Pornochanchada, ambivalência e excesso: notas sobre “Giselle”

“Giselle escandaliza até o 3º sexo”. É esse o título da nota publicada no Jornal do Brasil (RJ) em 1980,¹ ano de estreia do filme produzido por Carlos Mossy e dirigido por Victor Di Mello. No texto, o autor desconhecido narra uma exibição teste de Giselle (1980) orquestrada pelos produtores especialmente para o “chamado terceiro sexo” no Rio de Janeiro. Para ter acesso à sessão, estar travestido era um pré-requisito, assim, “o cinema de 1.500 lugares foi pequeno e ficou absolutamente repleto de plumas e paetês”. Após dez minutos de aplausos e gritos durante os créditos finais, seguiram-se os comentários de que, “além de maravilhoso, o filme era mais audacioso e corajoso do que se podia imaginar”.

O fenômeno de Giselle (mais de dois milhões de espectadores²) remonta a uma série de filmes nacionais que enchiam as salas de cinema nas décadas de 1970 e início de 1980 – as pornochanchadas. Cunhadas assim de forma pejorativa pela crítica e pela sociedade em geral, esse gênero tipicamente brasileiro³ fazia seu sucesso comercial a partir das temáticas sexuais com altas doses de deboche e dos modestos valores de produção de seus exemplares. As camadas populares garantiam o retorno financeiro para as produtoras e assim se formava uma bem-sucedida experiência industrial cinematográfica. Nos setores intelectuais, por outro lado, a pornochanchada seria taxada como “politicamente ‘de direita’, por sua inconstância temática, conservadorismo formal e por desviar as classes populares de questões relevantes e da conscientização de seu papel histórico” (ABREU, 2006:190). O crítico José Carlos Avellar (1979) identifica as pornochanchadas, para ele produtos “absurdamente grosseiros” e “pouco importantes”, em uma relação de par com a ditadura militar vigente no período: “irmãs gêmeas de comportamentos opostos”. Seriam, assim, segundo a crítica e a elite intelectual da época, filmes conservadores na medida em que tematizavam a revolução sexual em curso ao mesmo tempo em que garantiam a manutenção das instituições e dos “bons costumes”.

Dada essa introdução, desenharei a seguir algumas notas sobre Giselle (1980), tendo como objetivo desconfiar das afirmações acima, e assim entender essa vasta produção de caráter popular como um amplo e ambivalente campo cultural de negociações que merece maior atenção.

(…) Em “GISELLE”, retratamos através de uma célula da nossa sociedade, a família, uma família qualquer, um momento da nossa realidade atual. Uma realidade de desencontros, desamores, promiscuidades, procuras e frustrações através do sexo, que por modismo e desinformações, passou a ser algo sem nenhum valor, ao mesmo tempo que inconscientemente, é uma tábua de salvação.

Se por um lado o conteúdo conservador dessa cartela que inicia e conclui Giselle parece existir para guiar as reflexões do que vamos assistir, indicando o sexo promíscuo e o “desamor” como características de uma sociedade em decadência, o filme que se passa entre elas surpreende ao lidar com o sexo em um caminho oposto.

A gama de contradições na qual as pornochanchadas estão inseridas se dá na própria tessitura dos filmes e em sua recepção pelo público e crítica. Em edição posterior do mesmo Jornal do Brasil (RJ) citado no início destas notas, uma resenha exprime as impressões sobre o tão comentado filme sob o título “Giselle ou a moral da moral”.4 Maria Lucia Monteiro, a autora do texto, conta como se sentia dividida entre aceitar o convite para a sessão privada do filme, temendo ser “apenas mais uma pornochanchada”, mas entendendo a possibilidade de encontrar “um filme de valor”. A autora enfim assiste ao filme e se surpreende positivamente. Em seu ponto de vista, Giselle é “uma das melhores coisas já realizadas em nosso país”, um filme “adulto e moralista”:

A moral está em simplesmente alertar o ser humano para um futuro triste, caso ele não se corrija e passe a buscar um sentido mais puro e menos fútil para sua vida. Assim, GISELLE pode ser considerado o filme que defende a moral e repudia tudo o que possa agredir nossos mais antigos valores.

