Anotações sobre o fantástico em “Mal dos Trópicos”

A realidade (como as grandes cidades) se estendeu e se ramificou nos últimos anos. Isso influiu no Tempo: o passado se afasta com inexorável rapidez.”
(Adolfo Bioy Casares)

Essas duas frases que iniciam a narrativa do conto O Perjúrio da Neve apresentam elementos essenciais do atrito entre o real e o sobrenatural: a realidade associada à expansão do racionalismo (aqui metaforizado pela ideia de cidade) e a consequente noção de um tempo lépido, que subjuga o passado e a memória em nome da transitoriedade do presente. É por essa ótica que gostaria de examinar Mal dos Trópicos (2004), de Apichatpong Weerasethakul, como um filme fantástico, num paralelo que se estabelece entre o espaço transformado pelo humano (seja ele urbano ou rural) com a floresta, o espaço do “selvagem”, como o próprio filme pondera. E, nesse meio, o tempo se coloca por jogos entre: o racional e o irracional, o remoto e o moderno e a memória e o presente, numa espécie de “reflexividade temporal” (INGAWANIJ, 2015, p. 245). Afinal, o filme dividido em duas partes sugere uma contraposição entre o racionalismo locado no espaço ocupado pelo homem em conflito com a ideia de um espaço natural, ancestral e por isso, para Apichatpong, fantástico.

Diante desse prognostico, Ruy Garnier (2016, p.55) associa o cinema de Apichatpong a duas concepções de “beleza”. A primeira relacionada ao “cotidiano, a dimensão lúdica do tempo vivido em momentos amenos de prazer, o tempo que escorre”, e a outra à “beleza da magia instaurada pela ficção e pela narração, seja ela fantástica, delirante ou memória mitológica”.

A primeira parte do filme partilha o cotidiano do casal Keng e Tong, num trânsito constante entre o urbano e o rural. Keng é militar, habita a cidade, Tong mora no interior e trabalha em uma fábrica de gelo antes de ficar desempregado. Nesse percurso, gostaria de destacar traços comuns ao cinema de fluxo no filme de Apichatpong a partir da narração e dos conflitos mínimos que são capazes de gerar uma sensação de escapismo (CUNHA, 2013).

Movimento que se pauta pela sinuosidade dos acontecimentos, por elipses que embaralham a noção do tempo transposto entre uma cena e outra, o que somados a uma câmera ávida por documentar o espaço urbano deixam nublada a noção do que está em jogo na trama. O foco é o relacionamento homoafetivo dos protagonistas, mas a falta de problematização social desse tema que é relegado ao segundo plano – juntamente com outros temas sociais como o desemprego e o analfabetismo – transmite uma ideia de desprendimento, que não reflete necessariamente em uma ideia de bucolismo, mas que por meio do trânsito pendular desses personagens ressalta um conflito entre tradição e modernidade.

Por isso mesmo, nessa parte, a floresta se faz presente a partir de sua ambiência sonora e por uma opção de enquadramento que a coloca adiante, no espaço posterior à experiência que os personagens compartilham. Nesse sentido, são muito interessantes as construções alongadas, que, como corredores, desbravam a floresta e se configuram como uma linha de fronteira entre o estabelecido pela experiência humana e a pressão do desconhecido, associado a uma memória mitológica. É nessa construção cênica que a temática sobrenatural surge pela primeira vez no filme, na citação da estória do tio capaz de relembrar suas vidas passadas e na fábula sobre a ganância protagonizada por fazendeiros e um monge.

Porém, é a segunda parte do filme, intitulada “Um caminho do espirito”, que demarca a “permeabilidade entre mundos humanos e não humanos” (INGAWANIJ, 2015, p.245) a partir da errância de um homem que se desconecta gradualmente do real apresentado até então. Logo de cara, Apichatpong nos conta a fábula sobre um Xamã que pregava peças nos aldeões se transformando em várias criaturas, mas que após ser morto por um caçador, tem seu espírito aprisionado dentro de um tigre. Essa fábula cria uma maldição: “Toda noite, o espírito do Xamã vira um tigre para espantar os viajantes”.

