Caminhar, persistir, acreditar: “A canção do asfalto”, “Restos”, “Estado itinerante” e a opressão do urbano

Estar no espaço urbano é estar confinado – e estar em trânsito. Em A canção do asfalto (2016), de Pedro Giongo, Restos (2016), de Renato Gaiarsa e Estado itinerante (2016), de Ana Carolina Soares, o mundo das cidades oprime, ao mesmo tempo em que é somente atravessando-o, caminhando pelas ruas, que alguma esperança se torna possível.

Em A canção do asfalto, a solidão e a incomunicabilidade nas metrópoles é maximizada no gesto de não se dizer a língua local, transitar por espaços em que é possível apenas observar, permanecer como anônimo em meio àqueles que circulam pelos núcleos urbanos. Apesar disso, são criados alguns sentidos: aprender a forma de se organizar os pastéis da forma certa na lanchonete, passar em um açougue para adquirir carne para consumo, sentar em um bar e escolher uma bebida diferente apenas pelo tom da cor. Onde a experiência é, em si, um deslocamento – da terra natal, da língua materna – circular pelas ruas não será nunca um encontro. De andar a pé ou pedalar a bicicleta em direção a outro lugar, há apenas a certeza de que haverá outras lanchonetes, outros bares, outras ruas em que será possível continuar procurando.

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A canção do asfalto (2016)

Restos se inicia com uma bela de cena no box de um banheiro. O que há de possibilidade de prazer no filme parece, a partir daí, apenas um respiro transitório, um intervalo no cotidiano, uma suspensão. Em seguida, veremos o mesmo personagem nesse banheiro dando um banho em um idoso. De alguma maneira, é como se o filme, a todo o momento, lembrasse-nos que a felicidade e a liberdade se constituem em pequenas brechas no mundo do trabalho. O protagonista é um gari e adere à greve dessa categoria profissional em Salvador. Enquanto isso, ouvimos os comentários de cidadãos e mídia dizendo que é um absurdo a paralisação, na medida em que isso poderia provocar graves consequências para a limpeza e bem estar na cidade. Do último plano, porém, o olhar do personagem principal equilibrado na beira do caminhão de lixo parece dizer que, em um mundo que o trabalho oprime, o único acesso à liberdade a partir da contestação dele.

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Restos (2016), still por Yuri Rosat

Em Estado Itinerante, as relações que atravessam os filmes supracitados são intensificadas e trabalhadas com maior complexidade. Vivi parece escolher a profissão de trocadora de ônibus de forma a não voltar para casa. Mesmo aquilo que é do ambiente doméstico apenas nos alcança pelo extracampo: o som da televisão que anuncia a violência contra a mulher chega à rua enquanto ela se senta na soleira da porta. Quando volta à casa para buscar as suas coisas, apenas acompanhamos a visão do portão e ouvimos o cachorro latindo. Nenhum conforto e afeto é possível senão em trânsito, em lugares improvisados no espaço urbano: Vivi e sua colega se sentam em um pequeno muro em que é possível ouvir a rua, outra amiga oferece ajuda enquanto ela fuma um cigarro na garagem do ônibus. O horror da agressividade e violência masculina também estão fora da imagem: a voz bruta do motorista, o marido que se revela apenas pelas marcas no braço de vivi. Na rua, contudo, é possível encontrar semelhanças e afetos entre os que a atravessam: em um bar simples de esquina, sentar com mulheres e cantar uma música popular. Ali, em um dos botecos mais simples, é possível dançar com uma mulher cujo nome se desconhece, é possível ao corpo encontrar o prazer e a sensualidade que a casa retira. É possível rasgar a roupa enquanto a pele – e o coração – doem: em itinerância, há a coragem e o futuro possíveis.

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Estado itinerante (2016), still por Ceres Canedo

Imagem em destaque no topo: Estado itinerante (2016), still por Ceres Canedo.
Por Laís Ferreira Oliveira