Histórias que escrevem pessoas: narrar e amar

Apenas por um momento, convido vocês a imaginarem um mundo em que o amor apaixonado não exista. Nesse mundo imaginário também não existem histórias de amor. Muito menos, filmes sobre amor. Apenas imagine, por um momento.

É provável que, nesse pequeno exercício, a primeira imagem que tenha surgido seja de um mundo distópico, tanto numa batalha sangrenta quanto numa ascética ficção científica do futuro. E que imagens de palcos vazios, páginas em branco e telas pretas tenham surgido na sua frente. Imaginar uma produção artística sem amor talvez tenha sido mais difícil que imaginar um mundo distinto, um universo paralelo. O amor parece estar arraigado em cada canto das nossas rotinas, mas, na verdade, quantas pessoas se apaixonariam se nunca tivessem ouvido falar de amor?

Este ensaio pretende mostrar como a estrutura da ficção romântica, especialmente no cinema, está ligada à maneira como organizamos uma narração – o processo de selecionar e arranjar atos em sequência, compondo obstáculos em forma de conflitos – inclusive de nossas próprias histórias. À pergunta lançada acima, Rougemont (1983, p.147) responde:

Paixão e expressão não são bem dizer separáveis. A paixão se alimenta daquele impulso do espírito que, aliás, faz nascer a linguagem. Quando ultrapassa o instinto, quando se torna verdadeiramente paixão, ela tende ao mesmo tempo a narrar-se a si própria, seja para justificar-se, exaltar-se ou simplesmente entreter-se.

O autor, grande referência no estudo do amor romântico, acredita que tal afeto, uma invenção ocidental do século XII, foi uma retórica que encontrou respaldo nas sensibilidades da época. Criações literárias que deram consistência a uma tomada de consciência: “na falta dessa retórica, tais sentimentos certamente existiriam, mas de uma forma acidental, não reconhecida, a título de extravagâncias inconfessáveis, como se fossem contrabando” (ibdem). E nos perguntamos, sem resposta, que outros sentimentos hoje vagam pelos corpos em busca de uma nova retórica, uma nova narração onde se deitar?

O amor romântico não é uma reação natural, mas uma maneira de se comportar culturalmente aprendida. Diferente da paixão – a capacidade mais ou menos universal de se ter sentimentos de encantamento, ternura, se sentir atraído sexualmente – o amor romântico é uma característica do ocidente, “espera-se – e até mesmo exige-se – que os enamorados se envolvam em uma paixão sobre a qual não tenham domínio, antes que mergulhem em uma relação amorosa estável e profunda” (Lobato, 2012, p.102). Essa reinvenção da paixão sob o prisma de amor romântico tem suas origens no amor cortês, surgido na França do século XII. As canções de fin’amour, o fino amor, traduzido como “amor cortês” no século XIX, tratavam sobre um encantamento devotado a uma dama impossível, e o sofrimento decorrente que, ao mesmo tempo, era uma alegria, a joy d’amour. Na produção lírica de culturas anteriores temos registrado sentimentos de ternura, de desejo e de ciúmes entre pessoas, porém sem a crença de que essa desordem, que na verdade é uma estética dos sentidos, seja bem-vinda e necessária.

Caracteriza a lírica do amor cortês os muitos obstáculos entre o bravo cavaleiro e a dama casada, tratando de um amor que não se concretizava fisicamente, por isso idealizado, por vezes, trágico, tendo como obstáculo supremo, a morte. Quanto mais espetaculares os obstáculos, as canções assumiam o formato de poemas narrativos. A relação entre a narrativa e o obstáculo, em manuais de roteiro ganham os contornos de conflitos desejáveis na feitura de uma história.

Giddens (apud. Shumway, 2003, p.47) reconhece a relação entre o surgimento do amor romântico e do romance literário, já que ‘romance’ também significa contar uma história, “mas esta história tornou-se individualizada, inserindo a si mesmo e ao outro numa narrativa pessoal que não mantinha uma referência particular com processos sociais mais amplos. O surgimento do amor romântico mais ou menos coincide com a emergência do romance: a conexão foi a forma narrativa recentemente descoberta”.

O amor cortês deu lugar ao amor romântico abandonando o pequeno círculo das cortes europeias para ser um discurso majoritário na cultura do ocidente, assim como o romance se tornou a forma literária standard da ficção. As comédias Shakespearianas reforçam o paradigma do amor recíproco feliz, trazendo os finais felizes de romances pastorais para casais apaixonados que ao final celebravam casamentos como num festival. Após um longo caminho de obstáculos que comprovavam narrativamente a compatibilidade do casal, a felicidade poderia ser desfrutada. Os obstáculos aqui muitas vezes eram internos, e o casal precisava enfrentar seus próprios entraves para desfrutar da solução favorável. Seja numa ponta à outra do espectro1 de histórias de amor, o obstáculo recebe o papel central. Nossa ideia de amor fundada no obstáculo, ou seja, no conflito, produz um ideal de amor profundamente narrativo.

