“Um filme de cinema” e a realidade fabulada

O cinema surge como escrita da luz. Nasce pendular entre dois movimentos: o avançar das descobertas óticas e a vontade de fazer ver a partir de invenções. Do gesto dos irmãos Lumière em registrar planos fixos e, por meio disso, dar a ver, a um mundo fabulado na ação de Georges Méliès de reconhecer no cinema a possibilidade de outra mágica possível, colorida frame a frame, o cinema pressupõe acreditar. Para além da espécie de pacto que se estabelece com o espectador, que é desafiado a experienciar pelo olhar um universo suspenso pela criação da imagens, também a realização de um filme é possível a partir da crença.

Um filme de cinema (2016), de Thiago B. Mendonça convida não só a crianças a adentrarem ao universo, à história e à experiência do cinema, mas a todo e qualquer espectador a se recordar que o cinema é fábula. Na história, o festival que premeia a obra da criança é nomeado de “Impossível”. No limite, o cinema só se realiza ao ultrapassar os limites. Filha de um pai cineasta, Bebel escolhe o cinema como a ferramenta e a linguagem mais apropriadas para executar um trabalho da aula de artes da escola. Outros alunos escolham outras linguagens para o exercício da tarefa: o teatro de sombras, tocar instrumentos, interpretação corporal. Por sua vez, Bebel pede ao pai que a ensine a operar a câmera e desenvolve algumas questões chaves para guiar a produção de um filme com entrevistas: o que é a vida, o que a pessoa mais gosta de fazer, qual é o maior sonho. A resposta a essas questões e o processo de entrevistas evidencia duas questões principais: o cinema é um instrumento de descoberta do mundo, mas é preciso uma postura perante a realidade que ainda consiga positivá-la e imaginá-la. Senão, é possível que o cinema se torne impraticável, como é evidenciado na crise criativa do pai para finalizar o filme.

A partir do cinema, é possível lembrar que o cotidiano pode ser lúdico. É possível chegar à casa e imitar os gestos dos outros, fazer caricaturas dos homens como operavam Buster Keaton e Charles Chaplin. Em uma refeição, deixar as crianças comerem até sujarem o próprio rosto com a comida. Pelo desejo de produção de um filme, enxergar em um rolo de papel higiênico o recurso para se fazer uma múmia, achar normal carregar um cachorro em uma bolsa para a escola. É também o cinema esse que chega sem medo a moradores de rua, que devolve a eles a possibilidade de fazer amigos. O cinema é aquele que foge à ordem: perturba diretoras rígidas da escola, desorienta rotinas já estabelecidas. Ver o cinema no cotidiano talvez seja a possibilidade de, como nos lembra a última sequência como referência a um criador, ainda não acordar do sonho que a vida pode ser. E, nesse caso, a inserção de sequências dos primórdios do cinema que se aproximam das cenas que vemos é desenhar, uma vez mais, que talvez não haja muitas diferenças entre a ficção e o real.

Mendonça dedica a sua obra a Andrea Tonacci. Com essa informação anterior à experiência do filme, é possível recordarmos da última obra realizada por Tonacci, Já visto, jamais visto (2013). Nesse filme, Tonacci retoma antigas imagens de arquivo, filmes de família e uma ficção inacabada, cuja realização inicial pressupunha uma aventura protagonizada pelo filho do cineasta, Daniel. Em Um filme de cinema, os filmes de arquivos não são de Mendonça e não se opta por uma linguagem experimental como aquela encontrada no último longa-metragem de Tonacci. No entanto, há uma semelhança em um gesto inicial: criar, a partir da infância, novos universos e aventuras. Sempre viva, a lembrança a Tonacci nos traz aquilo que talvez fosse um dos maiores desejos do diretor: lembrar que ver é poder criar e manter, ainda, uma liberdade, um sonho possível.

Por Laís Ferreira Oliveira