Uma história é um convite para um mundo – entrevista com Melanie Dimantas

Roteirista de um marco do Cinema de Retomada, o filme Carlota Joaquina – Princesa do Brazil (1995, Carla Camurati), Melanie Dimantas nunca estudou cinema formalmente. Ao longo de sua carreira, que data desde os anos 90, ela escreveu obras de diversos gêneros – como Irma Vap (2006), Maresia (2016), Olhos Azuis (2009), O Escaravelho do Diabo (2016), Minhocas (2013) e formatos (cinema, TV, programas educativos). Em nossa conversa, Melanie conta sobre os diferentes processos de escrita e momentos históricos do audiovisual brasileiro que viveu. “[Hoje] existe uma vida, pessoas pensando, e é algo que realmente não existia em termos de roteiro,” ela diz.

Alice Name-Bomtempo: Como foi a sua aproximação com o cinema, e especificamente o roteiro?

Melanie Dimantas: Eu fazia ciências sociais na USP e gostava muito de cinema. Eu frequentei muito o Cine Bijou em São Paulo, ia assistir vários filmes, um em seguida do outro. Tinha curiosidade, lia bastante sobre o assunto, lia roteiros… mas eu tava fazendo outra coisa, tava começando o mestrado em antropologia na Unicamp. Até que eu conheci o meu ex-marido. Ele era de uma família de cinema, filho do Roberto Farias. Aí ele começou a ler as coisas que eu escrevia por hobby, como crônicas e contos pequenos e tal. Eu sempre gostei muito de ler, e acho isso imprescindível para qualquer roteirista. Aí ele falou: “poxa, por que a gente não escreve um roteiro?” E aí a gente começou a escrever um roteiro meio bobo, que era o auge da nossa paixão. Nesse meio tempo, as coisas foram mudando e eu vim morar no Rio. Começamos a morar juntos e depois eu engravidei. Mas antes d’eu engravidar, ele escrevia de vez em quando o Você Decide (1992-2000, Boni) pra Globo, e eu escrevia com ele. E fui pegando assim… no começo, a formatação pra mim era uma coisa que não existia. Eu não datilografava, então eu escrevia tudo à mão e ele passava todo o texto para a máquina de escrever. Quando surgiu o computador, a gente comprou daqueles XP que era verdinho, sabe? Mas aí eu simplesmente travava na hora de escrever direto no teclado, eu não conseguia, eu achava que aquilo era horrível, que eu jamais fosse conseguir. Demorou um tempão para eu conseguir usar a ferramenta de digitar.

Alice: Fazia parte do seu processo escrever à mão.

Melanie: Sim, tudo. O Carlota Joaquina eu escrevi à mão.

Alice: Inteiro?

Melanie: Aham. E, assim, a Carla [Camurati] achava isso legal, porque ela também escrevia à mão, a gente escrevia todas as rubricas e depois a gente misturou. Na verdade, a gente discutia todas as cenas. Foi um roteiro super difícil de fazer porque a gente decupava. A Carla era muito insegura, primeiro filme, então todas as cenas eram decupadas. A câmera fica aqui, a Carlota dança aqui…

Alice: Vocês pensavam muito visualmente e tecnicamente a cena.

Melanie: Sim, muito. Isso me incomodava um pouco porque… não é função do roteirista. Nem digo “função”… mas não é o exercício de lente, etcetera, são coisas que você…

Alice: Vocês falavam de lente inclusive?!

