“Bitch, I’m back by popular demand.”
Após assistir ao clipe “Formation” de Beyoncé, detive-me em alguns aspectos técnicos da representação do figurino da cantora, a partir da sua ocupação espacial. Algumas considerações quanto à provável escolha da música são pertinentes. Em um primeiro momento, o que nos é apresentado como a primeira faixa de trabalho de seu novo disco, Lemonade (lançado no primeiro trimestre de 2016), torna-se , em realidade, a mensagem explicativa de uma epopéia singular: uma reflexão tridimensional (imagem, música, história) sobre a jornada da história negra norte-americana contada a partir da visão de uma mulher, uma mulher negra.
Dividindo aspectos que fazem lembrar a representação atualizada do gênero épico, o álbum visual traz Beyoncé na função tanto de aedo quanto de rapsodo¹ de duas histórias simultâneas que se entrecruzam: a jornada de sofrimento e redenção pessoal (rapsodo); mesclada à jornada de sofrimento e redenção dos negros norte-americanos, e principalmente, ao que afeta as mulheres negras (aedo). Essa epopéia, diferente de outras até então conhecidas, destaca-se não somente por ser contada a partir do ponto de vista discursivo pouco privilegiado (mulher negra). A imagética soma-se à dança, à poesia e à música para transmitir mensagens que ora se encontram, ora se complementam, ora refletem (e são reflexo), ora se separam, de maneira a pontuar e comentar o arcabouço simbólico de um manifesto narrativo em movimento.
Beyoncé inicia a narrativa em Formation a partir de um ponto chave: surgindo das águas, (símbolo situado entre a renovação e a destruição) o caos é exposto pela associação entre imagens de violência humana e ambiental. A suspensão desse estado será reformulada a partir de uma nova concepção quanto ao local de fala daquela que cantará a Epopéia. Logo, uma voz feminina incita ao início do rito de passagem iniciado pela música. Assim, é possível situá-la como hino de convocação ao combate, de luta, expressa na chamada: Okay, ladies now let`s get in formation. Essa associação toma corpo com a elaboração da imagem da cantora, como expressão física dessa mesma luta.
Passando para os aspectos de sua representação imagética, vemos em todas as cenas como os cabelos da cantora reforçam ao mesmo tempo em que expressam o empoderamento negro, seja com tranças, blacks ou penteados que, de maneira geral, representam (fazem refletir sobre) a iconografia da mulher negra.
O uso do vestido preto com referências estilizadas carrega elementos atemporais da moda negra norte americana que atravessa gerações até os dias atuais. Em frente à porta de uma casa, Beyoncé é a figura central no limiar entre o público e o privado: a vestimenta em luto e em luta. Pelo fim do controle masculino que circunda a mulher negra sob o espaço da casa, ela dá um passo à frente e desfoca o passado e os homens. A História a ser contada será centrada na figura feminina. O limite espacial também pode ser analisado como comentário à ação que se desenrolará: o fim do sofrimento e o começo da luta pelos espaços é referendado por homens negros, jovens e idosos.
O uso do vermelho (derivado em traços brancos) em duas cenas: uma interna, em um corredor – a meio caminho; em cima de um carro de polícia parcialmente submerso. O vermelho na cinematografia geralmente é associado à morte, ao sangue – derramado, a ser derramado – e ao sofrimento. Muitas vezes é usado para expressar paixão. Ambos parecem fazer sentido nos ambientes citados: o sofrimento de jovens negros é calado/afogado por catástrofes humanas e naturais. A mulher negra, vítima de violências há séculos, está a meio caminho de deixar a casa que a aprisiona e atingir a rua, expressando paixão e temor pela própria vida. A dança é uma expressão dessa liberdade. A roupa é a fusão entre passado e presente.
O uso da vestimenta em tons metalizados/cinza com traços vermelhos e pretos em uma piscina vazia representaria um caminho já traçado, um objetivo a ser atingido: não há como afogar a voz negra e feminina. Ainda que haja traços de violência simbólica (vermelho/preto), uma zona mista é um claro aviso de que as barreiras precisam ser e serão ultrapassadas: não há água na piscina, não há como deter a luta e a liberdade do corpo da mulher, em contínuo movimento de dança e libertação.
O branco (associado a tons pastéis) usado em três cenas remete à conquista da liberdade e à paz (interior ou exterior), tanto em contexto público quanto no privado: Beyoncé abre os braços vestida em peles brancas pela janela de um carro enquanto ele gira: o espaço público de homens/mulheres brancos também é o espaço público de homens/mulheres negras, em liberdade e sem medo. O olhar de Beyoncé é latente ao expressar o desafio à negação dessa luta/conquista. Dentro da casa, a cantora é mostrada sozinha e rodeada por um grupo de mulheres, vestidas em trajes com elementos amarrados a todas as épocas da história norte-americana, munida sempre com olhares desafiadores frente às conquistas também em espaços internos. Ela é dona de seu próprio espaço. A liberdade da escolha está dada, independente do local em que se configura a presença feminina.
Enquanto um sonho de liberdade é colorido e transparente (representado em uma rápida cena, com aspecto opaco, podendo passar a impressão de pertencer a uma realidade baseada em parâmetros diferenciados), a atual realidade negra norte-americana é pragmática. Assim o jeans (e suas derivações de lavagens) fecha a galeria iconográfica como roupa e expressão multiuso: com a liberdade em mãos, os usos configurados pelo corpo feminino são múltiplos, variados, e não possuem gênero e idade.
Dessa maneira, o uso de um figurino que expressa militância e reflexão da voz negra feminina, é corroborado pela apresentação da música pela cantora e as dançarinas no SuperBowl 2016, trazendo roupagens em couro negro, típica do figurino das militantes Panteras Negras. Cabelos afros, boinas, botas de couro unidos ao X dourado no busto de Beyoncé lembram não só a figura de Michael Jackson no SuperBowl de 1993 (reatualizando a referência negra pop), mas de Malcolm X. A formação da coreografia com a liderança em pirâmide, como uma seta e finalmente com um X, a incógnita dos expatriados pela escravidão e despidos da própria cultura, descrita pelo militante, fecham a mensagem: a luta pela identidade negra só está começando. E Beyoncé é quem está no comando.
O álbum Lemonade é um belíssimo manifesto visual e musical sobre feminismo negro, negritude, preconceito, padrões estéticos, violência contra negros, empoderamento social, cultural e financeiro de negros. Manifesto que explora esteticamente demandas e preocupações de gênero e raça, que circulam desde e a explosão de movimentos de direitos civis nos Estados Unidos e no mundo Ocidental a partir do final da década de 1960. Preocupações que reverberaram tanto no universo sociopolítico quanto acadêmico questionando o papel do conceito moderno de “Homem Universal” definido no padrão: homem hetero branco ocidental. Ainda que essa discussão tenha sofrido revezes devido a entraves políticos e econômicos ao longo das décadas posteriores, chegamos ao século XXI bombardeados por crises de caráter identitário impulsionados pela redefinição e deslocamento de eixos de poder e locais de fala em busca da quebra de paradigmas de representações sociais restritivos.
Nesse sentido, a arte vem cumprir o papel de advogado desta busca, tendo como função intermediar reflexões necessárias para a compreensão da diversidade de concepções e agentes sociais. E como agente impulsionadora dessa busca, Beyoncé apresenta sua contribuição para ampliar o debate sobre seu local de fala enquanto mulher negra. E Formation, sem duvida, é a síntese dessa mensagem.