“A fotografia veio como uma vontade de chegar mais perto das artes visuais” – entrevista com Andrea Capella

Andrea Capella é diretora de fotografia e artista visual, hoje vive no Rio de Janeiro. Estudou cinema na UFF, onde também deu aulas de fotografia. Fez curtas e longas em parceria com Felipe Bragança, Marina Meliande, Marcelo Caetano e Bruno Viana. Como artista visual desenvolve trabalhos em fotografia, vídeo e desenho. Dirigiu o curta Instantâneos.

Como foi sua aproximação com o cinema e mais especificamente com a fotografia?

É uma relação totalmente de paixão que surgiu quando eu estava no colégio. Durante uma aula de fotografia vi, pela primeira vez, uma foto sendo revelada. Foi a coisa mais perto de mágica que presenciei, essa coisa da transformação do processo sempre me encantou muito. Eu adoro entender sistemas, formas diferentes de compreender, visualizar e pensar mundo e a fotografia é isso, me apaixonei. Ninguém da minha família é da área das artes, minha mãe sempre trabalhou com educação, meu pai trabalhava no BANERJ, meu irmão trabalha com administração. Eu sou do subúrbio. Antes de fazer cinema fiz outras faculdades, fiz arquitetura logo que saí do colégio, tinha uma preocupação da família de ter que dar certo, ter que ganhar dinheiro. Então a primeira opção foi arquitetura e, no segundo ano, comecei um curso de fotografia no SENAC. A partir daí, todo final de semana eu fazia um filme PB diferente, passei a ter esse hábito, fotografei e revelei durante um ano inteiro. Quando terminei o curso, eu tinha certeza que não queria mais arquitetura, decidi trabalhar com fotografia, mas me deparei com um muro de quarenta metros na minha frente, não tinha ideia de como entrar nesse mercado. Aí, num chope desses de final de ano, conversei com um menino que era assistente e perguntei pra ele como fazia, ele me passou o nome e telefone de 10 fotógrafos e eu saí ligando. Fui parar num estúdio de um cara que quase não fotografava, me mandava lixar porta e tal. Uma vez, ele tava fazendo uma foto de uma escultura com sete flashes pra uma coisa que era muito delicada, aí eu falei: porque você não apaga um dos lados? Ele ficou puto, me deu um esporro e no fim acabou fazendo o que eu tinha sugerido. Fiquei super chateada e acabei mudando de estúdio, fui trabalhar com o Beto, que tinha sido da primeira turma de cinema da UFF. Trabalhei com ele durante dois anos, aprendi muito, acabei virando sócia dele. Nesse tempo cursei um período de Cenografia na UNIRIO, mas acabei desistindo. Estava pensando em começar História da Arte, porque eu gosto muito de artes visuais, eu incluo cinema em artes visuais. Sempre gostei de estudar por conta própria, estudava Lautrec, ia pra Rembrandt, Caravaggio, Miguel Rio Branco, todos esses caminhos eram completamente aleatórios, vinham da minha cabeça. Ia muito, também, ao CCBB, à Cinemateca do MAM assistir filmes. Acho que, na verdade, a fotografia veio como uma vontade de chegar mais perto das artes visuais. A direção de fotografia veio quando eu fui procurar um curso de fotografia no Brasil e vi que não tinha, o mais próximo era o cinema. O Beto me incentivou a ir pra UFF. Assim, cheguei na fotografia de cinema, porque eu já era fotógrafa e aí comecei na UFF. Assim, pra ver qual é.

E você começou fazendo still nos filmes e depois veio o interesse pela direção de fotografia?

