Vai Malandra: o poder da bunda e o prazer do excesso

Vocês pensaram que eu não ia rebolar minha bunda hoje, né?
Anitta¹

No dia 18 de dezembro de 2017, Anitta lançou o clipe da música Vai Malandra e consolidou-se como a maior estrela pop brasileira da atualidade. O vídeo foi um acontecimento midiático sem precedentes, quebrando diversos recordes: tornou-se o clipe brasileiro mais visto nas primeiras 24 horas de lançamento no YouTube ao bater 14 milhões de visualizações e, também, o clipe brasileiro a ultrapassar mais rápido 1 milhão de curtidas. Tamanha projeção resulta não apenas do trabalho empresarial de longo prazo construído pela própria cantora nos últimos anos, mas também de uma aposta estratégica concentrada nessa obra em especial. Veremos, a seguir, como Anitta conciliou escolhas econômicas e estéticas na realização do clipe, de forma a encerrar o ano como dona e proprietária do país inteiro, ou “a única coisa que tem dado certo no Brasil”.²

Desde 2009, MC Anita (então com 16 anos) começou sua carreira publicando vídeos de covers e danças na internet e, posteriormente, cantando em bailes funks. Nos primeiros anos da carreira, manteve sua sonoridade próxima desse estilo musical que é relativamente externo ao mainstream, com músicas gravadas a baixo custo e performances apresentadas em palcos nos subúrbios da região metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo a pesquisadora Mariana Gomes Caetano, “o funk carioca se formou sobre bases masculinas ao longo das décadas, com as mulheres ocupando espaços reduzidos.” (CAETANO, 2015, p. 71) No trabalho My pussy é o poder – Representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural, a autora descreve um cenário bastante complexo:

Para além da indumentária, é importante ressaltar que a negociação com a sexualidade – ou a sensualidade, o erotismo, a pornografia – por parte das mulheres funkeiras é um aspecto da identidade das funkeiras como artistas. As MCs carregam alguns dos estigmas que os homens funkeiros também carregam, como a ideia de que eles não são artistas de verdade, fruto de um questionamento sobre a qualidade técnica do funk enquanto gênero musical; o estigma da origem de classe e territorial; e da raça. Entretanto, elas também carregam o estigma de gênero que é representado pela questão da “sexualidade exacerbada”. Todas estas questões são partes constitutivas das tensões e negociações de uma identidade funkeira feminina. (ibidem, p. 71-72)

A pesquisadora enxerga as performances de funkeiras como Valesca Popozuda, Deize Tigrona e Tati Quebra-Barraco como atos de resistência que afrontavam, desde os anos 2000, o modelo de feminilidade ideal. Suas letras eram agressivas e a forma de cantar enérgica, despreocupada com um certo bom gosto burguês e branco: “Se eles quer que você mame, manda eles te chupar”, “Eu dou pra quem eu quiser, que a porra da buceta é minha.”³ Essas personagens falavam abertamente da própria sexualidade, como forma de tomar as rédeas do próprio corpo, a despeito do machismo estrutural em que estavam inseridas.

MC Anita também tinha a performance corporal sexualizada como uma marca de sua persona quando começou a ser reconhecida nos anos 2010 – ela se orgulha de dizer que criou o movimento do Quadradinho de 4, por exemplo. Contudo, distinguia-se das funkeiras acima mencionadas por preocupar-se com uma virtuose vocal (semelhante às MCs Sabrina e Perlla) e por fazer o tipo menina má, meiga e abusada, como a própria intitulou suas canções, já assinando como Anitta. Ela não tem um lar para gerir, filhos para criar ou marido para brigar. Sua persona está mais próxima da linhagem de musas como a Kelly Key no início da carreira e das jovens divas pop contemporâneas, como Ariana Grande e Taylor Swift. “Rebolo, te olho/ Mas eu não quero mais ficar/ Eu admito que acho graça em ver você babar”.4 Uma mulher frívola e independente que não ataca de frente as estruturas patriarcais; vive de comer, malhar e amar, seduzindo as pessoas por onde passa, hipnotizando-as com o seu “talento” e se divertindo com isso.

