Os seriados e minisséries são os locais de experimentação da TV Globo, em que os produtos procuram inovar em linguagem e temática. As novelas, que são o carro-chefe da casa, em sua maioria, têm o mesmo esqueleto narrativo e não se arriscam muito na linguagem. Podemos observar alguns exemplos dessas inovações quando analisamos, principalmente, os seriados da faixa das 23h na TV Globo. Antônia (2006-2007) foi um desses projetos precursores de outros, dando passagem para novas narrativas focadas em mulheres negras como protagonistas. Cinco anos depois, a TV Globo lançou Suburbia (2012), seriado que contou a história de uma mulher negra no subúrbio carioca. Já em 2014, produziu Sexo e as Negas, que foi criticado desde antes de seu lançamento por induzir a uma leitura estereotipada – e, depois de exibido, a crítica se faz bastante pertinente. Assim, a importância de Antônia reside na forma de representação dos corpos femininos negros, corpos aos quais sempre foi negligenciada a representação.
O seriado, que teve duas temporadas, foi pensado como uma continuação do longa-metragem homônimo e conta a história de quatro amigas, negras e pobres, moradoras de Brasilândia, na periferia de São Paulo, que sonham em concretizar o desejo de ter um grupo de rap reconhecido na região. O enredo da série, escrito por Jorge Furtado, desdobra-se no universo da música como local de realização pessoal dessas mulheres. Interpretadas por cantoras de diferentes estilos que se descobriram atrizes, as quatro amigas são Preta (Negra Li), Barbarah (Leilah Moreno), Mayah (Quelynah) e Lena (Cindy Mendes).
Já na abertura do primeiro episódio, ouvimos as vozes das protagonistas cantando a música-tema “Antônia Brilha”. Essa primeira canção dá indícios da forma como a história vai se desenrolar, ressaltando o lugar de destaque que a cultura do hip hop ocupa na construção narrativa. O rap fala sobre a resistência feminina e a luta por reconhecimento, como indica o seguinte trecho:
Vem ser mulher, vem conquistar o teu lugar
Um mundo novo onde ficar
Pra ser do bem, amar sem olhar a quem
É só querer barbarizar. Então, vem!
Orgulho é batalhar pra viver
Cantar é minha arma pra vencer
Nada pode parar!
Ninguém vai me calar!
Pela escolha do universo retratado na série, é possível perceber um esforço de seus criadores em discutir sobre conteúdos e personagens pouco abordados pela teledramaturgia no Brasil. Ao analisarmos a trajetória da representação das personagens negras na telenovela brasileira, podemos encontrar uma grande homogeneização da representação do negro na narrativa, constantemente excluído de interpretar papéis de destaque. A discriminação que acontece neste espaço é nivelada conforme os traços de negritude e mestiçagem dos atores e as atrizes. Quanto mais traços não-brancos o artista apresenta, mais será incumbido a papéis secundários, em posições subalternas e/ou estereotipados na trama.
O seriado Antônia quebra com esse estigma das mulheres negras na teledramaturgia nacional de representarem somente personagens em posição de inferioridade. A voz narrativa que guia os dois primeiros episódios da primeira temporada é a da personagem Preta. Os conflitos da personagem giram em torno de sua posição enquanto mulher em vários níveis de interação na sociedade, ainda extremamente patriarcal e machista. No nível familiar, convive de maneira conturbada com o pai de Emília, Hermano (Fernando Macário), que não colabora em nada na criação da filha. No emprego como frentista, Preta é constantemente subjugada por seu chefe, que age com abuso de sua posição privilegiada enquanto homem e chefe. Apesar disso, a narrativa abre espaço para a personagem como protagonista de suas próprias ações e voz ativa no processo de construção de sua subjetividade.
