Mocidade presa /A tudo oprimida /Por delicadeza /Eu perdi minha vida. /Ah! Que o tempo venha /Em que a alma se empenha.
Trecho de Canção da Torre mais Alta, de Arthur Rimbaud
“O terrível é que a consciência do homem sofra desde a infância com uma pressão que nem mesmo toda a elasticidade da alma num todo, nem toda a energia da liberdade pode suprimir” Michèle, personagem de Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles, citando Kierkegaard
O que seria possível dizer sobre a juventude? Mais ainda, o que é possível viver em juventude? Pouco convencerá o tempo: a maior parte dos dias permanecerá ou indiferente, ou com afecções exacerbadas. Algumas palavras seguirão esvaziadas: é possível dizer que se sofra por quem, quando cansado, apenas encontra costelas e batatas para o conforto. É possível também dizer que se sofre pela maior das alegrias que não podem ser vividas senão por um sentimento de perda e tristeza que as acompanhe. Caminhar-se-á muito: embora sem saber como ou onde, há a preferência consciente em prosseguir como errante, como flâneur. A ausência de rumo ou destino permanece como a melhor escolha. Ou, quem sabe, a possibilidade de permanecer altivo por se deslocar e abnegar-se da decisão de escolher.
Em Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles (Retrato de uma Jovem Garota no Fim dos Anos 60 em Bruxelas, 60 min, 1994), de Chantal Akerman, acompanhamos Michèle no não-lugar possível de habitar durante a juventude. Akerman nasceu em Bruxelas, em 1950, e realizou o seu primeiro filme, Saut ma ville em 1968, o que nos permite tecer aproximações entre o contexto mostrado em Retrato e alguns elementos biográficos da cineasta. Akerman foi associada ao cinema experimental e desenvolveu obras que, se apresentam elementos biográficos, não se circunscrevem ao relato e ao retrato, abrangendo – e se inscrevendo – nas crônicas de um tempo e espaço mais amplos que a vida individual. Chantal representou a permanência de um cinema revolucionário que acolheu uma geração. Como afirma a ensaísta e curadora Dominique Paini, Akerman “convenceu nos anos 70 de que o cinema moderno não morrera e de que tínhamos razão em acreditar que esta pós-Nouvelle Vague formada por Jean Eustache, Philippe Garrel e ela (…) prolongava os insolentes anos 60” (PAINI, 2010, p. 16).
Retrato integra a série Tous les garçons et les filles de leur âge (Todos os garotos e as garotas da idade deles), coleção de nove filmes sobre a adolescência dirigidos por cineastas diferentes. Segundo Judtih Mayne em Identity and Memory: The Films of Chantal Akerman organizado por Gwendolyn Audrey Foster, esse projeto foi concebido “para refletir através da música o sentimento e sensibilidade de uma era, e oferecer para realizadores a oportunidade de criar retratos únicos do passado”1(MAYNE, 1999, p.150) A obra de Chantal apresenta a juventude como um lugar em que seja preciso afirmar e saber pouco. E, talvez por isso, em que resista a sabedoria e a transitoriedade cujas respostas sejam possíveis em um livro de Sartre ou em uma longa conversa com um estranho na mesma densidade. Como ressalta Mayne, Retrato “é uma evocação bela e assombrosa da adolescência das mulheres e seus descontentamentos – desejo, perda e a relação ambígua e complicada de transição entre a juventude e a vida adulta”2(MAYNE, 1999, p. 150). Essa representação da juventude se aproxima daquela existente em um filme realizado por Chantal uma década antes, J’ai faim, j’ai froid(Tenho fome, tenho frio). No curta de 1984, duas garotas saem em fuga pela noite, compartilham cigarros, terminam o pensamento uma da outra, juntam o dinheiro que quase não têm, comungam da graça e da dúvida de uma aventura pela liberdade e pela descoberta sexual. Nesse filme, há uma invenção na construção do desejo, na medida em que as garotas se beijam para demonstrar a experiência com rapazes anteriores – e, a partir disso, criam um jogo perene para a partilha de outros contatos sexuais. A fome e a necessidade de estancar o frio passam a permanecer no mesmo patamar que qualquer desejo físico e o interesse prevalecente é antes pela partilha da experiência e a descoberta do mundo que pela saciedade do desejo – especialmente o sexual que com um homem machuca e sangra.
