos três minutos de espelho negro, as imagens parecem estar sempre em vias de desaparecer, em vias de surgir. Vemos um carro em chamas, luzes desfocadas de uma cidade à noite, um elevador que se move rapidamente. Há, também, a forma de um microorganismo, cujo corpo é multicolor. Encarar um espelho negro ou as diversas imagens que circulam no mundo, sob a velocidade da vida, é sempre um mistério: se não há névoa, há a multiplicidade das cores. Nenhuma delas nos dá certeza, mas ambas nos fazem pensar, uma vez mais, nas formas de representar o que vemos.

BLACK_MIRROR_1_SITE-1Espelho negro (Anocha Suwichakornpong, 2008)

Em Dao Khanong (2016), passado, presente e futuro se relacionam de outra maneira. Na primeira cena do filme, uma câmera do lado de dentro de uma edificação permite ver que, do lado de fora, folhas brilham. Entre folhas, jovens rezam. Esse é o início do que parece constituir o prólogo do  longa-metragem da diretora tailandesa. Na cena seguinte, assistimos jovens deitados no chão, com as mãos amarradas nas costas e sendo vistoriados e agredidos por soldados. Ela é associada ao massacre estudantil vivenciado em Bangkok, em outubro de 1976, na Universidade Thammasat. Antes de serem atacados, esses estudantes protestavam contra o ex-ditador Thanom Kittikachor e haviam encenado uma peça contrária a esse regime. Nessa cena, já observamos algo que irá se tornar recorrente ao longo do filme: os primeiros planos fechados em pequenos gestos, como o de duas mãos, de dois pés, o detalhe de um arma. Em seguida, uma cena mostra uma mulher mais velha que abre uma janela, enquanto uma mulher mais jovem a fotografa. Voltamos a ver os jovens no campo: eles seguram um incenso e rezam. De volta à sala em que os jovens estão reféns dos soldados, um guarda mais velho diz: “seja mais brutal; chute ele se quiser”. Em contraluz, um guarda fuma e exibe o seu revólver.

BYTHETIMEITGETSDARK_01Dao Khanong (Anocha Suwichakornpong, 2016)

Essas três situações nos introduzem ao que veremos em “Dao Khanong”: há a lembrança e a sombra de um passado, há outra forma de juventude no presente e há o encontro de duas mulheres, uma que recorda o que foi vivido, a outra que imagina o futuro. Quando começa a entrevistar uma das manifestantes estudantis do movimento da década de 70, a jovem pontua que há o tempo necessário para responder as questões propostas. O entendimento do “tempo necessário” aqui não é a ordem cronológica, mas como o tempo é apreendido e transforma a vida de cada um dos homens que o viveu. As imagens que parecem trazer o passado estudantil outra vez ao presente mostram algumas simbologias: um primeiro plano de um punho de um jovem levantado e o questionamento dos estudantes universitários da índole do reitor escolhido.

Há algo do passado que ainda se mantém no presente; algo se modifica. A antiga líder diz à garota que a entrevista: “naquela época, nós lutávamos pelo que acreditávamos. Ninguém lutava por dinheiro”. A garota a questiona se não havia medo que a luta não tivesse sucesso; a senhora diz que ter sucesso não era uma opção. Essa mulher é autora de livros sobre o mês de outubro de 1976 e, enquanto é entrevistada, é indagada se possui uma vida com sentido para ser vivida. A garota diz que sua vida é muito mundana, em oposição a vida da autora, em que a história vive. A entrevistada diz que não é história viva, mas apenas uma sobrevivente. A vida comum, ordinária, mundana é algo que atravessa diversos filmes de Suwichakornpong. Podemos pensar, por exemplo, em História Mundana, Almoço, Like.Real.Love ou Estrangeiro. Se pensamos essa parte da entrevista em relação com os outros filmes da diretora tailandesa, há uma relação próxima ao escrever livros, fazer filmes, ser testemunha e fazer cinema: todos esses elementos são atravessados pelo cotidiano. Uma autora (ou uma cineasta) não são a história viva: apenas são sobreviventes. Os grandes eventos, ao final, não são acontecimentos extraordinários: eles atravessam a vida de qualquer um. O que, talvez, seja uma forma diferente de relacionar com essas situações, com o passado, é sobreviver – e escolher contá-lo, retomar, em um tempo futuro, aquilo que já foi.

by theDao Khanong (Anocha Suwichakornpong, 2016)

Em uma determinada sequência, passamos a ver a produção de uma espécie de videoclipe. O processo de gravação é revelado: vemos que se trata de um estúdio, as câmeras estão ali, como os atores. Um homem está fantasiado de peixe, outros parecem em agitada euforia. Essa seqüência parece se relacionar a um pensamento acerca da juventude que atravessa o filme: há algo que é inventado, algo criado, algo se fantasia e há muitos obstáculos. Em uma luta estudantil ou na gravação de um vídeo, é preciso conseguir estabelecer uma narrativa, uma história e há opção de se tornar personagem dela. Nesse caso, nem mesmo no cinema ou na gravação de qualquer imagem audiovisual há muita segurança.  Em outra sequência, enquanto um homem carregava um aparelho que dispara bolinhas de sabão no ar, sabemos que o jovem Peter está morto: alguém viu suas mãos num acidente de carro. Aqueles que trabalhavam na gravação de imagens, em outra cena, dizem: estamos quase terminando, devemos continuar? A decisão é pelo prosseguimento da cena; talvez seja essa a diferença do tempo da juventude no cinema e na vida externa a ele. Um filme parece, ao menos, poder tentar prosseguir, após a morte, como funcionava antes do fim: no tempo de uma ficção, é possível terminar uma cena, ainda que a morte possa ter tentado interrompê-la.

Há outras ações para além da morte. Um monge aparece varrendo uma casa, ele é visto em um quarto vazio, com um espaço amplo, mas com poucas coisas no seu interior. Ele acredita que o budismo irá florescer no mundo. Outras imagens oferecem respostas mais misteriosas: uma mulher caminha sozinha, vemos a proximidade de duas cabeças raspadas de costas, há uma festa de discoteca, uma imagem se apresenta em glitch. Ao final, há uma atmosfera que se assemelha à uma experiência lisérgica. A imagem do céu se torna um elemento verde e roxo. É possível, ainda, ver o mundo de outra forma, apesar do passado sombrio, dos jovens que envelhecem, dos jovens que morrem, dos ditadores.  Aqui, não há um espelho negro para tentar ver uma imagem do futuro, mas há outras imagens para perceber o mundo quando o presente se tornar nebuloso.

por Laís Ferreira Oliveira