A música, como parte integrante do enredo, dá essa possibilidade de escape do óbvio na construção narrativa. Como uma forma de reafirmação da identidade afro das quatro amigas, o hip hop e o rap perpassam os momentos de conflito para revelar a força das personagens e expressar a reação das mesmas ao contexto em que foram colocadas. O hip hop é um movimento cultural reconhecido por congregar três pilares: a dança de rua, o rap (estilo musical) e o grafite (arte urbana). Por isso, essa manifestação cultural tem força no diálogo com os problemas reais enfrentados pela população que a produz. Em músicas como “Brasilândia”, em que elas expõem os problemas sociais da periferia, podemos observar a necessidade de enfrentar o cenário social a que são impostas por meio da ação coletiva feminina, como notamos no trecho:
Liberdade, igualdade: minha necessidade
Estou de volta Brasilândia, minha verdade
Ganhar a rua: minha luta continua
Faço minha correria e se der tempo corro pela sua
Entre grades e concreto
Numa grande confusão
Uma intenção
“pá” na malandragem
Resolva a situação
Varias minas e um sonho
Quer desafiar?
Demorou
Somos quatro
Há um apelo visual que está ligado à necessidade de entender esses corpos como produtores de subjetividade e não objetos da construção narrativa de um ser externo. Por isso, trabalha-se no figurino das personagens um maior uso de vestimentas que corroboram a desnaturalização do corpo feminino como sexualizado externamente. O que parece é que a sexualidade desses corpos vem de dentro e não procura aprovação, não vem de um olhar externo masculino. A imagem não estereotipada das personagens também está presente no trabalho de caracterização. Apesar de existir uma variação de corte e estilo de cabelo entre elas, o que é interessante para não universalizar as referências visuais, algumas personagens utilizam um estilo de cabelo afro próprio da cultura negra. Atualmente, o cabelo crespo é uma das maiores formas de resistência da estética negra, carregando consigo vários aspectos de empoderamento para as mulheres. Por se tratar de um desvio do padrão de beleza hegemônico, essa visualidade reforçada por aspectos como o uso de turbante e tranças afro reitera características essenciais para desconstrução de um padrão imagético eurocentrado.
O quinto e último episódio da primeira temporada, intitulado Fidivó, é conduzido pela voz de Emília, filha de Preta, que narra sua história de construção de referências imagéticas e sociais. A personagem de seis anos expõe que sua referência masculina é muito enfraquecida, devido ao papel reduzido que seu pai exerce em sua vida. Nesse episódio, Preta faz uma peregrinação por diversos hospitais públicos para conseguir uma vaga para sua mãe que está doente. Ao explicar sua relação com a avó, Emília esclarece que em muitas famílias onde as mães têm que trabalhar fora, as avós acabam cuidando dos filhos. O que gerou a expressão “filho de vó”, ou “fidivó”, como a menina fala. Esse contexto exemplifica bem a realidade de muitas mães solteiras das periferias brasileiras e a relação de coletividade e sororidade¹ que essas mulheres constroem umas com as outras.
Nesse sentido, houve um esforço por parte dos criadores da série de representar esses grupos “minoritários” de forma um pouco mais próxima à realidade dos mesmos. E, mais do que isso, para além da necessidade de representá-los de forma realista, é necessário observar a abordagem discursiva que se compõe através da construção narrativa. Para quem e de que forma eles falam? Que discurso a série está produzindo para além da pretensão de estabelecer uma “verdade representativa”? Sobre isso, alguns autores propõem que podemos compreender a arte como “uma representação não tanto em um sentido mimético, mas político, uma delegação de vozes”(SHOHAT; STAM, 2006, p.265) . Por esse ângulo, verifica-se uma real intenção dos criadores e diretores da série de instituir um debate social e político sobre a posição que essas mulheres – pretas, pobres e moradoras da periferia – ocupam na sociedade, bem como seus conflitos de classe, gênero e raça. Portanto, a representação dentro dessa esfera social se apresenta como um importante meio para visibilizar um conjunto de questões problemáticas de grupos que não possuem o poder de fala nem o controle sobre sua representação na mídia hegemônica.
Nos últimos anos, com novos coletivos de mulheres negras surgindo, discussões sobre representatividade e empoderamento vêm ganhando força, principalmente nas redes sociais. Há discussões crescentes sobre a representação das mulheres negras em diversas esferas midiáticas. Com isso, novos projetos com abordagens narrativas diferentes vêm sendo produzidos de maneira mais efetiva no que tange à questão da representação no Brasil. Em 2007, Antônia simbolizou o início desse embate representativo na televisão, uma brecha em uma estrutura midiática tão opressora.