Assistir um filme tal qual Sob Minha Pele (Dans Ma Peau, 2002), da diretora francesa Marina de Van, que também atua no filme no papel da protagonista Esther, é um exercício de vontade e resistência frente à repulsa visual. O drama de horror conta a história de uma mulher que, após cortar-se em meio a entulhos de uma casa em construção, passa a viver uma relação de extremo fascínio com seu próprio corpo e, especialmente, com sua pele, e aquilo que jaz sob ela.
O papel das mulheres como protagonistas no cinema de horror é aparente desde os primórdios do gênero, filmes como Sangue de Pantera (1942) e A Morta-Viva (1943), ambos dirigidos por Jacques Tourneur, ou mesmo Nosferatu (1922), de Murnau, são apenas alguns dos maiores clássicos que confirmam tal tendência. Contudo, a centralidade feminina dentro dessas narrativas veio a grandes custos, psicológicos e físicos. Para tais mulheres, o destino dentro do horror sempre foi um de destruição e extrema violência, em que o protagonismo precisou ser pago através da exploração máxima do esfacelamento dessas personagens, sem que, em contrapartida, as mesmas tivessem chance de serem bem desenvolvidas, raramente tornando-se, portanto, sujeitos identificáveis e profundos frente ao público.
Como superfície, tais mulheres existiam, em sua grande maioria, apenas em forma, corpos a serem expostos, pilhados, em meio ao horror que se alastrava. Para algumas críticas, especialmente aquelas associadas ao feminismo quando a segunda onda do movimento tomou a academia americana a partir dos anos 70, a violência contra a mulher era um dos sinais da cultura extremamente machista que dominava não apenas a sociedade como também se refletia em sua produção cultural.
Tal cenário não era diferente quando se adentrava no campo do cinema, espaço que, especialmente falando-se do cinema comercial americano, era dominado por poderosos executivos, todos eles homens. Filmes de horror, em uma visão de mercado já um pouco ultrapassada, mas ainda vigente no ideário popular, seriam espetáculos destinados a um público masculino, o qual parecia demonstrar um grande interesse e apreço por tais narrativas centradas na destruição de corpos femininos. Seguindo essa lógica, a proliferação de mulheres anônimas que apareciam rapidamente em tela apenas para serem destruídas com requintes de crueldade e exploração visual máxima era enorme. Por sua vez, os responsáveis por tais espetáculos eram quase exclusivamente diretores homens, cuja proximidade de gênero com o público visado aparentemente concedia-lhes uma sensibilidade extremamente perspicaz quanto ao prazer e os desejos de tais espectadores.
Contudo, e já há algum tempo, tem-se percebido que, apesar das particularidades “exigidas” pelo horror – falo especificamente de uma suposta necessidade em apresentar um espetáculo centrado na destruição feminina – o público consumidor de tais filmes é muito mais heterogêneo do que se pensava. A partir de então, e já na chancela de outras teorias a respeito do consumo audiovisual por espectadoras, passa-se a formular o público feminino do cinema de horror como agudamente afetado por impulsos masoquistas, uma vez que derivar prazer em ver uma outra mulher ser torturada e eliminada só poderia denotar um certo desvio moral, mesmo que inconsciente.
Apenas mais à frente dentro da cronologia crítica cinematográfica é que se passou a questionar o papel meramente ideológico do cinema e investigar, em especial, o complexo engajamento do público com as obras. Seguindo tal linha teórica, seria possível investigar não apenas o que as narrativas diziam superficialmente, mas as olhar com certa desconfiança e investigar seus discursos, especialmente em espaços de falhas, em momentos de excesso, nos ápices do espetáculo do horror. Lendo-as a contrapelo, percebe-se que outras possibilidades e contra-ideologias borbulhando sob a superfície da tela, em constante ameaça de transbordamento. Esse tipo de análise permitiu uma reapropriação do gênero do horror. Apesar de todas as problemáticas que ainda o circundam, o protagonismo feminino dentro do gênero é um dado que não pode ser ignorado. Para além disso, a relação do horror com o corpo feminino ainda me parece um espaço frutífero de investigação.
Centro nevrálgico das pulsões violentas do horror e de seus espetáculos sanguinários, o corpo da mulher é um local de disputa e embate discursivo. Limite, espaço, desejo. E nenhuma dessas pulsões pode ser analisada de forma definitiva, permanecendo como um espaço de ambiguidade. Ao mesmo tempo que se fala do desejo inato exercido pela exibição da figura feminina através do aparato cinematográfico, ideia consagrada por Laura Mulvey, tal desejo é sempre problemático, permeado pela repulsa frente ao estranho e “peculiar” corpo feminino.
