O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os sonhos
E varria as amizades…
O vento varria as mulheres…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.
Manuel Bandeira em Canção do vento e da minha vida.
Em alguns lugares, o espaço e a natureza determinam a vida dos homens. Em Mulher do pai (2015), de Cristiane Oliveira, é quase estabelecida uma comunhão entre os homens e a terra que habitam. Após a morte da mãe de Ruben, Nalu é colocada no lugar da avó, em um contexto que divide o aparecimento dos desejos da adolescência com a direção a suprimir o vão familiar deixado pela morte da avó. Na vida da família, é como eles se assemelhassem, em alguma medida, às ervas cultivadas por Ruben no quintal e que, ao germinarem, estão ou à beira do consumo ou à beira do excesso. Onde os caminhões e ônibus param de passar quando chove por causa do barro e o vento parece ser uma das poucas travessias que permanecem na Vila, como é possível ao homem desejar amadurecer? É possível ao homem querer mais que o cotidiano oferece?
No interior da casa de Ruben e Nalu, os objetos parecem configurar extensões do homem e próteses do tempo. O rádio velho que acompanha Ruben na possibilidade de acesso ao mundo, o telefone que Nalu carrega para o quarto, cujo fio que quase se arrebenta parece ser a própria distância entre a garota, que envelhece, e o pai. A ideia do homem começar a trabalhar e a modelar argila, a fim de ter outra postura possível em relação à morte de sua mãe, parece ser o retorno à terra e a remodelação para outra construção da realidade. E, para Nalu, o trabalho e os mecanismos do campo – cozinhar e cuidar do pai, cardar e tecer a lã – parecem distanciar de atividades que marcam a adolescência. Nesse sentido, mesmo quando sua amiga lhe diz de Porto Alegre, apresenta-a as músicas de funk do lugar, há um plano geral em que as vemos distantes, em uma paisagem em que seus corpos parecem pequenos e o som parece se desassociar do terreno monótono. Da mesma forma, quando Nalu está se decidindo ir ou não para a capital gaúcha, uma das atitudes é usar um vestido novo, de um tecido diferente daquele que está acostumada a fazer, há uma consciência que são precisos outros produtos, outras matérias, outros corpos. Se, na Vila, há apenas espera, o contato breve com os forasteiros e a sensação de que nada acontece, é por meio do uso de produtos do outro mundo que a liberdade é possível.
Ao falar de sua experiência com homens, Rosário diz que, para elas, eles sempre foram como algo passageiros, nunca permaneceram. Na Vila, são poucos os que permanecem. Mesmo a celebração da felicidade é transitória: comemorar o aniversário é viajar ao Uruguai, onde Nalu procura o garoto que se apaixonou, mas que partiu sem dizer adeus e Rubens imagina a cidade a partir dos sons. Em um lugar onde o trânsito é imperativo aos que estão confinados em rotinas rígidas, a felicidade – e a celebração – está nos outros lugares. E nos lugares dos outros.
Sob o peso do território e do tempo, porém, a obra de Oliveira termina por não explorar as questões acerca de uma tensão sexual entre a filha e o pai. No ambiente da casa, a morte é tomada como cotidiano, demora-se para arrumar o quarto de alguém que falece, transa-se no mesmo lugar do trabalho. Quando os olhares da filha se regozijam ao ver o corpo pelado do pai tomando banho e ele tem emoções confusas – entre o prazer e o remorso — ao ouvir o relato das experiências sexuais da filha por telefone, há uma tensão ali que estremece as estruturas rígidas da casa. A escolha por encerrá-las, por apaziguá-las é representar, pela imagem, também o medo e o peso do mundo que atravessa as paredes da casa. Nesse sentido, o ato do pai em chamar a filha para descrever um filme fantástico no instante em que a tensão entre ambos os preocupa não parece explorar a complexidade do que acontece: apenas diverte o espectador e a família, enquanto as dúvidas permanecem mais fortes que o som.
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