Eu não tinha a menor ideia de como fazia direção de fotografia, comecei fazendo still porque queria estar no set. No filme final da matéria de fotografia, fiz a direção de fotografia do curta Por Dentro de Uma Gota D’água (2003), da Marina Meliande e do Felipe Bragança. Na época, eu estava estudando [Edward] Hopper e, quando a gente começou a conversar, eu falei que queria muito que esse filme fosse um Hopper, aí eu peguei um quadro, aquele dentro de um quarto de hotel, fotometrei ele inteiro pra ver qual era a relação de contraste que ele usava e, baseada nisso, fiz uma escolha de relação de contraste dentro do filme. Eu me dediquei muito para esse filme. Na UFF, a gente não tinha muita aula prática de fotografia, pouco se dizia sobre as escolhas dos planos no que diz respeito a conceitos, falava-se muito mais sobre como tecnicamente se realizou aquilo, de qual história era aquela que estava sendo contada. Todo o processo de pré-produção do filme foi muito longo, extenso, aprendi muito, tenho o storyboard até hoje e a minha monografia é sobre isso.

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Por Dentro de Uma Gota D’água (2003), de Felipe Bragança e Marina Meliande (Premiado na primeira fase do Kodak Filmschool Competition 2003, vencedor do Concurso Nacional e selecionado para competição da América Latina).

Depois você acabou fazendo vários filmes com a Marina Meliande e o Felipe Bragança, né? Como é pra você essa parceria entre fotógrafa(o) e diretor(a)?

Eu acho que é fundamental para você dar os primeiros passos em cinema, é um trabalho coletivo e de confiança, então é muito bom quando você consegue confiar na pessoa. Tem esse acordo: entender que não é o que a Andrea quer, não é o que o Felipe quer, não é o que a Marina quer, é o que o filme precisa. Pra fazer cinema, você precisa das pessoas. É coletivo, aprende a pedir ajuda, aprende a falar “isso aqui não está bom”, é sempre um aprendizado. O filme do Marcelo Caetano que fiz agora (Corpo Elétrico, 2017) é o filme mais maduro que já fiz na minha vida. O curta que eu fiz com ele, Na Sua Companhia (2011) veio numa época em que eu pensava que não era mais feliz com o que eu fazia, não estava feliz com a minha relação com o cinema, estava um pouco burocrática, uma sensação de repetição. Então, as parcerias são muito bacanas, elas são extensas e elas não se resumem ao set. Acho que tem essa coisa da flexibilidade e da confiança que tem que estar para além de um “estilo”, o que está em jogo em cada negociação são os filmes.

Como você costuma trabalhar com a luz?

Eu sou fanática por luz, amo, acho mágico, lindo. Quando eu era fotógrafa, eu sabia usar flash de estúdio, mas eu nunca tinha usado luz contínua, quando comecei a usar luz contínua foi um salto tremendo. Eu melhorei muito, era uma pessoa que sabia enquadrar bem, mas com luz eu comecei a inventar, porque você vai vendo o que você está fazendo na hora. No Gota a gente usou 3KW de luz porque era o que cabia na casa, e eu não sabia se aquilo era muito ou pouco, era o que dava então foi como a gente fez, aí o desenho de luz se adequou. É sempre muita ansiedade na hora que você vai iluminar uma cena, o ideal era ter uma hora para montar cada set, não porque eu realmente precise de uma hora pra montar, mas talvez o diretor também precisasse de um tempo para se adequar àquilo ou não. Eu saio de casa com o mapa pronto, os meus eletricistas recebem meus mapas e dificilmente mudo coisas de lugar, só mudo de lugar quando a câmera muda de lugar. O que acontece muito é entrar bandeira, eu recorto, gosto de difusão, então é mais uma afinação. Direção e fotografia é uma equação muito difícil nesse lugar do set, que é você dizer o que você precisa, convencer que você precisa, se comunicar bem com todo mundo, seus assistentes, seu gaffer. Tem esse lugar de noção dramática que falta muito na formação do fotógrafo, a gente fica muito defendendo o nosso e é pouco propositivo, muitas vezes. Luz é algo delicado, é onde você diz por onde você vai, e cada um vai encontrar o seu jeito de botar o que quer ali, eu acho luz um conteúdo dramático muito potente.

Como você gosta de trabalhar em termos de equipe?