A narrativa de Giselle acompanha uma série de relações afetivo-sexuais que se ramifica a partir da figura central da personagem título, que volta para a fazenda do pai após passar uma temporada na Europa. Diferente do que o texto da cartela acima transcrito parece indicar, a relação livre e transgressora que os personagens estabelecem com o sexo não culmina em um final condenatório ou a um retorno ao núcleo familiar como salvação e redenção. Uma chave de análise do filme pode se dar com base em sua aproximação a uma economia pautada pelo excesso como estratégia política e estética de engajamento corpóreo-sentimental. São muitas as possibilidades em que esse excesso fundante de uma matriz popular e massiva se opera em Giselle.5 Gostaria aqui de apontar especificamente o uso da simbolização exacerbada como uma de suas estratégias.

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Conforme diversos autores vão apontar ao pensar esse mecanismo nas narrativas melodramáticas, o uso óbvio de símbolos que se repetem exerce uma espécie de presentificação de valores na superfície do filme, assim como uma quase substituição de conflitos-chaves da narrativa. Trata-se, portanto, de uma obviedade estratégica na medida em que essa metaforização reiterativa atua de forma a espremer a superfície do texto, revelando os sentidos ocultos que estão além das aparências (Brooks, 1976). Essa “moral oculta” é operacionalizada a partir da simbolização, fazendo-se presente na dimensão da “vida comum”. Ao analisar o melodrama canônico de Hollywood cuja matriz se funda em uma economia excessiva, Elsaesser (1972) identifica que a simbolização vai operar também de forma irônica e crítica. As fissuras e contradições vão se construir na própria tessitura genérica dos filmes, quando a encenação e os símbolos exacerbados operam em contraposição ao enredo em si.    

Na primeira sequência de Giselle, logo após a cartela inicial, os trabalhadores da fazenda onde a trama se passa preparam os procedimentos para cruzar um par de cavalos. Giselle (Alba Valeria), Haydeé (Maria Lúcia Dahl), Angelo (Carlos Mossy) e Luccini (Nildo Parente), alguns dos personagens centrais do filme, assistem à cena enquanto trocam olhares que começam a estabelecer as tensões que vão se desenvolver ao longo da narrativa. Em um segundo momento, toda família assiste do alto da arquibancada a uma corrida de cavalos. Essas duas cenas já estabelecem uma relação simbólica de continuidade e oposição que anuncia os conflitos da trama. Por um lado, a reunião da família nuclear burguesa no evento de hipismo. Por outro, a cruza dos animais, procedimento que se dá fora desse espetáculo, mas que aqui também acontece sob o olhar do filme-espectador e dos personagens. A ironia nessa simbolização é produzida na medida em que ela antecipa os eventos do filme, onde o desvio da ordem patriarcal e heteronormativa a partir das práticas sexuais vai catalisar o desmantelamento da família como núcleo organizado. É nesse mesmo evento de hipismo que a família vai tirar a sua última fotografia em conjunto. De forma reiterativa, essa fotografia vai retornar ao final do filme, acionando uma série de saltos temporais em direção ao futuro e indicando o destino dos personagens. “Cada um passará a ser e a fazer exatamente aquilo que a fotografia revelar”, prenuncia o patriarca em seu discurso final. Assim, o primeiro plano no rosto de cada um dos personagens que compõe a foto coletiva, juntamente com o som do disparo do obturador da câmera, aciona uma série de frames congelados desses mesmos personagens em algum momento desconhecido no futuro. Um desses vislumbres que encerram o filme mostra Giselle exercendo sua sexualidade sem amarras em uma praia de nudismo. Dessa forma, a fotografia como símbolo da família nuclear burguesa é dada como superfície que revela a dimensão oculta que está além das aparências.

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Uma outra pista para a análise das pornochanchadas e, no caso, de Giselle, pode estar na encenação das coreografias sexuais e nas corporalidades que envolvem essas sequências. “Giselle escandaliza até o 3º sexo” narra como a “euforia incontrolável” da plateia foi aos poucos se dissipando: “a partir do momento em que Carlos Mossy (efusivamente aplaudido) faz amor violentamente com Ricardo Faria, todos passaram a assistir ao filme em absoluto silêncio”. Nesse sentido, vale ressaltar a importância de Carlos Mossy no quadro das pornochanchadas. Além da participação frente às câmeras, o ator exercia também a função de produtor. O sucesso comercial dos filmes da Vidya Produções (produtora de Mossy) se dava em boa parte em torno de seu nome e de sua figura, em um bem-sucedido exemplo da configuração de um sistema de estrelismo masculino brasileiro.

