Além do vísivel: “O olho e o espírito” e “Imo”

“O olho realiza o prodígio de abrir à alma aquilo que não é alma, o bem-aventurado domínio das coisas, e seu deus, o sol”.

O olho e o espírito –  Merleau Ponty

Uma cidade, uma paisagem e uma mulher estão prestes a desaparecer. A película revela e esconde: uma imagem dos morros, estoura, outra revela àquele território. Partindo de um ruído estranho – talvez pudessem ser os movimentos de uma hélice -,o toque de sinos anuncia: algo está por vir. Recife é visto de cima. Em Olho e o espírito (2017), Amanda Beça se relaciona com o espaço de uma paisagem e de uma cidade de forma experimental.

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O Olho e o espírito (Amanda Beça, 2017).

Uma mulher aparece sozinha, sentada na mesa de um bar. No entanto, não ouvimos as conversas nem os ruídos que seriam esperados dentro de um ambiente de um restaurante, mas o som onírico de sinos que permanecem ecoando, estridentes. Da mesma maneira, as imagens da praia de Boa Viagem, os andaimes ao lado de um prédio em construção, acompanhados dos ruídos estranhos que ouvimos, parecem apontar para algo que não está dado pela imagem. Passamos a nos relacionar com aquele território por meio de um suspense e mistério. Uma caminhada que seria comum – andar tranquilamente pelo centro da cidade – é colocada em suspeita, porque começamos a tentar, pela experiência sonora, encontrar o que naquilo que vemos é inesperado, imprevisto e suspeito.

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O Olho e o espírito (Amanda Beça, 2017).

Em Imo (Bruna Schelb Correa, 2018), as relações entre corpo e espaço também são atravessadas por um estranhamento e por aquilo que não era previsto. Uma mulher trans aparece cortando pedaços de maçã, enquanto um jornal se encontra no canto da mesa, onde há uma xícara, uma bebida e copo. Os vários braços que surgem por detrás da mulher dificultam aquele gesto, atrapalham a ação de conversar ao telefone. Esse corpo que se apresenta de maneira incomum aparece também na segunda personagem do filme, em que uma mulher mexe na areia de um jardim, arranca e enterra os seus olhos. O gesto de arrancar os olhos como ação simbólica que guia à uma perspectiva de ver aquilo que é invisível atravessa a história do cinema. Em O cão andaluz (1929), de Luís Buñuel, por exemplo, o olho cortado com a navalha inicia uma obra em que as relações com o espaço doméstico e com o corpo – a mão cortada e jogada na rua, a forma como homem e mulher interagem – também não são aquelas comuns ou esperadas. A personagem arranca os olhos, joga-os na terra e coloca um óculos escuros; depois, aparece comendo e ingerindo flores. Quando o visível é deixado para trás, outra experiência do espaço e da vida se faz possível.

Em Imo, o espaço doméstico como aquele em que aparecem elementos estranhos também é aquele em que uma mulher nua interage anda pela casa, senta, fuma um cigarro. Essa segunda personagem é colocada à mesa, junto a frutas e outros alimentos, enquanto homens ali se sentam. A forma como a luz e a direção de arte são utilizadas aproxima-as às obras de pintura barroca. Podemos, por exemplo, voltar a alguns quadros do pintor italiano Caravaggio, que viveu no século XVI. Nas obras desse artista, há um contraste muito grande entre as cores, no qual as variações entre claro e escuro são constituintes dessa atmosfera. Assistindo Imo, arriscamos aproximações com A ceia em Emaús, Vocação de São Mateus,  Rapaz com cestos de flores e Salomé com a cabeça de São João Batista – presentes, abaixo, nessa ordem. Variando entre cenas bíblicas e cotidianas, as obras de Caravaggio dialogavam com elementos de uma tradição religiosa e com cenas da vida diária. No contato com esses quadros, podemos levantar aproximações entre as cores dessa parte de Imo e, também, com a maneira como os alimentos estão dispostos na mesa. A diferença de Imo é que, nesse filme, o protagonismo de personagens mulheres modifica e altera certos lugares conhecidos e lembrados dessa iconografia. Da mesma maneira que as duas primeiras personagens relacionam-se com os alimentos de maneira inusitada, aqui uma tradição no trabalho com a imagem, luzes e sombra é apropriada de outra forma. O corpo que aparece em meio a esses elementos que dialogam com uma tradição imagética secular é de uma mulher que encontramos no tempo de agora: tem tatuagens, o cabelo cortado de forma desfiada. O tempo passado e o presente se encontram: nele, uma mulher está para ser digerida pelos homens, ao mesmo tempo em que pode entrar e sair daquela mesa.

