“A vida e o cinema não podem ser separados” – entrevista com Anocha Suwichakornpong

A seguir, entrevista realizada com Anocha Suwichakornpong, homenageada pela mostra Foco do 6° Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.

Laís Ferreira: Em seus filmes, vemos, recorrentemente, cenas de trabalho no cotidiano. Em Estrangeiro, nós assistimos empregados em uma fábrica voltada para frutos do mar. O trabalho também é tema de História Mundana, em que um dos protagonistas é um empregado. Em Como.Amor.Verdadeiro, é uma mulher trabalhadora que olha para a câmera e afeta a narrativa. Por que você tem interesse nesses episódios de trabalho e como isso conta sobre a sua vida na Tailândia?

Anocha Suwichakornpong: Eu acho que eu gosto de olhar para eles enquanto eles estão trabalhando… É realmente sobre olhar, quero dizer, observá-los enquanto eles estão trabalhando. E eu não limito isso apenas ao trabalho físico ou legal. Eu penso que quando alguém está muito concentrado em seu trabalho, há algo um pouco fascinante sobre isso… Porque quando você está muito concentrado, você tem menos consciência a respeito do que cerca você. E eu penso que em termos de cinema isso me convoca muito… Então, de repente, não é sobre performance mais… Perfomance no sentido de agir. Porque alguém está engajado naquilo que eles estão fazendo. E eles esquecem o que há ao redor. Para mim, isso é a realidade. Você sabe, quando um ator atua e ele tem muita consciência da presença da câmera, isso se torna uma forma de perfomance. Então, eu gosto de ver as pessoas trabalhando.

Sobre o país… Eu acho que apenas diz uma parte sobre o que o país é. O que eu coloco nesses filmes não é uma grande parte do que a Tailândia é. Porque, você sabe, a Tailândia é composta de diferentes raças, regiões diferentes com suas próprias culturas. Eu não quero simplificar demais a realidade. Então, eu penso que é mais importante entender o porquê de eu estar interessada no trabalho que apenas pensar como ele se relaciona com a Tailândia. Ao contrário, é sobre a natureza humana.

Laís: Ainda sobre o trabalho, eu acho que há algo interessante sobre os tipos de trabalho que você escolhe filmar. Há algo comum entre eles: usualmente, são trabalhos em que as pessoas usam as mãos como instrumento. Isso é algo intencional?

Anocha: Sabe, isso é algo interessante, o que você disse sobre as mãos. Porque…. Eu acho que, no começo, eu não tinha tanta consciência. Eu filmei as mãos várias vezes nas minhas obras… Mesmo em Dao Khanong, houve muitos planos das mãos. E algumas pessoas me perguntaram sobre esses planos típicos das mãos…. É, você está certa! Há algo a ser dito sobre isso. No contexto de Dao Khanong, eu filmei as mãos de diferentes personagens. Eu acho que as mãos são algo fascinante. Porque, de alguma forma, a maneira que as mãos aparentam pode sugerir muito sobre uma determinada pessoa. Você sabe, a classe social. A mão é um órgão que realmente muda. Não só por causa da idade, mas também dependendo da forma como você a usa. Então, se você observa alguém que trabalha com trabalho manual e alguém que trabalha no escritório, como um homem de negócios, eles terão diferentes mãos. Há algo a ser dito sobre as mãos, as classes sociais… Então, eu acho que é interessante capturar isso.

Laís: Em Como.Amo.Verdadeiro e Estrangeiro você filmou trabalhadores reais ?

Anocha: Há diferentes camadas em Como.Amor.Verdadeiro, especialmente na cena da fábrica. Os trabalhadores na fábrica são pessoas reais, mas apenas nas cenas em que eles são vistos trabalhando na fábrica. Mas, quando vemos as cenas da saída da fábrica, aqueles não são trabalhadores de fato. E a razão pela qual eu fiz dessa forma foi porque, é claro, os trabalhadores verdadeiros precisavam trabalhar! Dentro da fábrica, eu não podia realizar imagens do filme. Então, eu tive que encontrar outras pessoas para atuarem. Em Estrangeiro, são trabalhadores reais, exceto pela protagonista. Mas ela é uma imigrante que costumava trabalhar naquele emprego antes. Não naquela fábrica especificamente, mas ela costumava trabalhar em uma fábrica de frutos do mar também. Mas, quando eu a encontrei, ela já tinha outro trabalho, era recepcionista em um hospital na mesma área em que nós gravamos o filme. Mas ela é fluente em tailandês, então conseguiu captar o que é trabalhar como imigrante em um espaço em que pessoas tailandesas também trabalham.