Diante dessa premissa, o filme até fornece um pretexto dos mais narrativos: um militar que, como um caçador, entra na floresta para caçar um tigre. Porém, Keng não sabe que a caça é um ser impossível no real, e, por isso mesmo, logo sua categoria de algoz será consumida pela inteligibilidade que a floresta apresenta. Como aponta Ingawanij (2015, p. 248):

A apresentação da experiência do soldado Keng de alteridade temporal na selva não apenas alude para a aventura do caçador no mundo perdido, como também retrabalha a hipótese de tempo do conto, sugerindo que o tempo seja a velocidade da modernização e marcha da humanidade para o progresso.

Essa ligação entre o tempo e a velocidade da modernização apresentada na primeira parte é conduzida aqui por Keng e pelos apetrechos militares que carrega consigo (a lanterna, o rádio, a farda e a espingarda). É a pertinência dessa temporalidade que será posta em xeque, a partir do primeiro encontro com o fantasma. 

Sobrenatural e natural se contaminam no contato físico entre esses dois seres. Após a briga de Keng com o fantasma, a relação do militar com a floresta se altera radicalmente, o cansaço, o suor, a sonolência e, por que não, a malária saem de cena. Agora o protagonista é capaz de ser incorporado ao território, de operar dentro do ecossistema e de se comunicar com o ambiente. Não sem motivo é apenas após essa disputa que a floresta é, pela primeira vez, mostrada em plano geral. O todo agora é capaz de ser apreendido, a floresta é capaz de ser acessada e compreendida a partir de sua essência. E, assim, Keng é capaz de destruir “o corredor invisível que liga o moderno ao tempo-espaço pré-histórico” (ibidem, p. 249). É nesse território que o ordinário e o “mágico” se estabilizam, o fantástico em Mal dos Trópicos não surge por antagonismos, mas sim pela complementaridade, na mistura do possível e do impossível.

Apichatpong apreende a floresta como o local das metamorfoses, no qual a conjunção entre dois corpos não é vista como perda. Entre matar o tigre para livrar-se do mundo dos fantasmas ou deixá-lo “devorá-lo para entrar em seu mundo”, Keng opta pela segunda escolha. A fusão é tida como possiblidade de libertação e preservação da essência do eu, já que a ausência do racional não é vista como demérito, mas sim como potência. Nesse âmbito, é certeira a análise de Ingawanij (p. 249):

Esta concepção de cosmologia e topografia da floresta difere daqueles contos de fadas europeus que representam a transformação de personagens humanos em animais selvagens como uma perda de humanidade, provocando um final em que os personagens retornam para casa e voltam à forma humana.

Nesse meio, gostaria de comparar a metamorfose em Mal dos Trópicos com a do conto Juan Darién de Horácio Quiroga. Neste, temos um jovem que, durante uma aula na escola, descobre que na verdade é um tigre metamorfoseado em homem. Aqui, a metamorfose, que tinha como intuito agradar uma mãe que acabara de perder seu filho humano, faz com que Juan Darién seja torturado até que sua pele humana dê lugar ao listrado laranja e preto. O sobrenatural se impõe como uma fissura que o homem necessita exterminar. E, como Keng, Juan Darién abdica de sua racionalidade e será “Tigre para siempre”. Entretanto, enquanto o personagem de Quiroga desiste de sua humanidade diante da perversidade do homem, Keng une-se ao tigre a partir do consentimento entre o humano e o não humano. É essa premissa do consentimento que difere Mal dos Trópicos das fábulas europeias e, dessa forma, a união harmonizada é capaz de desencadear uma ideia de “final feliz” a partir da dominação do selvagem.

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Referências:
CASARES BIOY. O Perjúrio da Neve. In: Histórias Fantásticas. Cosac Naify, São Paulo, 2006.
CUNHA, Emiliano Fischer. Cinema de Fluxo no Brasil: Filmes que pensam o Sensível. Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, 2014.
GARDNIER, Ruy. O absurdo corriqueiro de Apichatpong Weerasethakul. In: Catálogo Cinema Tailandês. Rio de Janeiro, 2016.
INGAWANIJ, May Adadol. O Animismo e o cinema realista performativo de Apichatpong Weerasethakul. In: Realismo Fantasmagórico. Coleção Cinusp- Volume 7, São Paulo, 2015.
QUIROGA, Horacio. Juan Darién. In: Anaconda Y otros cuentos. Edaf, Madri, 2008
Por Fabricio Basilio