Olhar o duplo

As Duas Irenes (2017), primeiro longa-metragem de Fábio Meira, é um filme atravessado pela noção de duplo. Ao lado de uma trama que desenvolve a relação entre duas garotas de 13 anos, batizadas com o mesmo nome e que descobrem ser filhas do mesmo pai, a composição visual intensifica o espelhamento das personagens que dão título ao filme. No entanto, há uma fissura no reflexo do duplo. Isto implica dizer que o olhar entre as personagens não será de identificação imediata, mas aberta a uma cisão a partir do estranhamento produzido quando uma delas desvela o segredo do pai, um homem provedor que mantém uma segunda família em paralelo. Para que a ponte entre as duas personagens se estabeleça, é necessária uma ruptura: não é por acaso que o filme começa com uma das Irenes a lançar uma pedra na janela da casa da outra Irene. O vidro se estilhaça e os dois mundos deixam de ser intransponíveis.

Há muitas distâncias no estilo de vida das duas Irenes. Uma é filha de uma família tradicional abastada, com mais duas irmãs e uma mãe que preservam os bons costumes, desde se portar bem à mesa até se vestir com roupas discretas. A outra mora em uma casa mais simples, com uma mãe costureira, que permite à sua filha única maior liberdade e menos imposição de regras. A distinção de classe é enfatizada pelas cores das roupas e dos ambientes domésticos: a primeira com matizes brancos e pastéis, a segunda com estampas coloridas. Há também diferenças no modo como cada uma se relaciona com o próprio corpo: uma é franzina e usa vestidos longos e frouxos, a outra é robusta e usa tops e blusas com decotes.

Pelo modo como explora o desconforto com a autoimagem e a curiosidade de olhar para o outro na fase da pré-adolescência, As Duas Irenes se aproxima da dramaturgia de coming of age de Lírios d’Água (2007), primeiro longa-metragem de Céline Sciamma. O filme francês é costurado por planos em que a protagonista observa atentamente, às escondidas, o que acontece fora de campo, em ressonância com as cenas do longa de Fábio Meira em que uma das Irenes olha por meio de frestas, entre paredes, por trás de muros e árvores. Os cruzamentos entre os dois filmes também pairam nas sequências de interação com os garotos, em especial a da praça, quando uma das irmãs toma a iniciativa de flertar e beijar um paquera, deixando a outra Irene isolada e afastada.   

Enquanto Lírios d’Água desenvolve a relação entre Marie e Floriane pela descoberta da sexualidade lésbica, a interação entre as duas Irenes passa pelo estreitamento dos laços de irmandade. É uma aproximação fortalecida pela ênfase na potencialidade do olhar, a partir de estratégias visuais materializadas pela diretora de fotografia boliviana Daniela Cajías, que apontam para a construção da imagem do duplo, como a cena em que acontece o primeiro encontro das duas personagens, mediado por um espelho em que uma das Irenes está de costas e a outra é vista em desfoque e, logo depois, quando Irene está sozinha no quarto e sua própria imagem refletida está duplicada.

As Duas Irenes opta por não usar o registro melodramático durante o processo de descoberta do segredo. Pelo contrário, os gestos são discretos, os diálogos carregam silêncios e as ações são entrecortadas por pausas e falas incompletas. As escolhas de mise-en-scène aprofundam as posições dos personagens. Durante as refeições à mesa na casa abastada, o pai aparece sempre ao centro do quadro e, quando está ausente do espaço familiar, Irene ocupa seu lugar. É justamente uma troca de posição que desencadeia o desfecho do filme, que surpreende por gerar o momento de maior instabilidade da narrativa, sem cair na exposição do choque de uma revelação.

Irene e o seu Pai (As Duas Irenes, 2017)

Irene e o pai (As Duas Irenes, 2017)

Por Camila Vieira