Laís: Ainda sobre Estrangeiro, nós vemos uma mulher que tenta denunciar um estupro. Quando ela vai para a delegacia, é um homem que a atende e não a respeita. Eu gostaria de ouvi-la acerca de como essa situação mostra a proteção legal de mulheres na Tailândia. Essa cena foi bem aceita no país? Qual foi a recepção política?

Anocha: Eu preciso lhe dizer que esse filme foi comissionado por uma organização, para promover uma discussão sobre o trabalho de imigrantes na Tailândia, para alertá-los sobre os seus direitos. E, é claro, eu filmei além desse contexto. Essa é a origem desse filme. Eu me inspirei em uma história que eu li em um jornal online na Tailândia. Aconteceram muitos casos como esses, em que imigrantes foram estupradas. Mas elas ficam com medo de ir até a delegacia. Porque, muitas vezes, o crime era cometido por alguém que elas conheciam. E elas não queriam revelar isso. Então, eu decidi escrever um roteiro baseado nesses casos. Mas eu adicionei, nesse caso, o fato que a protagonista queria apenas era um boletim policial para que pudesse abortar. Isso foi algo que eu criei, não fazia parte do caso real. Para a personagem, não era nem mesmo o caso de ter esse cara preso… Ela estava sendo bem prática. Ela poderia apenas continuar seguindo com a vida dela. Com o boletim policial, ela poderia conseguir abortar rapidamente. Ela nem se importava com o que aconteceria com esse homem. Eu queria mostrar nesse filme que passos que os imigrantes poderiam tomar. Mas, você sabe, esse filme foi comissionado para promover noção de direitos dos trabalhadores imigrantes…

Eu penso que casos como esses, não apenas no meu filme, mas casos de estupro, ainda acontecem. Mas eu espero que, com iniciativas como essas da organização que comissionou o filme, os trabalhadores tenham mais consciência. Que eles saibam que direitos podem exercer…

Para mim, essa cena mostra o próprio sistema. Sabe, o policial é apenas uma parte do sistema. Ele representa, é claro, o sistema no filme. Mas vai além disso… O policial no filme é a sociedade como um todo.

Laís: Como uma mulher diretora na Tailândia, quais são os desafios que você enfrenta?

Anocha: Bem, eu posso dizer que, quando eu comecei a filmar, eu não tinha tanta consciência disso. Eu não estava consciente do fato que eu sou uma “mulher diretora”, ao invés de apenas… “diretora”! Mas fui tomando consciência disso ao longo dos anos. Há ainda muito a ser feito. Porque o machismo ainda existe na Tailândia, como em muitos outros países. Há muitas estudantes de cinema mulheres, mas quando elas se graduam não vão dirigir. Então, ou elas mudam completamente de carreira, vão trabalhar com coisas que não têm nenhuma relação com o cinema, ou entram na indústria cinematográfica e conseguem trabalhos em outras áreas, você sabe, na produção ou na administração. Mas elas não têm chance de dirigir. Agora, eu tenho realizado filmes por dez anos e penso que isso é um problema. Mesmo eu, que tenho trabalhado como uma diretora, não tenho oportunidades de dirigir os projetos que eu mesma iniciei. Geralmente, algo que eu decido por mim mesma exige muito esforço para começar a ser feito, para acontecer, para ser proposto a uma comissão… Atualmente, Estrangeiro é provavelmente a única vez em que eu fui comissionada para fazer um filme… E isso foi há cinco anos. Então, não houve muitas oportunidades para mim de ser comissionada na Tailândia. Fora do país apareceram algumas… Eu estive fazendo filmes por todo esse tempo e ainda não recebo oportunidades para dirigir. Eu acho que isso é um pouco triste… Então, eu tenho que continuar gerenciando meus projetos a todo tempo. E isso é…. é muito cansativo. Você tem que fazer o que você tem que fazer. Mas é por causa disso que eu comecei uma iniciativa este ano, apenas este ano, com minha amiga que é atriz em Dao khanong e também é uma realizadora. Nós nos juntamos e começamos uma inciativa de uma cooperativa de imagens, que recebe fundos de uma organização não governamental e auxilia no desenvolvimento de filmes no sudeste asiático. O primeiro filme que nós apoiaremos é de uma diretora indonésia. O segundo…. também é de uma diretora! Nem sempre os filmes que nós apoiaremos serão dirigidos por mulheres, mas os dois primeiros já o são, porque nós sabemos como as coisas funcionam…

Laís: Fazer filmes é um gesto político?

