Diante dos protofascismos que a Europa vem ensaiando há algum tempo, Jean-Marie Straub erige dois pequenos monumentos à altura de uma época desgraçada, são eles A propósito de Veneza (2014) e O Aquário e a Nação (2015) – “os Homens são mais profundamente definidos e separados pela forma de sua fatalidade” (Malraux, 1943). Parece claro que de algum modo esses curtas se articulam ao resguardar uma mesma pergunta de fundo, inquietante, a respeito da insuficiência/obsolescência da noção moderna do “Estado-nação”. Ou, antes, ainda mais pura, a ideia de nação em si, unidade imaginária dos povos (a solução do Euro até ontem), formulada pelos idealistas da revolução francesa e debochada por Renoir (A Marselhesa, 1938) no trecho que Straub retoma em O Aquário e a Nação. É flagrante que a a emergência do imaginário da “Nova República” coincida com o fim da independência da República de Veneza, entregue à Áustria por Napoleão Bonaparte em 1797. Do viajante Maurice Barrès, escritor e político influente na França do fim de século e no entre-guerras, figura de proa do ideário nacionalista, Straub toma de empréstimo sua visão aguda – estrangeira – sobre a decadência de uma “sociedade diletante”, Veneza, data 1903. Entitulado “As sombras que flutuam ao pôr-do-sol no Adriático”, o capítulo se propõe a chegar ao âmago da cidade, elucidar os seus trejeitos, abrir a tumba e apontar os fantasmas! Então era preciso falar dos corpos.
Como é o gesto do veneziano? Essa pergunta não cessa no tempo histórico da carta, se endereça ao presente dos nossos acontecimentos (como agem os europeus do interior de sua redoma?) – e aqui Straub está bem próximo do filme de Jean Vigo que homenageia, A propósito de Nice (1930), em seu intento de perscrutar uma cidade e seus costumes. Maurice Barrès caracteriza os venezianos à semelhança dos pombos! – diz: possuem um certo movimento descompassado do pescoço, depois alargam seus cotovelos para melhor acomodar o xale. Quem são os venezianos de 1903? Cosmopolitas, artistas, milionários – e a todo tempo (já naquela época), Barrès narra com pesar, uma incessante caravana de turistas. O que o viajante observa é que em Veneza a aristocracia subsiste, porém ausente. À perda de autonomia os venezianos reagiram com indolência, desgarrados de suas propriedades na cidade velha, muito mais ocupados com suas terras no Vêneto, “perderam o interesse na coisa pública”. Veneza desagregada de sua consistência, diante da ameaça de Napoleão, organizou às pressas um concelho entre seus homens de bens, quando o procurador François Pezaro pronunciou então a frase que decretava o fim do antigo pacto entre nobres: “Está feito, a minha pátria eu não a posso salvar, mas um cavalheiro sempre encontra uma outra pátria”.
Retomado à contrapelo, fora de época, por Straub este mito originário da Veneza cosmopolita soa hoje como o leitmotif da globalização, a euforia do capital internacional: há sempre uma outra pátria onde investir, empreender. E nos remete a outra frase célebre, esta mais recente, quando Theresa May, primeira-ministra britânica, em um de seus arroubos nacionalistas, ao sustentar com veemência a adesão de todos os países do Reino Unido ao Brexit, e citando Sócrates (sic) nos brinda com o meme: “Se você acredita que é um cidadão do mundo, então é um cidadão de lugar nenhum”. O partido conservador repudia o cosmopolitismo e se tranca no castelo. Pois é, estamos léguas distantes da elegância melancólica dos venezianos que Stendhal notava com bom humor em 1824, em trecho citado por Barrès: “Os venezianos, os mais despreocupados e alegres dos homens, vingam-se de seus mestres e infortúnios com excelentes epigramas!”.
A Propósito de Veneza (2014), tanto quanto O Aquário e a Nação (2015), está estruturado fundamentalmente em três grandes planos (mais uma inserção de dois segundos que mostra Barbara Ulrich sentada, lendo o roteiro). A carta de Barrès se estende em um segundo fragmento mais curto que comenta a passagem de Goethe, em 1786, pela cidade – lá onde as sombras do Adriático “tendem a subjugar as almas”. Maurice Barrès inclusive se compadece ao imaginar o sentimento de exílio experimentado por Goethe, próximo daquilo que ele de certo vivia quando escreve a carta, “A morte de Veneza”, que parece mais como um catálogo dos fantasmas que fundaram e persistem em uma cidade. Straub retoma, na última sequência, um fragmento de A Crônica de Anna Magdalena Bach (1968, Straub-Huillet), precisamente uma cantata que versa sobre a ruína – com mais densidade: sobre o riso que se há de liberar quando tudo virar de cabeça para baixo, os telhados voarem; a tônica da cantata é de regojizo com a catástrofe.