Melanie: Tudo! Então era uma coisa muito louca. E, depois, o Breno Silveira fez a fotografia, e lógico que ele deu a camada e tal… ela se sentia realmente insegura. E o Copacabana (2001, Carla Camurati) também foi assim. Mas voltando à minha história: a gente tinha uma encomenda pra escrever um filme de verão. Então começamos a elaborar uma personagem que tinha muito a ver com o meu olhar paulista sobre o Rio. Quando eu mudei pra cá eu ficava chocada que todo mundo era artista. Então a gente foi escrevendo uma personagem assim, que ficava lutando por esse lugar no Rio. Só que a nossa história acabou virando uma crônica da cidade, eu acho que muito mais no estilo do Carvana que de um filme de verão e não emplacou com os nossos contratantes, eles ficaram putos. Porque não tinha asa-delta, não tinha cena de sexo, não tinha mulher de biquíni, não tinha praia, sabe. Era uma coisa totalmente outro Rio. Mas, com o tempo, o Mauro, que era meu ex-marido, ele começou a tentar levantar o projeto, e o projeto passou na Embrafilme, e a gente acabou fazendo. Esse foi o meu primeiro filme. Mas, nesse período todo, lógico que não foi a única coisa que eu escrevi. Sempre fiz tudo muito por intuição, eu nunca estudei cinema, eu sempre li bastante, mas sempre autodidata. Depois que eu comecei a dar aula, eu comecei a estudar um pouco mais, mas mesmo assim… manual, pra mim… eu sei como funciona, mas talvez não funcionem pra mim. Enfim, eu comecei a trabalhar com o Darcy Ribeiro, fazendo uns programas educativos durante muitos anos da minha vida, inclusive até um ou dois anos atrás na Multirio. Foi sempre um porto pra sobreviver. E eu curto fazer, acho que dá pra fazer coisas legais. Eu não tava escrevendo longa, mas tava escrevendo um monte de coisa quando esse filme ficou pronto, o Não Quero Falar Sobre Isso Agora (1991, Mauro Farias). Demorou muito tempo, uns três, quatro anos. Mas quando a gente foi pra Gramado, o filme ganhou melhor filme, melhor roteiro, melhor atriz, melhor som… e quando eu ganhei meu prêmio eu subi no palco e falei “ai gente, eu adorei escrever, foi meu primeiro filme, gostaria que vocês me chamassem, meu telefone é tal.” E aí a Carla me ligou pra fazer o Carlota.

Alice: Como foi o processo do Carlota especificamente?

Melanie: Foi muito louco, assim. Eu não conhecia a Carla, a gente começou a trabalhar, ela não tinha dinheiro, e essa é uma questão pra mim, e sempre foi. A questão da grana. É uma coisa indissociável do trabalho. Principalmente quando você não tá fazendo um projeto seu, quando você tá sendo contratado pra fazer o dos outros. E você encampa até certo ponto o sonho do outro. A Carla morava numa puta casa em São Conrado e eu tava grávida da minha terceira filha e a gente muito fodido, mas assim mesmo ela não tinha dinheiro. Então a gente trabalhou uns seis meses ou mais escrevendo o roteiro, e a gravidez cada vez maior, em troca de um lanche incrível a tarde. Ela falava “hoje eu fiz uma tortinha de banana”, pronto, eu tava felicíssima! E aí eu comecei a sacar que eu era a roteirista que se vendia por um pratinho. “Ai, ela me fez uma tortinha”, eu ficava lisonjeada. Aí eu chegava em casa, e o leitinho das crianças? Então eu ficava puta. Era um misto de sensações. Tinha hora que eu sentia muita raiva, só pela situação mesmo, não dela. Porque eu entendia, eu aceitei. Mas a gente tinha até acordado uma grana, tipo sei lá, dez mil dólares na época, quando o filme tivesse uma grana. Quando o filme começou a ser filmado, ela me ligou e disse que não tinha esse dinheiro. Disse que ia me pagar dois mil dólares, e na época o dólar tava baixo e eu ganhei isso. Foi uma loucura. Depois ela ficou com dor na consciência e me deu uma graninha a mais.
A gente tinha uma pesquisadora incrível, a Lara, e também um argumento, escrito pela Carla com o Angus, que era um cara que ela namorava. Ele era um historiador escocês que tinha vindo pra cá e quando conheceu ela, ela tava pensando num filme, e ele falou “ué, por que você não faz um filme sobre isso?”. Ela não conhecia a história da Carlota… e resolveu estudar. Contratou uma historiadora, que fez uma pesquisa enorme, e junto disso a Carla comprava livros de primeira edição de mil oitocentos e não sei o que. Então, a gente tinha muito material, e tinha que pensar como estruturar aquilo. Aí veio a ideia de fazer uma coisa meio fantasiosa para poder comportar a farsa que esse universo é. Por isso que é uma história que um tio conta para uma sobrinha num país distante… Assim, a gente ganhava liberdade pra falar o que quisesse, embora alguns historiadores achem um desserviço.
Então o roteiro foi nascendo. É um roteiro que foi importante, mas como roteiro mesmo tem umas coisas muito loucas. A Carlota some na metade do filme. Ela só aparece no final morrendo, tomando um veneno. Mas o tom farsesco dele virou uma coisa… engraçada, que fazia sentido. E foi um momento ótimo, o filme fez um sucesso absurdo e eu não esperava, era um período terrível. Eu acho que talvez a conjuntura do Brasil na época comportou esse espelho, o tema, e a gente tentar identificar onde tudo começou, onde o Brasil começou a dar errado. Tinha um apelo, que eu não intui. E não foi proposital. A gente achava engraçado, via um paralelo com o que a gente tava vivendo mas ali, na hora, eu nunca pensei. Achava que um filme histórico ia ser um naufrágio. E aí foi a maneira que ela distribuiu, como ela cuidou do filme. Ela cuidou como se fosse uma peça de teatro.