Essa persona do machão viril conquistador de mulheres tão fundamental ao negócio dos filmes é tensionada em Giselle a partir da relação homoafetiva de Angelo e Serginho. A sequência citada acima entre os atores Ricardo Faria e Carlos Mossy se dá pouco depois de uma briga de bar. Angelo, o trabalhador da fazenda, e Serginho, o filho da madrasta de Giselle, vão juntos à cidade comprar um maço de cigarros. “Bota aí uma estupidamente gelada e arranja um maço de cigarros para o meu amigo”, pede Angelo junto ao balcão. Três homens que estão sentados em uma mesa riem efusivamente e sem parar. Serginho então pede um cigarro “bem fraquinho”. As risadas se intensificam e tomam conta da banda sonora do filme. Um dos homens se aproxima e começa a mexer debochadamente no cabelo de Serginho. Esse gesto aciona a ação agressiva de Angelo, que pula em cima dos três homens e inicia uma briga. As risadas cessam e dão lugar a uma trilha sonora que embala a briga, onde o movimento de cada um dos golpes é distendido pelo uso da câmera lenta. Uma cadeirada nas costas derruba Angelo, que passa a receber chutes dos três homens. Apenas um tiro de revolver disparado pelo dono do bar espanta os agressores, e Serginho enfim se aproxima para ajudá-lo a se levantar. Já de volta à fazenda, Serginho passa um remédio nas costas machucadas de Angelo enquanto se desculpa por sua covardia: “eu não estou acostumado com isso, eu nunca briguei”. Dessa forma, o polo de desejos dos personagens se constrói baseado em uma contraposição também social, da fragilidade do jovem da cidade em oposição à virilidade do trabalhador do campo.

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A massagem nas costas inicia um jogo de sedução entre os dois – “Angelo, agora que eu estou vendo como você é forte!”; “Serginho, você tem uma mão de veludo!”. O tema musical de Giselle que acompanha quase todas as performances sexuais começa a tocar, já anunciando de forma óbvia e excessiva o desdobramento da cena. Serginho enfim dá um beijo em Angelo, que em um sobressalto se afasta. Esses poucos segundos de pausa em que os dois personagens se encaram traz à tona a suposta masculinidade viril do personagem de Angelo, em oposição à suposta fragilidade de Serginho. Uma reação agressiva por parte do primeiro se coloca como possibilidade em suspensão. Após uma breve troca de olhares, Angelo retribui o beijo de Serginho com intensidade dobrada. A performance sexual dos dois é interrompida por Giselle, que, sem saber o que se passa, entra na casa e os surpreende. Envergonhado, Serginho abaixa a cabeça e ameaça sair do cômodo, mas Angelo o segura pelo braço e por uma troca de olhares o incentiva a ficar. Giselle então tira a roupa e se junta aos dois. Nus, os três se beijam, se abraçam e gargalham energicamente. Essa risada inflamada que faz eco ao riso de deboche dos três homens no bar, em conjunto com a imagem dos corpos nus se roçando e a trilha sonora que toma conta da cena, trazem à tona uma força disruptiva operada por corporalidades hiperbólicas e ambivalentes. Nesse momento, Giselle, Serginho e Angelo são atravessados pelos símbolos e códigos que os qualifica, ao mesmo tempo em que os transbordam, a partir dos gestos corporais dos atores em cena e do gesto fílmico, em encontro com o corpo do espectador.