Assumindo essa figura mais facilmente assimilável pela sociedade, a jovem cantora mudou progressivamente sua estética musical, aproximando-se do pop norte-americano e, em cinco anos, lançou três álbuns, dezenas de videoclipes e cresceu vertiginosamente na indústria musical. O projeto de internacionalização que culminou em Vai Malandra já era esboçado por ela desde o clipe de Meiga e Abusada, quando convidou Blake Farber (diretor de clipes da Beyoncé) para dirigir e foi até Las Vegas gravar cenas em locações parecidas com as do clipe I Hate This Part das Pussycat Dolls. Posteriormente, convidou Giovanni Bianco, diretor de arte parceiro de Madonna, para dirigir o clipe de Bang, cheio de efeitos especiais. Entre 2016 e 2017, a estrategista Anitta fez parcerias com diversos artistas internacionais e preparou o projeto Xeque-Mate, no qual o clipe aqui analisado foi a “jogada” final. “Temos aí uma mulher de 20 e poucos anos, que derrubou sua empresária, gerencia sua carreira e a intensidade de seu rebolado em um superclose”, afirma Rodolfo Viana, referindo-se ao plano de abertura do clipe Vai Malandra.

Neste trabalho, a cantora realiza um duplo movimento: por um lado, retorna para o estilo musical em que iniciou sua carreira, situando as gravações do vídeo em uma favela carioca; por outro, avança em seu programa de globalização, convidando dois artistas estadunidenses. Um deles é o rapper Maejor, que faz uma participação (juntamente com DJ Yuri Martins, Mc Zaac e Tropkillaz, brasileiros) e o outro é o fotógrafo Terry Richardson, contratado para assumir a direção do clipe. Conhecido por uma estética que une moda e pornografia amadora, Richardson já havia dirigido clipes de divas pop como Miley Cyrus, Beyoncé e publicado um livro com 350 fotos de Lady Gaga. Anitta foi muito criticada por essa parceria devido às recentes denúncias de assédios sexuais do fotógrafo, mas podemos perceber que, enquanto empresária, ela estava bastante consciente do convite que fazia ao americano.

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O sexo é um tema recorrente no trabalho de Richardson, assim como uma lógica de imagens que dialoga com a era das redes sociais, em que a fotografia digital passa a integrar os encontros sexuais e as imagens pertencem cada vez menos ao âmbito privado, como analisa Benjamin Halligan em Modeling Affective Labor: On Terry Richardson’s Photography (2017). Ao expor seu corpo, intimidade e fantasias em público, o sujeito se torna objeto e isso faz parte de um jogo potencialmente excitante. Autoexibição, autopublicação, autopromoção e autoexposição voluntária são alguns dos conceitos trabalhados pelo fotógrafo, o que se reflete no recente e prolífico mercado de fotógrafos sensuais, pagos por pessoas anônimas para produzir imagens eróticas delas próprias e depois postar no Instagram. A ideia de pornificação é constantemente usada para descrever os ensaios de Richardson, e pode ser uma chave interessante para entendermos a escolha deste diretor pela funkeira. No clipe de Vai Malandra, os corpos estão expostos, há um clima desinibido, bem humorado e safado perpassando todo o vídeo. Anitta aparece como uma mulher extremamente sensual, não mais aquela menina do início da carreira, mas tampouco está interessada em destruir o patriarcado. Ela quer mostrar a bunda, quer rebolar na cara do mundo inteiro, e isso está colocado desde o primeiro plano da obra.

Curiosamente, a grande repercussão na mídia sobre as supostas imperfeições da bunda de Anitta nessa imagem inicial dialoga também com o trabalho prévio de Richardson. Ao adotar a estética da pornografia amadora, o fotógrafo aponta para novas maneiras de consumir fantasias sexuais que vão além da pornografia “Playboy-centrada” (HALLIGAN, 2017, p.61), aproximando-se de registros caseiros:

os ensaios da Playboy contam geralmente com iluminação e foco suaves, as modelos quase recatadas. A estética de Richardson lembra o imaginário pornô barato dos anos 1970: abertamente centrado nos órgãos sexuais e iluminado para revelar o máximo de detalhes, inclusive marcas, nos corpos “reais” – uma estética que contraria a irrealidade da pornografia mainstream institucionalizada (com retoques no Photoshop, acabamentos, depilações, clareamento nos dentes, manipulação digital: amaciando a superfície e vincos do corpo). Isto é, as imagens se aproximam mais da reportagem que de fantasia, mais da atualidade e imediatismo do encontro que de atos encenados e performados dentro de uma narrativa erótica envolvente. (ibidem, p.68)