Alice: Como assim?

Melanie: A produtora dela, a Bianca de Felipe era uma produtora de teatro. Hoje, ela faz cinema, fez o Faroeste Caboclo (2013, René Sampaio) e tal. Mas ela pegava os filmes e colocava debaixo do braço. Tinha poucas cópias e ela ia para o Nordeste, ela conversava com os exibidores, ela tinha contato direto com a bilheteira, ligava para a bilheteira pra saber o borderô. Eram poucas cópias em poucos lugares e um cuidado quase de uma peça de teatro, sabe. Ela não foi para grandes circuitos. O filme estreou no Shopping da Gávea que era um cinema pequeno que tinha antigamente. O filme lotava sessões, foi aí que ela começou a ampliar. Isso foi um mérito da distribuição que ela mesma fez.

Alice: Você escreveu filmes de diversos gêneros diferentes, como é isso?

Melanie: Sim, pois é. Não tem nenhum gênero que eu me dou melhor, eu gosto de todos os gêneros. Mas assim, quando você é contratado pra fazer uma coisa, nem sempre você consegue dar o seu melhor. Depende de quem estiver envolvido no projeto. Se o diretor é amigo…. Por exemplo, O Outro Lado da Rua (2004, Marcos Bernstein) foi um projeto que eu tive muita liberdade de escrever. A personagem feminina principalmente. Mas tem algumas vezes que você sabe que você não adora a história, ou que tem um objetivo muito claro. Se você entrar no IMDB, vai ver no meu nome coisas que eu nem nunca fui ver no cinema. É o caso do Avassaladoras (2002),da Mara Mourão. Ela me mandou um roteiro e falou que tinha um problema. E tinha, realmente. Ela perguntou “você quer mexer? Tem duas semanas pra mexer.” Eu mexi um pouco, mas aí eu assino aquele roteiro? Não, entende, aquele roteiro é dela, eu mexi em algumas coisas. Teve uma outra vez, no Gatão de Meia Idade (2006, Antonio Carlos da Fontoura). Iam começar a gravar o filme mas o roteiro tinha 60 páginas, eles precisavam de mais 30. Aí a encomenda foi pra escrever 30 páginas. Eu ganhei bem por isso, escrevi mais 30 páginas, mas assim… o resto da história não é minha, não é minha visão. Então o trabalho do roteirista também é um pouco… não digo “técnico”, mas existe esse lado que é um expertise que você usa pra às vezes contribuir no projeto dos outros sem que você se envolva tanto.

Alice: Para você, como funciona essa relação roteirista/diretor?

Melanie: Depende do diretor, tem diretor que é chato. Às vezes, o projeto é legal mas o diretor pira. Aí o processo se estende, é sofrido. Por exemplo: escrevi o Maresia pro Marcos Guttman. Ele escreveu um pouco, mas na verdade fui eu e o Rafael Cardoso, um cara que é perito em arte. Eu adorei o conto, mas foi um processo longo e difícil. Ganharam edital de desenvolvimento, aí fizeram um primeiro tratamento… mas no fim tiveram uns 30 tratamentos, sei lá quantos. Porque a gente foi prum laboratório de roteiro, a gente ouvia muitas opiniões, aí o Marcos queria mudar tudo, e depois voltava tudo. Eu sei que o exercício do roteirista é pensar “E se… ao invés da gente tá sentada aqui a gente não fosse ali pro mato e de repente eu fosse mordida por uma cobra. E se esse lugar aqui não fosse tão cidade?” É tudo muito “e se…”, sabe, mas em algum momento você tem que fazer uma escolha. Eu sou uma pessoa muito fiel às escolhas que eu faço, sou taurina. Eu não gosto de ficar inventando. Eu invento uma vez e aí eu tento ir até o fundo daquilo. O que eu gosto nesses primeiros tratamentos é que eles são escritos a partir de escolhas que a gente fez depois de pensar muito. Por isso que eu defendo tanto eles.