De forma próxima a Tenho fome, tenho frio, em Retrato, a aversão a qualquer resposta talvez possibilite maior esperança que qualquer afirmação do desejo. O encontro com o outro – seja físico, seja de escuta – parece não ter habilidade maior que desnudar a impossibilidade da conversão com qualquer afeto senão o esvaziamento da própria existência. No entanto, ainda será possível o movimento, dançar, roubar discos, pular janelas, forjar o próprio enterro, queimar boletins. A nulidade da vida não a esvaziará do que ainda é possível fazer para que se ocupe o tempo, para que não se fique desocupado, para que o tédio não se engrandeça.
Michèle é uma estudante secundarista que reconhece a impossibilidade de encontrar e descobrir a resposta que a angustia em uma escola formal, ou se tornar escritora a partir das leituras que não são escolhidas. Em uma tarde ao cinema, encontra Paul, cuja opaca identidade parece existir apenas nos diálogos inusitados travados com Michèle. As histórias são várias: um desertor do exército, que por isso usa cabelos compridos, alguém que viaja para visitar e encontrar uma garota que não existe. Sob a fluidez de uma personalidade incógnita, pairam pensamentos precisos. Há quase nada mais importante (e interessante) que sexo e persistir na incomunicabilidade – e em sua melancolia – é um erro. Michèle e Paul se beijam no cinema e o gesto afeta e importa menos que a possibilidade de se dizer, em qualquer outro encontro fortuito, alguma teoria sobre o gesto de beijar, alguma brevidade das atitudes aptas a tornar qualquer filme desinteressante. Não será nunca o sexo heterossexual que interessará Michèle: os corpos que se perdem, que se envolvem, que se vencem, encontram-se. E, assim, parecem tornar opacos o que os trouxe até ali: o desconhecido, a falta, o desejo em suspensão, um pequeno mistério. Ainda que, de repente, torne-se necessário algum envolvimento afetivo com quem a acompanhe além da visibilidade e toque, só é possível a Michèle o que não se consuma, não se conclui. Há uma delicadeza e prazeres maiores em persistir observando a vida que segue antes como mistério que a vivida em sua materialidade plena.
Mais importante – ou talvez, mais nobre – que o amor, a fraternidade é o afeto possível para a resistência de viver como quem passeia. A amizade de Michèle com Danielle engendra confortos e alimenta dúvidas necessários para que a vida prossiga. Como afirma Mayne,
central para o filme são as dinâmicas do amor que não exatamente evita dizer o seu nome (de acordo com a famosa definição da homossexualidade de Oscar Wilde), mas não sabe ao certo como dizer o seu nome. Retrato de um garota é, em muitos aspectos, uma história de colocar para fora, pelo o amor pela outra mover o filme em diante e estruturar sua narrativa e desenvolvimento3 (MAYNE, 2009, p.150).
Em conversas sem objetivos nenhum senão a partilha, é possível detestar e amar as festas que seguem iguais em um mesmo momento. É possível ir dançar em uma ciranda cujo desejo seja qualquer que não a dança e apostar nos gestos diferentes dos outros. É possível que Michèle diga a Danielle que encontre Paul em seu lugar, porque, sob a indiferença do que o sexo consumado possa acrescentar, haverá mais beleza e encontro na escuta da experiência que vem do outro. Beleza que, se instaura entre elas cumplicidade inequívoca e rara em outros aspectos cotidianos, submerge em um contexto de repressão enfrentado pelo amor lésbico. Como salienta Mayne, Retrato explora “como o desejo lésbico é formatado e repreendido por códigos e convenções do romance heterossexual”4(MAYNE, 1999, p.150). De forma semelhante a Tenho fome, tenho frio, o filme é um trajeto de transição para que a homossexualidade seja assumida; apresenta, porém, maior densidade na abordagem da interferência do mundo nessas relações. Talvez porque o filme, como informa um dos letreiros da abertura, ocorra em 1968, um mês antes da eclosão das greves e mobilizações de trabalhadores e estudantes na França e na Europa ocidental. É como se, nesse período histórico, arrefecesse, nas ruas, a atmosfera de espontaneidade, de esperança e a crença de se poder entrar em um restaurante sem saber cantar e fazê-lo por dinheiro. Michèle e Danielle existem em um universo mais sóbrio e áspero, no qual a juventude que está à beira do encontro – e do fim – com a vida adulta. Nessa transição, a vida parece oferecer pouco além de ruas tumultuadas, quartos estranhos e desconhecidos ou campos idílicos onde é possível apenas prosseguir só.