O embaralhamento e as contradições são parte de toda a experiência cinematográfica, mas dentro do gênero do horror tais características parecem ser exacerbadas. Um misto de encantamento e aversão cercam as cenas de desmembramento, algo que pode ser constatado no rosto de muitos dos espectadores, onde um sorriso se mistura quase perfeitamente com um olhar de nojo. O paradoxo da aversão ao medo com a vontade de ser aterrorizado, ao menos quando da segurança de uma sala de cinema, ou da sala de casa, ou mesmo nas telas de nossos computadores e celulares. Assistir um filme de horror é, muitas vezes, uma experiência extremamente sensorial: ao tocar o corpo em tela, nós somos de certa forma dilacerados junto a ele, sentimos mesmo que superficialmente o choque e as reverberações sensíveis do espetáculo encenado.
Ver um filme como o de Marina de Van, que se vale narrativamente do fascínio da carne, fascínio pela descoberta do corpo como um limite penetrável, como um invólucro que pode ser literalmente retirado, dentro de um regime visual de desejo e prazer, é uma experiência ainda mais perturbadora e subversiva, pois evoca toda uma sorte de respostas repulsivas. A estranha familiaridade e aparente calma com a qual a personagem adentra tal relação de destruição e desejo com seu corpo parece nos revelar alguma coisa que o próprio texto do filme não torna explícito. O prazer que ela obtém ao extrair e consumir sua própria pele e carne tem algo de voraz e sensual. A personagem aparenta saber muito bem que seus atos são transgressores e não podem ser realizados em público, tanto que escolhe espaços escuros e remotos para realizar suas cerimônias de auto mutilação. Contudo, o cortar-se parece mais um ritual de aproximação com um corpo que antes encontrava-se anestesiado, do qual a própria já estava alienada.
Os locais públicos que frequenta exigem um alto grau de controle, cercada por executivos e por um ambiente de trabalho extremamente competitivo, a fuga para o consumo de sua própria pele parece surgir como um oásis de plenitude, onde ela pode finalmente relaxar e se reencontrar. De forma paradoxal, a criação de um espaço só seu lhe permite maior desenvoltura e controle dentro do trabalho; um equilíbrio extremamente difícil entre persona pública e vivência privada que a personagem não consegue obter mesmo em suas relações pessoais, tais como seu namorado e sua amiga de trabalho, ambos personagens egoístas e pouco sensíveis, que apenas lhe causam mais danos e ansiedade.
Sob Minha Pele não é um filme de horror convencional. Ele foge de muitas das características marcantes do gênero para apostar não no horror da monstruosidade como uma ameaça social, algo que possa afetar e destruir os demais seres vivos que o cercam, e mesmo a própria raça humana. Aqui, o horror se constrói a partir da repulsa do desejo proibido, a diretora brinca abertamente com diversas proibições alimentares, colocando em paralelo closes de pratos elaborados de comida, especialmente aqueles com carnes e outras comidas revestidas por molhos suculentos, e closes da personagem principal, coberta por seu próprio sangue, cortando com afinco sua própria pele, deleitando-se com o sabor de sua própria carne.
A fragmentação subjetiva que a vida social da personagem parece lhe exigir culmina em uma sequência extremamente visceral, na qual uma performance aparentemente descolada do resto da narrativa fílmica se desenrola por diversos minutos em um quarto de hotel. A tela, assim como a própria personagem, também se parte ao meio. Vemos a cena por diferentes pontos de vista; mesmo que a diferença seja mínima em alguns casos, o paralelismo forçado reafirma a desconstrução metafórica e real da personagem. Nesse espaço fechado e obscuro, um quarto de hotel qualquer no meio da capital francesa, ela troca a invisibilidade de uma vida pública que lhe apaga como indivíduo por uma relação de encontro prazeroso consigo mesma e com a monstruosidade fascinante que lhe olha através de seu reflexo no espelho, através das diversas fotos que tira de suas chagas, através do pedaço de pele que carrega consigo como um souvenir querido e precioso.
Para além da repulsa, do nojo, da angústia de ver a auto mutilação da protagonista, parece existir uma proposta ainda mais radical: perpassar o horror visual e adentrar na vida sensual de uma personagem, a própria diretora, que nos convida a ver. Ver a carne feminina não apenas como um espetáculo de gozo para o outro, de prazer direcionado para um outro (espectador) dentro de seus ideais e respondendo às suas pulsões e desejos, mas um prazer vivido para si, consigo, em seus moldes. O prazer do reencontro e do reclamar seu próprio corpo em seus próprios termos, reinserindo o corpo feminino no discurso como um espaço complexo de vivências perpassadas e atravessadas, de exigências complicadas e dolorosas, imposições sufocantes e alienantes que precisam ser superadas, tanto no microcosmo do mundo pessoal corporal, como no macrocosmo do corpo social.