Em uma das cenas de Com o terceiro olho na terra da profanação (2016), de Catu Rizo, vemos um plano fixo de duas escadas rolantes, no centro de Nilópolis. Enquanto pessoas transitam ali, ouvimos uma voz que anuncia psicoterapia, convocando a atenção daqueles que sofrem de depressão, ansiedade, problemas com a agressividade e dificuldades nos relacionamentos. A voz promove os serviços de uma psicóloga e, logo em seguida, começa a chamar a atenção para outro motivo: o desejo daqueles que queiram emagrecer. Sem muita precisão da fonte e sem definição a quem se direciona, essa voz se apresenta como onisciente. No entanto, em um terreno de trânsito e passagem, Deus não poderia permitir ou possibilitar nada além da solução dos desejos mundanos – a perda do peso, o aprimoramento interpessoal.
A busca por algo que transcende a vida diária, mas que, ao mesmo tempo, é apenas possível a partir dela, atravessa o longa-metragem de Rizo. Em uma região periférica, um banho em uma bica improvisada pode, se assim considerado, tornar-se uma pequena oração, um canto para poder celebrar e reinventar a própria vida. Na abertura do filme, vemos a mãe de uma das protagonistas cantando sobre a condição de ser homem, ser mulher, enquanto toma a ducha improvisada. Nesse lugar do não previsto e da recodificação de hábitos corriqueiros, Com o terceiro olho na terra da profanação possibilita que aquilo que é mágico conviva com a rotina. Ao chegarem em um pequeno matagal, descuidado, próximo a terrenos baldios, Sofia, Gai e Tina realizam um ritual que parece convocar as energias da natureza, por meio do uso de cristais e cartas. O que se torna detentor de poderes e sagrado é, também, o que ressignifica um território comum. É algo próximo ao gesto de Gai que, em um dia escolar que parece mais difícil que os outros, tira da mochila uma gaita e toca baixo, com o olhar angustiado e triste. Atravessar a juventude em direção à maturidade parece um percurso possível apenas por meio desses gestos de fé. Em uma festa em que os amigos se encontram e dançam rock, Gai parece ter um olhar meio perdido por não estar, como muitos dos outros, beijando alguém. No entanto, ainda assim, há música, logo alguém dança, logo alguém se esbarra e a possibilidade de alegria e continuidade é evidente. Entre todos os rituais possíveis, a alegria e a partilha com outros constituem, de fato, a recorrência e a certeza perante o incerto.
A experiência da incerteza, da transcendência e da alegria imprime nas imagens de Com o terceiro olho na terra da profanação escolhas estéticas diversas. Acompanhamos ora como um observador externo, ora pela câmera subjetiva da perspectiva de uma das personagens, ora pelo experimentalismo na imagem que parecer conduzir a vivências em que a representação já não é suficiente. Da janela de um ônibus, uma das protagonistas comenta sobre a cidade e o percurso que perfaz, indo da música do Sorriso Maroto que homens ouvem enquanto jogam sinuca à relação com as suas amigas. Dali, não parece existir nada de incomum no mundo, nada que o difira da vida dos outros. Há, porém, a escolha de se considerar como parte de algo diferente dali, algo que os outros não veem. Numa determinada sequência, uma das garotas narra a experiência que teve ao se encontrar com uma divindade. Enquanto ouvimos o seu relato, pontuado por experiências sinestésicas, no contato com as nuvens e com o mar, por exemplo, a imagem escapa ao cotidiano, e vemos múltiplas cores e luzes que tentam dar acesso sensível à experiência transcendental. Quando termina o relato, vemos as garotas no quarto conversando com velas acesas e, no canto direito, um computador cujas imagens de proteção de tela se aproximam às cores e às formas que vimos durante a narrativa da experiência mística. O que é imaginado, o que é real, o que é sonho, o que é cotidiano não se definem – e se misturam. Nesse mundo reconfigurado pela amizade e fantasia dessas garotas, um cavalo branco andando pelas ruas desertas à noite se torna um animal estranho e inusitado, uma peça solta de um monitor jogado em uma pilha de lixo em um terreno baldio, um objeto mágico. Viver e imaginar não se separam, mas coabitam um mesmo território.
Ainda assim, há tarefas e dificuldades como as dos outros que, talvez, não vivam o cotidiano acompanhados pelo mistério, pela magia, pela invenção. Em casa, Gai ouve da mãe o questionamento se já teria passado o pano no chão da sala. Irritada e contrariada com a cobrança, Gai começa a se incomodar também com os pernilongos do ambiente. Decide pegar uma raquete para matar os insetos. Depois de alguns minutos, torna-se difícil ver os insetos, parece mesmo que o gesto danifica mais a samambaia que os pequenos animais. De qualquer maneira, a gana que Gai demonstra ao manobrar o pequeno utensílio parece dotá-lo de qualquer poder extra que o choque dessa bugiganga vendida nos sinais de trânsito parece deter. Esse objeto parece, como todas as imagens de santo no quarto da garota, permitir a ela ser maior e mais forte que a dificuldade existente na vida naquele espaço. Na terra da profanação, abrir o terceiro olho não é só ver de dentro, pelas janelas da consciência, mas, também, (re)codificar a vida do lado de fora.