Varia quando tem dinheiro, quando não tem dinheiro, mas, na verdade, mesmo se tiver muito dinheiro, eu não vou querer uma equipe muito grande. Eu tenho meu dream team, que são aquelas pessoas que por mim eu sempre trabalharia, são assistentes que, além de serem tecnicamente muito bons, têm uma discussão estética comigo. É essa troca que faz diferença. Dois assistentes e um logger parceiro, que possa ir pro set. E a galera de elétrica, mesmo em documentário eu tento levar sempre uma pessoa comigo, eu acho importante para poder manter um mínimo de coesão. Eu uso muito espelho, rebatedor, coisas mais leves, mas eu gosto de ter alguém. Adoro gaffer, conheço ótimos chefes de elétrica, mas um gaffer é aquela pessoa que você vira e fala: “eu queria que tivesse uma frente aqui a 45 graus difusa que vai me dar um 2.8, quero um contra 2.8 e ½ mais ½ ‘kicker’ e eu quero que do lado de cá você negative e eu vou ter 1.4″, o cara monta isso entendendo o tamanho dos planos. E precisa ter um bom maquinista, para afinar os movimentos.

Como foi sua experiência dando aula de fotografia?

Na época em que eu soube que tinha o concurso para professor substituto na UFF, eu estava vindo de um ano inteiro fazendo umas publicidades varejão. Estava me sentindo desestimulada e a universidade, pra mim, sempre foi um espaço de transformação. Eu sou apaixonada por educação, por causa da minha mãe, e sou apaixonada por universidade pública, porque acabei passando por todas. É essencial essa troca que você tem dentro de uma universidade pública e a UFF, por mais que ela seja uma universidade com pouco recurso, tem muita troca intelectual. Eu sempre senti a UFF como um lugar onde eu cresci muito. Acredito nesse ensino, sou idealista, tenho a sensação de que, dentro do sistema capitalista, a única coisa que você adquire e que não deteriora com o tempo é o conhecimento. É uma coisa que, quanto mais você compartilha, maior ele fica. Dar aula, então, é um puta tesão porque você tem um espaço de troca e levanta dúvidas que você não tinha. Eu sentia que as pessoas chegavam na aula de direção de fotografia muito cruas. Por isso, nas aulas, eu ficava um mês sem falar em diafragma, sem falar nessas coisas que assustam as pessoas, ia aos poucos. Quando cheguei no final, eu estava dando uma eletiva que era A História do Olhar no Ocidente. Foi ótimo, todo final de aula a gente apresentava um dos períodos da história da arte no ocidente e a turma se dividida em grupos, propunha um objeto artístico em cima do que a gente tinha pensado. É muito fácil sentar e trocar tecnicamente na internet, mas esteticamente é muito difícil. E esse espaço é o que a gente faz hoje em forma de conversa, eu canso de sentar com meus amigos e conversar, fazer com que essa troca estimule as pessoas a pensarem em coisas que elas nunca pensaram. Isso é super importante, como também é importante ouvir.

E seu trabalho com artes visuais?

É meio enlouquecedor, cinema já é uma coisa enlouquecedora, mas acho que o meu processo de realização cinematográfica é um processo artístico também. É um processo onde eu parto de um conceito que não é meu próprio, mas é uma relação coletiva em torno de uma coisa que vai se tornar algo. Afinal, o que é uma obra de arte, né? É uma existência inventada, é uma coisa que não existia antes e que começa a existir porque você foi lá e inventou. E acho que tem essa coisa do espaço coletivo de construção que o cinema me dá. Fiz uma residência em Londres pelo meu trabalho colaborativo, como eu faço luz de dança, conhecia várias pessoas de teatro que estavam nessa mesma residência. Em 2007, fiz uma exposição no Centro Cultural dos Correios com fotografia fixa e faço um trabalho que é meio vídeo meio foto também, como o que fiz em Londres, baseado no Claun (2013) do Felipe Bragança. Acho que isso te dá um certo respiro, trabalhar com outras coisas, eu comecei a ficar um pouco frustrada com cinema em 2009, porque comecei a sentir que era sempre correr atrás do próprio rabo, você tá falando de cinema com as pessoas de cinema, falando sobre coisas de set, que vira sua família durante três meses, aí você muda e vira outra família. Eu vivi isso durante três anos e isso me esvaziou, não tinha mais contato com meus amigos advogados, meus amigos médicos, meus amigos de outras áreas que ampliavam. Por mais que cinema amplie seus horizontes, meu horizonte foi ficando menor e comecei a dar uma freada. Será que eu não preciso investir em outras áreas?