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Quadros de Caravaggio

Nesses dois filmes, o território naquelas imagens não é imediato, nem resolvido, mas posto à uma relação inventiva que modifica e codifica a cidade de uma outra maneira. Em O Olho e o espírito, por exemplo, às imagens de um engarrafamento, a variações da película que mostram e desaparecem a imagem dos carros, segue-se aquela de um mosaico. A cidade pode ser o início de uma experiência estética, de um mundo imaginado, que não se encerra ali, no meio da calçada. Beça pinta a película, as imagens dos mosaicos agora aparecem de uma outra maneira. Quando se detêm nos elementos da paisagem, de relevo e geofísicos daquele espaço – as imagens de uma pedra, a árvore, os morros que estão ali -, os planos de O Olho e o espírito – em sua maioria gerais e médio – não são de apresentação ou de alguma categorização daquela paisagem, mas criam um imaginário a partir dali. Por meio das interferências de tinta na película, passamos a ver o espaço de Olho e o espírito com rajadas coloridas, que, depois, seguem até o corpo da garota. Corpo e território estão se aproximando, caminham para a indiscernibilidade: na imagem, estão sendo trabalhados e alterados sob a mesma linguagem. Em um determinado momento, o corpo da moça desaparece; a câmera realiza um travelling vertical, sobe para alcançar o céu. A partir dali, partimos para ter a experiência de contato com cores vibrantes.

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O Olho e o espírito (Amanda Beça, 2017).

Podemos aproximar o Olho e o espírito de algumas obras do cinema experimental. Em Visions in Meditation #3: Plato’s Cave (1990), Stan Brakhage mostra aproximações do relevo e da vegetação de um espaço também acompanhadas de sons que também são misteriosos e não encontram correspondência imediata com aquilo que ouvimos.

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Visions in Meditation #3: Plato’s Cave (Stan Brakhage, 1990).

Outra obra que podemos convocar é Meshes of afternoon, de Maya Deren. Nesse filme, o ambiente doméstico e ações cotidianas também são atravessadas por mistério e estranhamento. Em um determinado momento, vemos, por exemplo, a imagem de um pão, em que uma faca que o corte aparece sem que a alguém a segure e, também, sem que provoque sua queda. Ao longo dessa obra, é uma mulher que circula por ali, relacionando com aquele ambiente de forma inusitada.

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Meshes of the AfternoonMaya Deren, 1943

O corpo daquela mulher se relaciona de maneira muito inusitada e particular com aquele ambiente. A mulher tira uma chave de sua boca, depois mostra-a na palma de sua mão.

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Meshes of the AfternoonMaya Deren, 1943

Em O olho e o espírito, a mulher se encontra com uma poça d’água. A quebra da continuidade leva à repetição do gesto: a garota vai e volta, outra vemos-na atravessando a poça. A estranheza do gesto, dos membros do corpo, aparece também quando a menina mostra a mão com um líquido – seria tinta? seria graxa? seria sangue? -, que toma a palma e escorre dali.

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O Olho e o espírito (Amanda Beça, 2017).

Nas obras que abordamos nesse texto, é o trabalho com os elementos de linguagem do cinema e das artes que permite que apareça a imagem de uma mulher. Na obra de Beça, o uso de película, variando entre 16mm e 8mm, e o desenho sonoro apostam para uma invenção que é formal. Da mesma maneira, Imo se aproxima e dar a ver a imagens de corpos femininos que não são padrões a partir de uma consciência plástica da imagem. Nesses dois filmes, a palavra importa pouco: temos, antes, uma experiência sensível das imagens, em que a presença da luz, a apresentação do espaço e a montagem possibilitam esses lugares não comuns do corpo e da presença de uma mulher. Ambas as diretoras partem do cotidiano para imaginar um mundo outro, considerando o cinema como possibilidade de transformar – e sonhar – a partir do real, em que o discurso oral não é a prioridade. De forma imediata e não mediada, inserem-se de forma distinta dentro do cinema brasileiro. O contato com as imagens desses filmes nos convoca a pensar como uma obra pode se colocar em contato com a realidade sem ser apenas uma janela que a tudo mostra, a tudo revela. Trata-se, antes, de partir do mundo para ir a um universo do outro, criado e principiado pela imagem.

Referência: MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
por Laís Ferreira Oliveira