Anocha: É um gesto político porque você está se colocando, seus pensamentos, suas ideias em uma mídia. Com sorte, isso será visto pelas outras pessoas. Quando você divide sua opinião com os outros…. algumas vezes, eles concordarão contigo, mas outras vezes eles não pensaram o mesmo que você. É um ativismo de pensamentos, sabe. Não é como se eu estivesse na rua protestando, mas eu tenho uma mensagem. E meus filmes carregam essa mensagem. Então, independentemente das pessoas concordarem com ela, com o que o filme está querendo dizer… está tudo bem. É uma questão das pessoas poderem discutir. E eu acho que isso é um gesto político. E, também, eu tenho que dizer… Como eu sou tailandesa, de um país em que a política faz tanta parte da vida cotidiana… eu não posso evitá-lo. Eu não lhe diria isso se a gente estivesse conversando há quinze, dez anos atrás. Mas todo mundo se tornou tão político na Tailândia… Como uma realizadora, se você não lida com as questões sociais, com o ambiente que você faz parte… eu penso que é um trabalho um pouco inútil. Quero dizer, como alguém pode ser tão cego?!

Laís: Há algo interessante sobre natureza e paisagem em seus filmes. Parece que a natureza está sempre relacionada com algo existencial dos personagens. Em Estrangeiro, depois que a protagonista não é auxiliada pelo policial, nós a vemos olhando para o oceano. Em Almoço, quando os garotos estão no parque, olhando para as árvores, nós os vemos procurando respostas ao observarem as folhas. Assim, você poderia falar um pouco sobre como você pensa que as emoções humanas estão relacionadas com a natureza?

Anocha: Essa é uma questão interessante. Há muita natureza em Dao Khanong. Nesse filme, há uma oposição entre a natureza e aquilo que o homem construiu. Eu penso que quando seres humanos estão na natureza e eles têm um intervalo da sociedade, eles se concentram mais, de alguma forma. Porque isso tem a ver com o silêncio, quero dizer, a ausência de sons. Na natureza, há outros sons, como o de animais, do vento. Mas não é como neste momento, em que nós estamos em um shopping e há uma série de sons e você não tem tempo de parar para pensar. Porque você é distraída por aquilo que está acontecendo. Mas, na natureza, é muito mais silencioso e você pode começar a pensar mais internamente sobre você, sobre a vida. Então, eu penso que, nesse sentido, eu gosto de ter natureza nos meus filmes, o que eles veem, são cenas em que os personagens podem refletir sobre aquilo que eles desejam na vida. Em Dao Khanong, há uma cena em que o personagem vai caminhar na floresta… Mas eu não quero ser muito romântica a respeito disso. Porque, sabe, eu não considero a natureza superior àquilo criado pelo homem. Eu penso que há pessoas que realmente podem viver na natureza. Elas não querem fazer parte da sociedade como um todo. Eu não sou como eles. Eu sou mais comum nesse sentido, mais próxima à maioria das pessoas. Nós vamos até a natureza para conseguirmos reorientar-nos e depois voltarmos para a sociedade.

Laís: Eu percebo isso nos seus filmes… Porque os espaços de natureza não estão muito distantes da cidade. É mais como um intervalo, um lugar em que os personagens atravessam por um período curto. Seus personagens escolhem parar em lugares onde eles poderiam apenas transitar. E eles permanecem brevemente ali…

Anocha: Sim, eles estão em trânsito, na verdade. Não é como um lugar permanente. Eu penso que a natureza é muito cruel… Eu acho que muitas pessoas têm ideias românticas sobre a natureza e sobre tudo isso… Mas é um lugar cruel. Quero dizer, estar na floresta, no mar, no oceano… Esses são lugares perigosos. Eu acho que seres humanos não foram feitos para viverem na natureza a todo momento.

Laís: Em História Mundana, nós vemos imagens do cosmos, de forma experimental. Em Como.Amor.Verdadeiro, uma mulher retorna após a morte. Você poderia comentar como esses aspectos se relacionam com as tradições hinduísta e budista?

Anocha: Eu não sou um pessoa religiosa, é mais como se eu fosse produto do meu ambiente, a Tailândia, que é um país onde prevalece o budismo. Então, eu o vejo mais como minha consciência, ao invés de ser algo religioso. Em Como. Amor. Verdadeiro, a mãe retorna depois da morte, mas ainda se aparenta jovem porque é assim que a filha se recorda dela. A vida após a morte é uma crença na Tailândia. Todo mundo acredita nisso.