Trata-se de uma estética crua, que busca a sensação de estar diante de corpos “reais” de uma forma direta, sem manipulações e ilusões. Assim, com o plano de abertura do clipe, Anitta e Richardson retomam uma extensa tradição de imagens publicitárias da bunda brasileira e fundam um novo paradigma realista. A bunda não dança, apenas caminha. A câmera lenta acompanha, deslumbrada, os movimentos das nádegas em primeiríssimo plano, passo a passo, os músculos, a malha do short vermelho, as pontas das tranças, as celulites que surgem e desaparecem enquanto o tecido adiposo das pernas chacoalha. Na entrevista concedida ao Leo Dias, Anitta justifica ter deixado as celulites para conferir realismo ao vídeo:

Eu coloquei coisas muito reais, quis mostrar a realidade ali como ela é! E quando eu vi que a minha celulite estava aparecendo eu pensei: Pra que eu vou ficar me escondendo? Eu não vou ficar perdendo tempo, maquiando, fantasiando… Gosto muito de ser verdadeira com meu público. E a minha vontade era causar autoestima nas mulheres mesmo. Eu queria que todas entendessem que mesmo a pessoa sendo artista, ela é uma mulher como todas vocês, mulheres! Eu não quis me esconder por trás do Photoshop por causa disso. Quero que o público veja mesmo a realidade…

Palavras como realidade e verdade aparecem várias vezes na passagem acima, tal como um repúdio ao tratamento da imagem na pós-produção, confirmando a busca por um realismo absoluto, sem filtros. O impacto das celulites de Anitta foi tamanho que moveu milhares de postagens de apoio, de repúdio e até mesmo de suspeita: aquela bunda é tão real que não pode ser dela. No programa de internet Hora da Fofoca Ao Vivo, a apresentadora faz uma enquete com seus espectadores: “Vc acha que a bunda que aparece no começo de ‘Vai Malandra’ é da Anitta mesmo?”, e gera 600 comentários. De fato, se fizermos uma análise minuciosa, veremos que a montagem do clipe nunca mostra dentro do mesmo plano a bunda com celulites e o rosto de Anitta, o que poderia ser uma indicação de uma possível dublê de bunda.

Essa imagem que excede as expectativas de um registro realista dos corpos materializa-se em todo o vídeo. A busca pelo realismo é tão excessiva que chega a ser artificiosa, resultando em uma imagem extravagante que flerta com uma sensibilidade camp, conforme apresentada por Susan Sontag (2001). Há uma valorização de objetos e adereços inusitados, uma estilização exagerada, que horizontaliza materiais baratos e caros e enfatiza o puro prazer das superfícies. Os cordões dourados com cifrão ostentados pelos homens podem ser de latão e isso não faz a menor diferença nesse jogo estético. Muitas unhas postiças e bijuterias brilhosas são misturadas com possíveis joias pelas mulheres, que pegam sol de fita isolante e reagem com surpresa e satisfação ao efeito do bronzeado na pele. Mais que uma tradicional piscina Tony, os personagens tomam banho em uma piscina improvisada na caçamba de um caminhão, plenamente conscientes do exagero e exotismo no qual estão nadando. O clipe exercita um olhar para o mundo como um fenômeno estético, acentuando a decoração, textura, sensualidade e estilo.

Diferente de outras funkeiras e dos outros clipes da Anitta que saem da favela para construir um cenário de exuberância, como o castelo de Valesca em Beijinho no Ombro, o colégio colorido de Ludmilla em Cheguei e todos os efeitos de computação gráfica aplicados no estúdio de Make Love, de Inês Brasil, aqui é a suposta realidade do morro que salta aos olhos. A diferença deste trabalho para outras representações audiovisuais está em um apaziguamento de conflitos comumente associados à favela, como a violência, o tráfico e a miséria. Todavia, é importante situar que o morro escolhido foi o Vidigal, um espaço que já ocupa quase um lugar mítico no imaginário carioca e que hoje vive um processo de gentrificação. Nessa favela que também é estranha a Anitta (ela foi nascida e criada em Honório Gurgel, na Zona Norte, enquanto o Vidigal fica na Zona Sul), a funkeira diz que pretende retratar a “realidade” e chama os moradores do local para participarem do trabalho junto com a equipe que mistura gringos e profissionais brasileiros. De tal encontro descompromissado com questões políticas, não resultam imagens de pobreza, mas uma produção de estilo e plasticidade, lançando moda e tendências a partir da cultura negra e favelada.

