Variações do político: sobre “Nada”, “Registro”, “O golpe em 50 cortes ou a corte em 50 golpes” e “Vaca profana”

O que há de político no cotidiano? Quais são as imagens que, juntas à vida diária, podem responder à densidade do que vivem as pessoas comuns e aos dilemas de pessoas que habitam lugares periféricos? O que pode o cinema quando os lugares de discurso e da representatividade política parecem esgotados? Como falar de si pode alcançar algum outro?

Levanto essas questões para que possamos nos aproximar de quatro curtas exibidos na 21a Mostra de Cinema de Tiradentes: Nada (Gabriel Martins, 2016), Registro (Daniela Santana, 2017), O golpe em 50 cortes ou a corte em 50 golpes (Lucas Campolina, 2017) e Vaca Profana (René Guerra, 2017). Em Nada, a protagonista diz a sua amiga: “Tudo que eu falo, tudo que eu penso as pessoas acham que é bobagem (…). Eu quero poder não saber também”. Na fala de uma garota de dezoito anos que é convocada – pela escola, por uma lógica de ensino, em algum grau por sua família – a ter algum projeto para o futuro – o que se encontraria com aquilo que seria esperado de alguma lógica de formação orientada pela necessidade do trabalho -, o discurso e a subjetividade de si emergem como contraponto político. Esse gesto de se voltar para uma história particular oferece uma outra maneira de entender a recente reorganização do acesso às universidades no Brasil, em que a adoção do ENEM e do SISU como processos seletivos foram defendidos – pela mídia, pelo Estado, por pesquisas – como responsáveis pela pluralização do acesso às universidades, beneficiando as classes sociais mais baixas. Nesse caso, podemos convocar a conversa no horário do almoço entre os pais da garota e Bia, em que o pai lhe diz que ela teria em mãos a primeira oportunidade de ingresso ao ensino superior no histórico dos seus parentes. Quando Bia afirma que deseja fazer “nada”, responde à voz da pedagoga que reverbera por auxílio de uma máquina – um microfone que apresenta microfonia e chia -, ela aponta para uma perspectiva outra e contrária à uma lógica desenvolvimentista e de progresso que não se atentaria ao que acontece na vida de uma jovem, considerada em sua individualidade e singularidade. No número dos candidatos que fazem uma prova, no volume de novos ingressos, não há espaço para prestar atenção à cada rosto, à cada dúvida e à cada desejo que possam ter esses jovens, o que Martins nos mostra na sequência da sala de aula. Nela, cada um dos alunos aparece em plano médio dizendo do que almeja como profissão ou das dúvidas em relação à escolha da trajetória do futuro. Da mesma maneira, quando vemos a sala em que os estudantes realizam o Enem, prestamos atenção, a partir do olhar de Bia, em como cada um daqueles que estão ali reagem à lógica de um exame exaustivo: uma moça parece estar prestes a chorar, outra balança a perna de forma ansiosa. No discurso oficial e de progresso do Estado, parece não haver respostas para aquilo que Bia vivencia como dilema e dúvida em relação ao seu futuro. Ela só encontra diálogo quando vai para a rua, pega um ônibus para um lugar qualquer e conversa com uma desconhecida, que parte de sua experiência individual para aconselhar a garota que tem dúvidas sobre o futuro. Bia pergunta a Azula se valeu a pena ir embora, a resposta não é dita: Azula olha-a fixa e sóbria, evidencia que algumas respostas não são rápidas e nem imediatas. Dizer do passado, apontar para o futuro é mais complexo do que aquilo que pode ser transmitido e dito por um microfone de uma pedagoga, enquanto ela se coloca preocupada com o futuro profissional daqueles jovens.

Nada (Gabriel Martins, 2016)

Nada (Gabriel Martins, 2016)

