Como cinema e vida se aproximam? Ou, em um gesto mais radical, como a morte e o cinema podem se aproximar? Gosto de cereja, de Abbas Kiarostami, oferece-nos algumas possibilidades para pensar, se não os limites possíveis entre a vida e a morte, os limites da representação alcançados pela imagem nesta fronteira não definida.
Colocado como testemunha e observador das histórias menores de um povo, o cinema de Kiarostami em Gosto de cereja permite-nos passear por Teerã como passageiros de um carro. O uso desse meio de transporte não é algo incomum na filmografia do diretor. Como apontou Jean-Claude Bernadet em Caminhos de Kiarostami, o “carro é um tema obsessivo em Kiaorstami” (BERNADET, 2004, p.27) e é um dos ambientes principais em outras obras, como A vida e nada mais, Através das Oliveiras e O vento nos levará. Para o diretor, o carro, para além do cinema, na vida ordinária, é um espaço privilegiado para reflexão e observação. Em entrevista, o diretor relatou: “uma vez dentro de um carro, com ou sem cinto, você fica imóvel. Ninguém vem incomodá-lo. Não há telefone, nem geladeira, nem visita inesperada (…). Acho que é o melhor lugar para olhar e para refletir” (GOUDET aput BERNADET, 2004,P.41).
O tempo no cinema de Kiarostami não é aquele que opta preferencialmente pelas elipses ou pelo encurtamento da duração dos gestos. Filmes como Onde fica a casa do meu amigo?, Shirin e Gosto de cereja se constroem em um esforço de registrar espaçamentos temporais dilatados, como a subida extensa de um morro já apresentado, a reação dos rostos das mulheres durante toda duração de uma história. Em Gosto de cereja, a extensão dos diálogos, mesmo quando já conhecemos o plano de Badii é respeitada, não há uma opção por reduzi-los, para que se evitasse a repetição de qualquer informação. É curioso, também, que do início do filme até o momento em que se informa ao espectador sobre o que se trata a ação do Badii é percorrido cerca de um quarto da obra. Assim, é como se, para Kiarostami, fosse mais importante os pequenos percursos, os acontecimentos corriqueiros que a conclusão de um determinado fato, a primazia de uma ação de impacto da narrativa. Algo que em Gosto de Cereja é identificável na percepção que pouco sabemos da vida – e mesmo do resultado da tentativa de morte – do Sr. Badii. O filme nos dá acesso apenas ao percurso, a trajetória cuja conclusão opaca não invalida a experiência e a aprendizagem do trajeto. Há uma aposta de Kiarostami na incompletude, no não saber, dar a ver a histórias, ao invés de se firmar em uma posição de autor que detém o controle dessas narrativas. Como argumenta Jean-Luc Nancy,
Kiarostami ainda não é apenas outro autor. Ele constrói seu estilo também como uma testemunha privilegiada, observando o cinema se renovar, o que significa dizer que ele se aproxima novamente do que é e sempre traz isso de volta à cena. Com ele, o que está mudando o mundo, a cultura do mundo, está mudando. Mas outro mundo está em outras formas, e tenta se apropriar de si mesmo nessas formas1 (NANCY, 2001, p.12).
A janela e o carro de Badii são, em alguma medida, aquilo que é possível ao cinema fazer por nós. Enquanto Badii estuda paisagens e tenta, pelo olhar, encontrar quem tenha um perfil que o ajude a encontrar o próprio corpo, acompanhamos a realidade que se apega aos pequenos detalhes que diferenciam e revolucionam cotidianos individuais. Na fronteira da morte, o cinema permite essa travessia que observa com mais vigor os pequenos detalhes que redesenham um trajeto. Vemos homens em treinamento, um carro que se desloca e quase cai da escada, alguém fala de Deus, outro, de problemas financeiros. Aqui, o cinema e o percurso parecem funcionar como as próprias cerejas. São pequenos frutos suculentos que apostam pela continuidade do mundo. Mesmo quando se vê destruição e poeira, há algo de belo na dimensão dos fragmentos destruídos que flutuam. Essa potência e importância do olhar é algo recorrente na filmografia do iraniano. Como nos lembra Nancy, “Kiarostami mobiliza o olhar: ele o convoca e o anima, ele o faz vigilante. Primeiro e principalmente, os filmes dele abrem os olhos”2(NANCY, 2001, p.16).
Em uma das mais belas cenas do filme, Badii, depois de já ter acertado os detalhes do próprio enterro, fotografa um casal da janela do carro, que posa do lado de fora. Esse gesto mimetiza o que percorre todo o filme: como se mantém e resistem imagens vivas, enquanto quem as produziu envelheceram no tempo vivido, não cristalizado em imagem? Ou, sob outra perspectiva, podem as imagens ainda remeterem às coisas vivas se estão sempre direcionadas a representar aquilo que já foi?
Ao se encerrar sem revelar a materialidade do corpo soterrado de Badii, Gosto de cereja nos conduz a pensar que, em verdade, a morte e a vida são demarcadas antes pelas imagens que retemos em nós do que pelos dias vividos. Na época do lançamento da obra, Kiarostami foi criticado por não explicitar se o suicídio de Badii tinha sido concluído. Em uma entrevista sobre o assunto, o diretor argumenta:
Para mim, o filme acaba com a noite escura (…).Queria registrar a consciência da morte, a idéia da morte, que só o cinema torna aceitável. Essa ideia surge quando o preto se impõe, quando todas as nuvens se apagaram na tela. A lua desaparece através das nuvens e tudo se torna preto. Então nos damos conta de que não há mais nada. Ora, a vida provém da luz” (CIMENT; GOUDET apud BERNADET, 2004, p.84).
Se, no momento em que Badii vai à casa dele já não temos acesso, pela imagem, do que pode ser experienciado dentro daquelas paredes, mas apenas vemos reflexos, luzes e sombras, notamos rastros de narrativas não mais possíveis de serem vividas ou vistas. Dentre as colinas que vemos, Badii guarda as recordações do tempo que considera o da felicidade.
É nesse lugar, seja pela materialidade do corpo vivo ou morto, que Badii se enterra. Deslocada da própria realidade, a morte atinge aqui o lugar do cinema e da imagem que constroem múmias com o tempo. Morte, cinema e vida não se constituem como elementos separados, mas coexistem juntos. Como salienta Nancy, “a morte é parte da vida, ao invés de fazer a vida parte (ou afasta de) algo além dela mesma. A morte não é o oposto da vida ou a passagem para outra vida: é ela mesma a luz cega que abre o olha, e é uma forma de ver a vida daqueles filmes”3 (NANCY, 2001, p. 18). Desterritorializado de qualquer correspondência, concluímos, pelo fim de Badii, que, se a imagem sempre se direciona àquilo que já foi, é por ela também que se pode preservar a vivência e a redescoberta da vida que pode vir a ser.