Alice: Será que talvez essa sua defesa seja uma forma de preservar escolhas atreladas ao conceito do filme?

Melanie: Mais ou menos… acontece também d’eu defender cenas que eu gosto muito, por mais que elas sejam “dispensáveis”… em alguns casos eu até entendo que sejam. Mas aí você fica pensando: eu gosto tanto da cena, o que que tá errado? Será que tá errado? Talvez ela seja um respiro do filme. Porque assim, um filme é uma cena que leva a outra, que leva a outra que chega à conclusão e tá. Essa é a maneira normal de se fazer. Mas às vezes tem uma coisa que entra no meio. Você vai prum outro caminho inusitado, pra não ficar tudo tão… uma coisa consequência da outra. Mas é difícil. Porque você vai vendo a funcionalidade. Existe essa maneira de ver um roteiro, que é uma coisa meio funcional e quando você é colocado em coisas que você não tá envolvido você tende a fazer as coisas apenas funcionarem. É um lado mais técnico do roteiro. Mas e se for inusitado? Por exemplo, eu me lembro de quando eu vi Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007, Ethan e Joel Coen), e você tem ali uma história funcional, toda montada. Você tem o matador, o cara que tá sendo perseguido, e a gente vai acompanhando os dois. Chega num dado momento, o cara que tá sendo perseguido é morto por um grupo de mexicanos que não tem nada a ver com a história. Na funcionalidade isso seria um desastre, porque você espera um embate entre o bem e o mal. Se eu talvez lesse esse roteiro, eu ia falar “gente, mas… de onde apareceram esses mexicanos?” Os irmãos Coen são clássicos mas eles tentam dar uma dimensão de “gente, a vida é assim, de repente eu tô sendo perseguida pela polícia e morro atropelada por uma ambulância.” Não tem muita lógica. E é um pouco da visão de mundo deles que tá impressa num pequeno desvio do roteiro.

Alice: Um pequeno absurdo que na verdade não é absurdo.

Melanie: Pois é, não é absurdo! Que nem Um Homem Sério (2009, Ethan e Joel Coen). Termina com um furacão vindo. Ele tem câncer, a mulher dele largou ele por um amigo, o filho dele tem problemas com o rabino e não sei o quê, aí de repente ninguém tá mais dando bola pra vida dele e vem vindo um furacão.

Alice: O que você acha que, ao longo da sua vida, contribuiu pra sua forma de pensar narrativa?

Melanie: Tchekhov! Eu também gosto dos contos do Machado [de Assis], mas diferentemente do Tchekhov, os do Machado são mais morais, eles encerram uma ideia, uma mensagem. Os do Tchekov às vezes são assim, às vezes não. Eles são muito mais como os Irmãos Coen. Por exemplo, o conto da menina que fala “eu te amo” pro cara mas ela fala tão baixo que ele nunca escutou. E aí acabou. Ela se entrega, mas o cara não escutou. No conto Enfermaria 6, tem uma passagem em que o cara tá morrendo. E ao invés do Tchekov falar “e naquele delírio dele, ele via veados correndo…”, não. Ele começa o parágrafo assim: “Veados passam correndo.” Quando ele começa assim e só depois termina com o cara morrendo, você entende que tudo o que foi escrito estava se passando na cabeça dele naquele instante. Ele via imagens, ele tava delirando, mas o Tchekhov não escreve isso. É uma narrativa que eu acho muito cinematográfica porque te leva junto com o cara. Você vê, você não tem a distância de “naqueles instantes, ele via, não sei o que”, um ótimo escritor poderia ter escrito isso, mas aí você tá longe. É outra maneira de você entrar na história.

Alice: Você costuma ir pro set?

Melanie: Não muito, eu não gosto. Porque a minha relação com roteiro é mais literária mesmo. Por mais que eu saiba que roteiro não é literatura, todas as vezes que eu vejo as coisas que eu fiz eu me decepciono. Sempre vejo um defeito, não gosto do ator… eu gosto mais quando tá só na minha cabeça, com as coisas que eu quero. Eu imagino o ator, mas quando vai fechando… às vezes até é um ator legal, mas quando eu olho, não era bem assim que eu imaginava. Aí vêm aquelas imagens que você pensou e sempre tem uma frustraçãozinha.

Alice: Você comentou sobre como antigamente tinha muito menos roteiristas e hoje tem bem mais. Desde a época de Carlota, em 1995, quando quase não tinha produção audiovisual no Brasil, mudou muita coisa. Teve um certo boom, Lei da TV Paga e tal. Como você vê essa mudança no cinema brasileiro, especificamente no mercado de roteiro?