Fazer a iluminação de um espetáculo é muito diferente de pensar a luz no cinema?

É, mas assim, no final das contas, só tem três posições de luz, são três dimensões, com três luzes você resolve as três dimensões, não precisa de mais que isso, as outras são para criar exatamente as coisas do drama. A lógica que é muito diferente, entre o que você precisa entregar e a apresentação tem algumas alterações, porque cada dia é diferente. E você faz uma coisa um dia e amanhã você mudou de ideia, quer fazer outra coisa e tudo bem. Normalmente, os diretores de teatro querem ver de outra forma. Eles estão acostumados com a não fixidez das coisas, que é totalmente o oposto no cinema, porque, se eu resolver que meu filme é todo iluminado a 2,8 da esquerda pra direita, e um dia eu falar que não quero isso, quero tudo de frente, isso vai dar problema no filme porque tem a continuidade. Então, te dá uma liberdade conversar com outras pessoas sobre outras coisas e recolocar seu conhecimento em outro lugar, duvidar das coisas que você sabe. Fazer vídeo-arte, fazer trabalhos com arte, foto, desenho, tem um pouco desse lugar de estar me desafiando. E tem a intuição que não pode ser esquecida, esse lugar da intuição na direção de fotografia que é muito técnica não pode ficar de fora. Quando você está com a câmera e você tem alguma coisa te dizendo que não está bom, dá uma volta em torno do objeto, respira, pensa, assume suas dúvidas, no teatro tem isso, uma troca muito mais imediata, você vê na hora o negócio acontecendo.

Como você sente a presença de mulheres nas equipes de fotografia no cinema?

Além de eu ser mulher, eu sou baixinha e sempre tive cara de criança. Mas eu vivi isso como fotógrafa ainda, as pessoas rirem de mim: você quem vem tirar foto da gente? É um meio extremamente machista, mas eu acho que agora o discurso sobre gênero foi reavivado, justamente por essas questões de identidade que estamos vivendo. Facilita muito a minha vida, antes eu me sentia incomodada com algumas coisas completamente machistas que passavam e eu não só não sabia reagir como muitas vezes reagia mal. Eu lembro do primeiro clipe que eu fiz com o Paulo Camacho, estava voltando de uma festa quando o Paulo me ligou e falou pra eu ir ajudá-lo porque ele estava passando muito mal. Eu fui, cheguei num ferro velho que era ali na Gamboa, tinha um caminhão de luz só e o Paulo não tinha um desenho. A gente conversou e trocou várias ideias, aí eu fui falar com o eletricista: “então, a gente vai botar a girafa por cima aqui e tal”. O cara olhou pra mim, olhou pro outro lado e continuou a conversar com o amigo dele. Aí eu falei isso pro Paulo e ele foi falar com os caras, depois voltei lá e falei: “então, agora a gente vai botar um 10KW numa girafa em cima do caminhão, vai fazer um contra, vai rebater de frente”. Mas, no fim, a gente fez todo o clipe super na parceria, porque eles ralaram pra colocar a luz onde eu queria, mas também foi uma vez só, ficou lindo, eles se amarraram. Mas tem isso, essa forma de falar quase sempre masculina. É complexo, existe uma cultura bizarra por trás, a gente tem que ter delicadeza e força, ao mesmo tempo, para não incitar uma raiva, uma agressividade maior.

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Andrea Capella

Imagem em destaque no topo: Corpo Elétrico (2017), dir: Marcelo Caetano
Por Ana Galizia, junho de 2016.