Na antiguidade e na idade média, a mítica em torno do amor era apresentada como um raio que atinge suas vítimas, ou uma flecha do cupido ou ainda como um fulminante efeito do filtro sobre dois amantes. É um poder “mágico”, irrecusável, irresistível. E seguiu sendo assim nas histórias do amor romântico, porém aos poucos se descolando da via mítico-religiosa. O amor não é mais uma vontade dos deuses, mas uma narração romântica. Histórias de amor demonstram como esse relâmpago, que abre a esfera da eternidade, se desenvolve no tempo narrativo. Paul Ricouer (1983, p.12) reconhece na criação narrativa esse intuito ordenador: “Vejo nas intrigas que inventamos o meio privilegiado pelo qual reconfiguramos nossa experiência temporal confusa, informe e no limite, muda”.  

O ato de apaixonar-se continuou sendo brutal, mas sua justificativa cada vez mais passou a ser narrativa, ou seja, sujeita a uma lógica de causa e efeito. Seja na comédia ou na tragédia, a narração de amor parece explicar, por uma aparente causalidade, uma experiência indescritível que beira o inarrável. Sem recorrer a explicações e aporias cientificas ou filosóficas, a narrativa de amor procura reordenar uma sensibilidade. Explica-se narrativamente pela interposição de obstáculos, cenas, descrições, imagens e som o que é o amor.

Há, portanto, um efeito pedagógico na narrativa romântica que, ao organizar os fatos de uma história crível, nos ensina a amar. Mas, normalmente, nos ensinam a amar de uma maneira específica, ou de uma forma mais do que de outras, já que “o amor conhece o regime das repetições” (Badiou, 2013, p.54). Canções, poemas, peças, narrativas literárias e cinematográficas, juntamente com outros elementos da cultura, ajudaram a padronizar comportamentos e expectativas em relação ao amor. Em especial, o cinema plasmou convenções de mise en scène, montagem, performance, trilha sonora e enquadramento que se mesclam às próprias convenções do discurso de romance. Como se movimentar, o que falar, como olhar para a outra pessoa, que momentos são importantes, quais luzes são verdadeiramente românticas, quais trilhas sonoras ecoam durante um beijo apaixonado. São diversas a convenções que a partir de imagem e som substituem a flechada dos deuses.

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Burt Lancaster e Debora Kerr em branco e negro se beijando na praia, Rock Hudson e Doris Day compartilhando uma tela ampla em Technicolor, Gene Kelly cantando e dançando na chuva, Cary Grant esperando no Empire State Building. Essas são algumas das imagens clássicas capazes de sequestrar nosso imaginário amoroso. São imagens hegemônicas, constantemente citadas e recriadas. Mas existem outras que sub-repticiamente podem surgir de quando em quando. O conceito de amor está sempre sendo negociado, ameaçado ou recriado.

Em Frances Ha (Noah Baumbach, 2012), a protagonista que dá nome ao filme (Greta Gerwig, também roteirista) descreve o sentimento especial no qual “é uma festa e ambos estão conversando com outras pessoas, e você está feliz e radiante, e você olha o lugar e encontra o olhar da outra pessoa… mas não porque você é possessivo ou num sentido sexual… mas porque… esta é sua pessoa na vida. E é engraçado e triste, mas apenas porque esta vida acaba e existe esse mundo secreto ali em público, sem ser notado, que ninguém mais sabe. Mais ou menos quando dizem que ao nosso redor existem outras dimensões, mas não conseguimos perceber. É isso que quero de um relacionamento. Ou apenas da vida, eu acho. Amor”. A partir desta imagem que também é uma cena, Frances tenta descrever o que espera desse sentimento que só ao final dá o nome de amor. Talvez por hábito.

Quero dizer que o amor pode ser um espaço mais democraticamente preenchido e, para tanto, há que se criar novas retóricas românticas. Narrativas ou não, ficções ou realidades que inventamos viver. As páginas em branco de um mundo sem amor, talvez estejam apenas esperando para que sejam escritas de forma diferente. E essas novas ficções (ou realidades) românticas poderiam de maneira recíproca nos escrever também. A tela preta aguarda ansiosamente novas imagens e sons para exibir o amor. Ou talvez aguarde algo ainda disforme ou anônimo que espera para arrebatar corpos e pensamentos. Apostar em recomeços, novos caminhos ou apenas as novas roupagens do afeto, como sugere o trecho a seguir de Fernando Pessoa (1986, p.320), sob o heterônimo de Bernardo Soares, com o qual nos despedimos deste ensaio:

O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe. Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
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Obra de Cillas Amaral

Imagem em destaque no topo: still de Frances Ha.
Nota:
1 Falamos espectro porque há muitas possíveis flutuações entre as perspectivas cômica/otimista ou realista/cínica ou pessimista/melodramática, ou ainda, possíveis combinações com pares distintos.
Bibliografia:
BADIOU, A. e TRUONG, N. Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
LOBATO, J. P. Antropologia do amor: do Oriente ao Ocidente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
PESSOA, F. Livro do Desassossego. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
RICOUER, P. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1995.
ROUGEMONT, D. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
SHUMWAY, D. Modern Love: romance, intimacy and the marriage crisis. New York and London: New York University Press, 2003.
Por Carolina Amaral