Laís: Para mim, há algo muito especial nisso. Seu filme se chama “História Mundana”. Mas nós vemos que há algo além da vida ordinária. Há algo de extraordinário no cotidiano. Há algo similar em Como.Amor.Verdadeiro. Há situações que não são explicadas, não são visíveis, quando a mãe morta retorna e cochicha no ouvido da filha, sem que possamos escutar o que é. A dúvida e o inexplicável também aparecem na conversa do casal que se encontra na saída de um filme no cinema. Eles se perguntam: “Esse é a vida real? O que é a verdade?”. Para você, o cotidiano é extraordinário?

Anocha: Eu acho que eu estou interessada em encontrar algo de especial no cotidiano. Na verdade, sobre o título de “História Mundana”, eu gostaria de colocar juntas duas palavras que são um pouco contraditórias, se você prestar atenção. Porque “Mundano” sugere algo que é muito comum, diário. Mas “História” é supostamente algo importante, algo que é significativo para ser escrito, certo? Mas, para mim, eu gostaria de destacar na vida diária as cenas em que os personagens estão lavando os pratos, limpando a casa, essas coisas… Ninguém escreve a história a partir disso. Mas por que não? Por que não? Quando nós estamos lendo textos históricos, eles apenas nos contam sobre aquilo que eles consideram importante, incidentes ou eventos. Mas não tem como saber o que realmente aconteceu naquele dia. Sabe, saber mais sobre a pessoas envolvidas, como eles tomaram café da manhã. Isso é algo que me desperta curiosidade.

Laís: Durante o 6° Olhar de Cinema, eu a ouvi mencionando e comentando sobre amor algumas vezes… Como você pensa que o amor está presente em seus filmes? Você mencionou o amor pelo cinema, o amor pela humanidade…

Anocha: Mais recentemente, eu também comecei a pensar sobre o amor quando nós cooperamos. Eu acho que fui abençoada no passado por um grupo de amigas que me apoiaram. Eram todas mulheres! Sabe, não era algo que eu estava consciente no início. Mas eu comecei a pensar mais e mais sobre isso. Mas, estranhamente, eu não sei se eu posso usar a palavra “amor” para falar disso… Ou, talvez, eu pense que “amor” não é uma palavra tão forte assim que eu não possa usá-la para falar disso. Com o cinema, eu tenho uma relação de amor. Com o cinema não é só amor… Em Dao Khanong nós podemos ver isso. Também é uma crítica sobre o que o cinema é. Mas eu acho que isso que é interessante… Eu não quero amar algo a ponto de me tornar cega, sabe? O amor não deve ser isso…

Laís: O amor é complexo…

Anocha: Sim, o amor é complexo! Ele não deveria te deixar cega para o fato que há complicações… Mas, com a amizade feminina, eu não sei se é essa a palavra que eu queira usar… Talvez seja “laço” ao invés de “amor”.

Laís: Durante a sua masterclass, você disse um pouco sobre como o trabalho de Abbas Kiarostami influenciou o seu. Você poderia falar um pouco mais a respeito disso?

Anocha: Ele também tinha essa proposta de criar realidades… Acho que eu peguei isso do Close up. Nós podemos explorar isso em outros filmes também. Você viu Cópia fiel?

Laís: Sim, eu vi…

Anocha: Você gosta?

Laís: Sim, eu gosto.

Anocha: Eu também! Muitas pessoas não gostaram desse filme, em comparação com outros dele, mas eu gosto. Então, é uma questão de criar realidades… E eu acho que isso é viciante, de algum jeito! Uma vez que você começa, você quer ir mais fundo e mais fundo. Em Close up, Kiarosami convidou pessoas reais para interpretarem outra vez o que elas já haviam vivido. A vida e o cinema não podem ser separados.

Laís: Os seus filmes também parecem ter reflexões sobre o que o cinema é, sobre o que ele deveria ser. Como seus filmes nos mostram as formas do cinema interagir com a vida?

Anocha: Eu acho que mais e mais, com cada filme que eu realizo, eu começo a pensar que minha existência é influenciada por aquilo que o cinema é. Mas eu acho que é normal que, uma vez que você comece a realizar filmes, o cinema comece a tomar conta da sua vida. É o jeito que funciona. Agora, eu vivo a minha vida como realizadora. E, como resultado, o que eu faço é também uma reflexão sobre a vida que estou vivendo com o cinema. E penso que é por causa disso que eu não faço uma distinção entre o documentário e a ficção. Eu sinto e penso sobre mim da mesma maneira que o faço com o cinema. É tão parte de mim agora que eu não consigo pensar como a vida seria se eu não estivesse fazendo filmes.

Laís: Querida Anocha, obrigada por seu tempo e paciência. Foi um prazer conversar contigo.

Anocha: Obrigada você!

Por Laís Ferreira Oliveira