O Aquário e a Nação (2015) toma como partida, por sua vez, trechos do romance As Nogueiras de Altenburg (1943), de André Malraux, e coloca uma indagação intrigante: se, entre as múltiplas estruturas mentais em que a humanidade desembocou, haveria algo em comum que fosse capaz de congregar uma noção de homem/humano. Na imagem, a leitura de Aimé Agnel diante do microfone, muda apenas a luz no interior da sala de gravação, entre os cortes. Outro estudo dos modos de viver, o texto de Malraux é uma coleção etnográfica que põe em relação o domínio das sociedades cosmológicas, anteriores à própria mitologia, e as sociedades religiosas fundadas em Deus, em ambos os casos, ele defende, tinha-se uma evidência particular que ordenava a vida e conduzia os homens em seus modos de agir e pensar. Qual seria a nossa redoma, hoje? Em suas demonstrações, o texto distingue o potlach, ritual de oferenda e doação de algumas tribos, do princípio de acumulação, que determina a cultura ocidental, sua tendência à fixidez, “desde os romanos aos modernos, passando pelos alemães”! A reviravolta teria se dado quando o homem deixa de ser “prisioneiro do cosmos”, descobre a morte e passa a batalhar contra ela. Por vezes, as proposições do texto de Malraux soam redutoras às culturas abordadas e muito assertivas quanto ao modo de organização de suas cosmologias, como se fosse possível se acercar da complexidade de cada uma dessas sociedades agrupando-as em duas partes – por exemplo, quando se infere uma ideia de “duplicação” à prática da mumificação entre os egípcios. O ponto de partida, entretanto, são as historiografias modernas, assim o texto elucida também a racionalidade de uma estrutura mental e explicita como o olhar ocidental se dirige aos antigos. Estas sociedades anteriores, nas palavras de Malraux, desconheciam também nosso sentimento de destino, de nascimento e de troca. Então o que pode haver de comum entre todas elas? Trata-se de algo que possui o homem, mas ele nunca o percebe por inteiro, está para nós como o aquário está para os peixes – analogia que ocupa o primeiro plano do filme em seus doze minutos, e ao fundo do aquário há uma porta que dá para uma rua qualquer de Paris. Aimé Agnel se levanta, ao cabo da segunda sequência, e interpela o fora-de-campo: “os Homens são mais profundamente definidos e separados pela forma de sua fatalidade”, e alguém retruca: “qual seria seria a nossa?”. Primeiramente, a nação.
Dalila Camargo Martins em crítica para a revista La Furia Umana observa que neste ponto a retórica transmitida pelo corpo encontra sua extremidade e se faz premente um outro registro. Straub convoca então o cinema de Renoir, um trecho específico da Marselhesa (1938) quando os revolucionários libertam seus prisioneiros, Cuculière é encontrado cego, condenado pelos miasmas que se desprendem da parede. Toda a força dessa comédia de Renoir, que se revela aqui manancial inesgotável, está no estranhamento dos lugares ocupados pelos personagens, ao fazer conviver os antigos nobres e os novos cidadãos em cena, negociando o espaço que agora dividem. Nos corpos, trata-se do abandono de uma certa gestualidade sofisticada (o ajeitar de xale veneziano) para o extravasamento total, deboche que inaugura os novos modos de se relacionar na República nascente. Mudam também o vocabulário instituído (o desentendimento com relação às palavras “nação” e “cidadão”) e, notadamente, a direção dos olhares (o olhar que agora se dirige ao pescador e o reconhece). Até onde a vista alcança, pois o entusiasmo revolucionário negligencia o aquário que forja em torno de si, a saber, o estreitamento identitário-nacionalista, o fechamento sobre o território, a eleição de inimigos externos – no episódio da Marselhesa diz respeito a um atrito com a Prússia. E culmina com o verso xenófobo do hino nacional: “Que um sangue impuro banhe nosso solo”. O extrato escolhido por Straub é preciso, a maestria de Renoir resolve todo o desajuste quanto ao lugar dos corpos em apenas dois planos: o hastear da bandeira, os gritos da revolução, a apresentação irônica que o líder revolucionário, Arnaud, faz ao nobre, inteirando-o do novo vocabulário e do estado de coisas e, por fim, o tapinha nas costas, o desejo de “uma bela estadia na Alemanha” que força o nobre ao exílio. O que há de estreita afinidade entre os filmes de Straub e Renoir é que ambos nos fazem ver a decadência de uma gestualidade e de um imaginário, porta-vozes de uma lucidez que restitui à luz aos olhos cegos.