Uma cena emblemática do excesso incorporado pelo vídeo é a passarela de bundas enfileiradas tomando sol na laje com perninhas balançando: uma composição tão exuberante que remete às coreografias de Busby Berkeley, com todos os problemas de representação aí envolvidos. A diferença é que, aqui, o olhar não é capaz de possuir ou domesticar aqueles corpos. Eles já estão em um regime de autoexposição consciente, há prazer exibicionista, teatral, do artifício, do jogo. Como comenta a cineasta Sabrina Fidalgo, “As mulheres pretas faveladas gostam sim de mostrar os corpos delas, malhadas, magras, gordas e tal. Temos sim essa cultura do corpo, o país é quente, a música é quente, a dança é quente, qual o drama?” Anitta e Richardson não realizam uma ruptura com o olhar masculino historicamente construído no cinema. A bunda continua, eventualmente, sendo recortada do corpo, mas Anitta devolve o recorte para o corpo masculino também, como no plano descritivo que termina em um close da sunga vermelha e volumosa de Rodrigo Motta.

Brincadeira e ironia prevalecem nesta obra e a maneira jocosa como o Justin Bieber do Vidigal e Anitta realizam o gesto de “dar a língua” é bastante significativa. Eles não mostram a língua para atacar alguém, lamber algo ou para comunicar qualquer tipo de sentimento em relação a outra pessoa; simplesmente botam a língua pra fora e se divertem com isso, debochados. E a sexualização do corpo das mulheres é apropriado por Anitta nesse regime de gratificação visual, ela tem prazer em ser olhada e gosta muito da própria bunda. Como já vinha esboçando em outros trabalhos, “Não encosta, não me beija / Só me olha, me deseja / Quero ver se você vai aguentar / A noite inteira sem poder me tocar”.5 Aqui ela até deixa MC Zaac dar uns tapinhas, mas é uma escolha deliberada e eles parecem estar se divertindo. No artigo O que pode um funk?, Ivana Bentes coloca: “Deixem as mulheres brincarem com suas bundas, bucetas etc. E mais: deixem as mulheres ganharem dinheiro e projeção com seus corpos, no comando da própria monetização de suas vidas – e não sendo assujeitadas.”

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Ao mesmo tempo que reforça estereótipos e papeis de gênero, Vai Malandra realiza prazerosos deslocamentos. E talvez essa contradição seja justamente uma das potências do trabalho de Anitta. Em sua página no Facebook, Anderson França indaga os leitores: “Qual foi a última vez que você peitou botar nas redes suas próprias contradições pra jogo?” A funkeira evidencia tensões e disputas da sociedade brasileira sem apresentar soluções estruturais. Sua proposta é rebolar e se apropriar dos lugares antes centrados nos homens, subvertendo inclusive um dos ícones fundadores da mitologia carioca, que é o malandro. A malandra Anitta reúne suas manas para um baile final e celebratório. Fannie Sosa entende o twerking enquanto prática diaspórica, tal qual o blues, hip hop, soul e capoeira, nascidas na adversidade e que se destinavam a levar as pessoas a um outro nível de consciência. Sosa defende que “prazer é poder, de um jeito não-hierárquico. Esse poder orgânico é uma das instâncias políticas mais incríveis e subversivas. É direcionado à transformação pública de espaços: uma ferramenta para reunir nossos irmãos e irmãs, para conversar e mexer nossas bundas.” Podemos situar o rebolado do funk nessa mesma linhagem, uma prática de origem africana e feminina que está aí para ocupar espaços. Se Anitta vai permanecer nas periferias brasileiras nos próximos anos, se vai mudar sua sonoridade outra vez, se vai assumir um discurso feminista mais associado à militância, é impossível prever. Enquanto isso, ela segue o baile e vai brincando com o bumbum, tutudum, an an…

Notas:
1- Frase usada por Anitta durante os shows para introduzir a música Movimento da Sanfoninha.
2- Ver post no facebook do usuário Ben-Hur Bernard, de 18/12/2017.
3- Trechos de Abre As Pernas, Mete a Língua, de Tati Quebra-Barraco e A Porra da Buceta É Minha, de Gaiola das Popozudas.
4- Trecho de Menina Má, de Anitta.
5- Trecho de Sim ou Não, de Anitta
Referências:
CAETANO, Mariana Gomes. My pussy é o poder – Representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural. Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminens. Orientadora Profa. Dra. Adriana Facina, Coorientadora Profa. Dra. Raquel Moreira. Niterói, 2015
HALLIGAN, Benjamin. Modeling Affective Labor: On Terry Richardson’s Photography. In: Cultural Politics, Vol. 13, Issue 1, Duke University Press, 2017.
SONTAG, Susan. Against Interpretation and other essays. Ed: Picador (e-book), 2001.
Por Vitor Medeiros