A experiência de si para se direcionar ao público também aparece em Registro. Nele, a partir de variações num único plano, Santana ensaia sobre a natureza do cinema – especialmente no caso do uso do dispositivo como linguagem. Inicialmente, acompanhamos a diretora tentando ajustar o foco da imagem que vemos, ao mesmo tempo em que existem pequenas variações de enquadramento. Ela nos diz: “Eu acho que esse é o máximo de foco que eu consegui, mesmo assim cortando a cabeça”. “Cortar a cabeça” é cortar o rosto, colocar em fricção aquilo que poderíamos associar à identidade e pessoalidade de uma mulher, de um eu. Esse gesto se aproxima da obra La chambre (Chantal Akerman, 1972), em que a diretora coloca a câmera para circular em loop em panorâmicas que, no decorrer do filme, vão diminuindo de amplitude e revelando menos do espaço em que a diretora belga ocupa e, paulatinamente, aproximando-se mais do corpo e do rosto dela. De forma semelhante, no curta de Santana, temos antes as imagens do espaço e uma atenção à plasticidade daquelas imagens para, em seguida, termos seu rosto e a sua voz na centralidade do quadro. Ela nos diz: “Percebo que minha relação com a câmera é longa. É um amor muito intenso, mas não definido. Eu não sei (…). Antes, eu não enxergava você, enxergava detrás de você”.  A dificuldade de compreensão dessas imagens podem ser aproximadas do que também disse Jonas Mekas em diversos dos seus filmes. Em As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (2000), por exemplo, o diretor lituano comenta sobre as imagens que decide montar distanciadas de uma perspectiva cronológica: “Eu ainda não as entendo e eu realmente não desejo entendê-las” (MEKAS, 2000). Em atrito com a compreensão, a experiência  aparece, sem quaisquer promessas de grandes eventos ou acontecimentos. Em outro capítulo desse filme-diário, a voz de Mekas ensaia e comenta aquelas imagens da vida diária e cotidiana: “Você [referindo-se ao espectador] deve agora ter compreendido que está um tipo de obra prima do nada. Nada. Você deve ter notado a minha obsessão com aquilo que é considerado nada, no cinema e na vida, nada muito importante. Todos nós procuramos por coisas importantes. Coisas muito importantes. E não há nada importante, nada. São apenas cenas diárias, pequenas celebrações e alegrias. Nada importante. É tudo nada” (MEKAS, 2000). O você convocado por Mekas aparece também na obra de Santana, mas configurado com algumas diferenças. Santana diz: “Eu sempre converso com você”, referindo-se ao dispositivo e que “Eu falo para mim, eu falo por você”.  O emprego do dispositivo como vocativo aparece em um instante específico do filme; no seu curso, porém, pode assumir também a figura do espectador, que vê aquela mulher que compartilha suas dúvidas acerca de sua trajetória com e pelo cinema. De uma forma que é rígida – um plano e a relação da mulher com essa câmera -, é inaugurado um lugar de liberdade, provocado pela reflexão dessa mulher sobre a imagem no instante em que ela é produzida. Nesse caso, como também afirmou Mekas, não parece existir a expectativa de alguma conclusão ou resposta: Santana conclui que não há nada além, depois de fazer um pequeno retrospecto de como se relacionava com as imagens do cinema e a qual final elas poderiam conduzi-la. O ensaio, da tradição da literatura até o cinema1, tem como características o trabalho da experiência individual a partir do contato com uma dimensão pública, em que o eu é colocado em perene construção, atravessado por processos de subjetivação que se colocam em direção contrária à afirmação de qualquer identidade. Realizar um ensaio no universo contemporâneo das imagens se coloca em atrito como uma lógica de fazer imagens audiovisual de si a todo momento – o que é manifesto nas imagens de selfie, nas stories que têm tempo para desaparecem e que almejam mostrar a vida enquanto ela acontece. Na obra de Santana, isso acontece na medida em que o eu não está sendo mostrado de maneira concluída, encerrada ou orientada sob alguma lógica de espetáculo, mas se oferece ao outro a fim de explorar, modificar e oferecer possibilidades para aquilo que nele é lacunar.

Registro (Daniela Santana, 2017)

Registro (Daniela Santana, 2017)