Melanie: É impressionante a mudança. É impressionante ver muitos ex-alunos da PUC fazendo coisas, e eu nem acho tudo bom, mas existe uma vida, pessoas pensando, e é algo que realmente não existia em termos de roteiro. Foi nos primeiros laboratórios que eu fui que a gente realmente começou a se ver. Paulo Lins, Bráulio Mantovani, Marçal… tinha umas pessoas que existiam. Foi daí que surgiu também a coisa da gente fazer uma associação, que começou como AC – Autores de Cinema, porque ninguém dizia que a gente era roteirista, diziam que a gente era autor. Sendo que eu não me sentia autora de muita coisa que eu fazia. Quando a gente começou a primeira leva, nosso primeiro estatuto, tinha 40 pessoas, os 40 roteiristas que existiam. Hoje a ABRA [Associação Brasileira de Autores Roteiristas] tem 800 pessoas, além de muita gente que não tá associada. Acho que foi legal essa pulverização que aconteceu nos saudosos governos.

Alice: E a sua experiência com TV?

Melanie: Tinha a época em que eu trabalhava sem crédito no Você Decide, era divertido. Você tinha dois finais: ele devolve a carteira ou fica com a carteira? Aí o público votava. Mas, na verdade, os dois finais eram muito parecidos. Se era pra ele ficar com a carteira, ele tinha uma crise e devolvia. Não era uma coisa radical, dele ficar com a carteira e tudo bem, o que seria ótimo. Mas quando a gente escrevia os dois finais, a gente sabia que o público ia votar em devolver a carteira porque a gente já sabe como funciona a mentalidade. Foi um ótimo exercício. Depois escrevi Cidade dos Homens (2002-2018) com a Katia Lund, que foi uma experiência complicada, porque cada um escrevia do seu local. Não existia diálogo entre a gente, era bem diferente de uma sala de roteiro. O projeto era uma encomenda da O2, e o Fernando Meirelles me ligou um dia e falou “tem que ter 22.500 caracteres, não pode passar disso.” Aí falou mais ou menos o que achava, e era isso. Só que os diálogos do Laranjinha e do Acerola eram diálogos que ninguém consegue escrever tipo “aí, dançou, é”. Eu escrevia isso mas soava péssimo no meu ouvido. E na verdade eu sabia que a Katia não ia dar o roteiro pra eles, mas ele precisava ser aprovado, então tinha que inventar esse diálogo que é próprio e nessa hora você sabe que o roteiro não é diálogo, é só estrutura mesmo.

Alice: Você acha que é sempre assim? Do roteiro não ser diálogo e sim estrutura?

Melanie: Não. Por exemplo, no Nome Próprio (2007) do Murillo Salles, se você assiste ao filme parece que é totalmente improvisado, mas todos os diálogos estão ali. Esse foi um dos filmes mais surpreendentes pra mim, porque os diálogos estão todos lá. Não parece, mas tão lá.

Alice: Você comentou que não teve uma formação de cinema e só foi ler manual de roteiro quando começou a dar aula. Como você vê essa experiência de dar aula de roteiro?

Melanie: Na PUC eu sou professora horista, eu nunca fiz mestrado em cinema. Lógico que eu li os manuais que todo mundo leu e falo sobre eles, mas pra discutir, não para que o os alunos façam exatamente aquilo. Pra poder inverter, ou reverter ou fazer uma coisa diferente. Eu trabalho muito com as referências que eles trazem. Como por exemplo, [a franquia] Harry Potter. Às vezes com Harry Potter você pode falar sobre toda a estrutura. Tem roteiros que eu adoro, sei lá, A Nova Onda do Imperador (2000, Mark Dindal). Ele tem uma estrutura de roteiro ótima! Aí eu discuto isso. Não vou ficar discutindo o roteiro de Limite (1931, Mário Peixoto). Esse eu nem sei discutir o roteiro. Eu gosto de trazer referências de várias coisas, mesmo de literatura. A gente lê os textos, as ideias dos enredos de trocar de lugar… isso tudo é um convite, é uma criação de um mundo que as pessoas vão aceitar ou não. Seja para a literatura ou para o audiovisual.

Melanie Dimantas

Imagem em destaque no topo: Carlota Joaquina – Princesa do Brazil (1995, Carla Camurati).
Por Alice Name-Bomtempo