O sucesso das pornochanchadas frente ao público se relaciona com o papel pedagógico que desempenhavam junto às classes populares. Pedagogia que aqui entendo, junto com Mariana Baltar (2012), sob uma lógica do sensorial e do sentimental. O entrecruzamento desse sensorium e de uma matriz cultural pautada pelo excesso vai constituir na fundação do projeto de modernidade “um ‘lugar’ de interpelação e reconhecimento das classes populares” (MARTIN-BARBERO, 2009:30). Assim, a aposta que aqui proponho se resume da seguinte forma: em primeiro lugar, entender as pornochanchadas como fenômeno cultural popular e massivo. E isso não para encará-las como produtos submissos a uma ideologia dominante, mas sim como espaço cultural dinâmico e ambivalente. Em seguida, entender essa dinâmica a partir das mediações culturais em que o modo do excesso aparece como estratégia comum. No caso de Giselle, a música reiterativa e a simbolização exacerbada como articulações estéticas do excesso, aliadas ao sistema de estrelismo que familiariza o público com os rostos em tela, vão operar um engajamento corporal a partir da obviedade. Ao mesmo tempo, essas estratégias vinculadas a um sistema narrativo genérico, em conjunto com gestos e movimentos que irrompem das coreografias sexuais (no caso da sequência citada, a risada inflamada que toma conta da cena e se une à música), vão acionar forças criativas que se dão no encontro entre o corpo do espectador, os corpos em tela e o próprio corpo do filme (DEL RÍO, 2008). Giselle, assim como outras pornochanchadas exibidas no programa Como Era Gostoso o Nosso Cinema, do Canal Brasil, está disponível na íntegra em sites de compartilhamento de vídeo como o YouTube e XVideos (este último dedicado a conteúdo pornográfico). Dessa forma, a espectatorialidade desses filmes está hoje também interpelada pelo movimento fragmentário do selecionar, clicar, pausar, pular, voltar e trocar de vídeo; movimento que igualmente compõe essa gama de forças criativas corporais. Assim, a partir de uma aliança com o excesso e o melodramático, entender o espetáculo e a performance do corpo sob um ponto de vista afetivo pode ser uma poderosa chave de análise das pornochanchadas e de suas potências pedagógico-sensoriais.  

Longe da pretensão de fazer uma análise exaustiva de Giselle, o meu objetivo nestes breves apontamentos foi o de lançar algumas pistas para possíveis debruçamentos mais localizadas no gênero da pornochanchada, tendo em vista que os estudos feitos sobre esses filmes constantemente se centram nos seus esquemas de produção. Historicamente tidos como alienados, moralistas e endereçados exclusivamente ao público masculino e heterossexual, os “filmes de sacanagem” estão prontos para serem redescobertos. Sob outras perspectivas, o entendimento de suas forças de engajamento corporal, com atenção para as operações de manutenção e fissura da ordem patriarcal e heteronormativa, pode revelar processos culturais conflituosos e prolíferos.

Notas:
1 – GISELLE ESCANDALIZA ATÉ O TERCEIRO SEXO. Jornal do Brasil (RJ), caderno 1, página 20, set. de 1980.
2 – Exatamente 2.206.682. Dados da Listagem de Filmes Brasileiros com mais de 500.000 espectadores, 1970 a 2016 do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual da Ancine (Agência Nacional do Cinema).
3 – Para o debate sobre a pornochanchada como gênero brasileiro, ver FREIRE, Rafael de Luna. A ideia de gênero no cinema brasileiro: a chanchada e a pornochanchada. In. Estudos de cinema e audiovisual Socine, v. 10. São Paulo: Socine, 2010.
4 – Maria Lucia Monteiro. GISELLE OU A MORAL DA MORAL. Jornal do Brasil (RJ), caderno B, página 3, set. de 1980.
5 – Sobre as estratégias estéticas de uma economia do excesso, ver BALTAR, Mariana (2012).
Referências:
ABREU, Nuno César de. Boca do Lixo: cinema e classes populares. Campinas: Unicamp, 2006.
AVELLAR, José Carlos. A Teoria da Relatividade. In. BERNADET, J.C.; AVELLAR, J.C.; MONTEIRO, Ronald. Anos 70: Cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979.
BALTAR, Mariana. Tessituras do Excesso: notas iniciais sobre o conceito e suas implicações tomando por base um Procedimento operacional padrão. In. Significação, n. 38. São Paulo: USP, 2012.
BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Balzac, Henry James, melodrama and the mode os excess. Yale University Press, 1995. (Edição original: 1976).
DEL RÍO, Elena. Deleuze and the cinemas of performance: Powers of affection. Edinburg: Edinburg University Press, 2008.
ELSAESSER, Thomas. Tales of Sound and Fury. Observations on the family melodrama. In. GHLEDILL, Christine (org.). Home is where the heart is. Studies in melodrama and the woman’s film. British Film Institute, 1987. (Edição original: 1972).
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.
Por Luciano Carneiro