Em O golpe em 50 cortes ou a corte em 50 golpes, já não há imagem. O esvaziamento do que seria o rosto e a representatividade de um político chega à imagem. Vemos só uma tela preta, que organiza os discursos desses políticos e coloca-nos para ouvi-los. Na história recente do Brasil, os áudios e grampos telefônicos que circularam na mídia durante os processos de deflagração do impeachment e nas investigações da Lava Jato colocaram na esfera pública discursos que, a princípio, pertenciam à esfera privada e particular dessas autoridades. Nesse sentido, distanciados dos órgãos e pares que legitimariam esses governantes no meio público – a relação com a legenda de algum partido, por exemplo -, eles começam a se aparentar com poucas diferenças entre si. No contexto sociopolítico brasileiro contemporâneo, essa indiscernibilidade entre os projetos, ações e programas de governabilidade entre as diversas legendas aponta para a descrença em um sistema de democracia representativa. No processo de arqueologia e organização do diretor, são montados juntos o diálogo entre Romero Jucá e Sérgio Machado, em que é dito que a “solução era botar o Michel”, referindo-se à estratégia para impedir os avanços da Lava Jato e que culminara no processo de impeachment de Dilma Rouseff e diálogos entre a presidenta destituída e Lula. Algumas falas do ex-presidente selecionadas para compor o filme parecem confiarem entre si: em uma delas, questiona que era necessário à ex-presidente ter mais autonomia; em outra, chama-a de querida e pede-lhe para que, de alguma forma, tenha paciência diante da situação política em curso. Escutamos, também, o diálogo entre o ex-prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e Lula, em que o primeiro provoca o segundo, dizendo que ele não perdera a alma de pobre e zombando do lugar escolhido por ele para ter uma casa. E escutamos até mesmo uma fala de Michel Temer, que comenta que não tinha dimensão exata do que poderia significar governar o país. Na obra de Campolina, o último corte sonoro é descrito como inaudível, corresponde apenas a um ruído, no qual não é mais possível ouvir mais nada – nenhum discurso, nenhuma ameaça, nenhuma negociação. Já não há mais imagem, nem corpo, nem palavra: o ruído se torna parte constituinte do que ecoa na governança do país. Ele nada responde ou explica, apenas reverbera de forma chiada.

Dentre os filmes que escolhemos para este texto, Vaca profana apresenta uma perspectiva distinta de se colocar próximo a um outro e, de um microcosmo político, apontar para uma dimensão mais geral e ampla da política. Nesse curta-metragem, a aproximação com Nádia, travesti que deseja ser mãe, dá-se por imagens que revelam o seu corpo de maneira segmentada: em uma cena, um plano se aproxima muito dos seios implantados pela mulher, embora outro mostre a permanência do sexo de nascença. Nesse corpo que é mostrado de forma fragmentada, a barriga falsa de camomila para simular uma gravidez também é vista em um plano fechado, em detalhe, e torna-se constitutiva de como aquela personagem está sendo representada. Esse é um gesto que parece se revelar pouco sensível e atento à delicada questão que a obra decide trabalhar. Para uma mulher travesti, ter um útero é um horizonte difícil de ser alcançado, o que conflita com o desejo de ser mãe. No entanto, é possível a essa mulher ser mãe – podemos, por exemplo, estender nosso pensamento para o extra-fílmico, num contexto sociopolítico contemporâneo em que aumenta a quantidade de crianças que são adotadas por famílias distanciadas dos padrões heteronormativos. Na obra de Guerra, porém, a parte fisiológica do corpo dessa mulher é reiterada a todo tempo. Destaca-se, por exemplo, a cena em que Nádia e sua amiga vão ao cartório para registrar a criança e a protagonista tem que tirar sua peruca, aparecer-se vestida como homem, é obrigada a dizer seu nome de batismo. Essa situação é tão violenta que a leva ao desmaio; em seguida, vemos-na caída no chão, a roupa é rasgada e, outra vez, é evidenciado o corpo dessa mulher, escancarado em todas as suas diferenças. Essas imagens que mostram demais, mostram tudo, parecem ir em direção contrária à proposta que o próprio filme se coloca. Nádia pode ser mãe porque assim o deseja, como outras mulheres também anseiam; no entanto, o filme retorna, a todo momento, no que há de distinto no corpo daquela mulher. É uma lógica e regime de imagens cruel e perverso, que é encontrado em outros registros estereotipados e ultra sexualizados das travestis, em que a atenção que é dada ao corpo e a fisionomia dessas mulheres é muito mais intensa do que a individualidade e personalidade de cada uma das pessoas. Ao contrário dos filmes que comentamos nesse texto, se Vaca profana parte de um núcleo individual para tensionar um universo político mais amplo, termina por reiterar lugares de opressão e estereótipos já explorados por exaustão em outros regimes de imagem.

Vaca Profana (René Guerra, 2017)

Vaca Profana (René Guerra, 2017)

Nota:
1- Podemos, nesse caso, voltar àquilo que escrevem Theodor Adorno em O ensaio como forma e Timothy Corrigan em O Filme-Ensaio. Desde Montaigne e Depois de Marker, em que ambos os autores discutem como, no ensaio, a experiência de si é colocada como um elemento que tensiona e pode alterar aquilo que pode ser compreendido como importante e necessário de ser contado em uma história geral.
Referência:
As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (Jonas Mekas, 2000)
por Laís Ferreira Oliveira