“Corpo delito” e a liberdade apesar das grades

“Para saltar de páraquedas, teria que ser de um prédio mais alto”. A frase que encerra Corpo delito (2017), em um diálogo entre os dois personagens principais, parece metaforizar os sentidos de liberdade e reinserção social abordados pelo filme. E, de um prédio de escombros, aponta para a perseverança dos homens. No longa-metragem dirigido por Pedro Rocha, a possibilidade de um cotidiano com liberdade assistida para Ivan, detento sob regime condicional que utiliza uma tornozeleira eletrônica e pode circular fora da prisão em um perímetro determinado por lei, é uma tentativa de vôo, algum lugar possível à abertura sob um sistema prisional punitivo. No entanto, há obstáculos maiores – e mais opressores – à flexibilidade da pena e a planar entre as pessoas comuns: o juízo do sistema penal, os anseios do homem, a efemeridade da alegria condicionada à circulação limitada pela tornozeleira.

Em seus períodos fora da prisão, Ivan se atém a pequenos gestos de transformação: pintar o cabelo, ficar em casa com a família como se sempre estivesse ali. De forma próxima, Neto, que habita aquela região periférica, reforça a tatuagem. Em escolha acertada, a obra não nos diz os motivos que antecederam o encarceramento do detento: não cabe ao cinema punir a esses homens de forma semelhante àquela já protagonizada pelo cotidiano. Há algo mais complexo na relação com um homem presidiário que qualquer maniqueísmo, qualquer tentativa de culpa ou redenção. No contexto sociopolítico contemporâneo brasileiro, rebeliões em grandes penitenciárias não só escancaram a falência da forma do sistema prisional do país na promoção de ações que auxiliem aos detentos a se reinserirem socialmente, mas assustam pelo prazer com o qual alguns cidadãos se regozijam com a imagem dos corpos dos presos violados. Em janeiro de 2017, jornais brasileiros divulgaram que comerciantes de Manaus estavam vendendo DVDs¹ com a edição de imagens da chacina que ocorrera no início do mês no presídio da cidade, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj). A disputa entre as duas maiores facções que comandavam o presídio provocou a morte de 56 pessoas e, no limite, apontou a gravidade na espetacularização da vida dos presidiários: há quem sinta prazer em ver as vidas de pessoas que erraram violentadas, como se o único direito que presidiários tenham é ser punido.

Corpo delito tem consciência de que a vida de pessoas sob o sistema penal deve ser respeitada. E é complexa como a de todos os outros homens. Em um determinado plano, vemos Neto no interior da casa, almoçando, com um espelho em suas costas que reflete a televisão e o programa policial transmitido no momento. Como o reflexo de um espelho, o cinema aqui aborda a realidade de forma que, se contígua a ela, desloca-a pela imagem. E delineia as vidas de Neto e Ivan com nuances não reveladas pela mídia tradicional.Nesse sentido, enquanto podemos ouvir o juiz que questiona o porquê de Ivan não reconhecer a oportunidade da liberdade condicionada, a narrativa afirma que a vivência no presídio é melhor que a de uma casa, temos acesso à intimidade e à faces de um homem invisíveis ao sistema prisional e à mídia. Enquanto ouvimos uma das assistentes do Ministério Público que argumenta em favor da revogação do direito ao trabalho de Ivan, condenando-o por não ter valorizado a oportunidade do trabalho externo à prisão, percebemos que a vida fora do presídio parece ainda demandar – financeiramente e emocionalmente – mais que o emprego possibilita.

Para ambos os protagonistas, é possível apenas transitar pelos lugares comuns. Aproximar-se da praia, permanecer sob os trilhos do trem, chegar ao shopping e comprar um tênis novo. Dos lugares provisórios àqueles que oprimem, as sequências com festas possibilitam pequenas alegrias suspensas: a reunião da família, a observação de mulheres que dançam forró, inventar um brinco com uma camisinha dependurada e gozar da alegria de contestar até a chegada da polícia. Para além do cerceamento legal, para além dos atos que foram punidos, Corpo delito relembra que a liberdade – e o desejo de acesso a ela – é mais complexa que a coerção.

corpo delito

Nota
¹ Leia mais sobre a venda dos DVDs com as imagens compiladas na Revista Fórum.
Por Laís Ferreira Oliveira