Não há nada sagrado: tudo neste universo
Deve curvar-se perante nossos fogosos caprichos.
Quanto mais multiplicarmos, diversificarmos a infâmia,
Melhor a sentiremos fortalecida nas nossas almas,
Duplicando, encorajando as nossas cínicas experiências
Passo a passo, dia a dia, conduzindo-nos à perversidade.
Após os melhores anos, se a sua voz voltar a chamar-nos,
Regressemos a ela zombando dos deuses:
Para nos recompensar, o seu crisol nos espera;
O que o seu poder levou, a sua necessidade nos devolve.
Nela tudo se reproduz, tudo se regenera;
Dos grandes como dos pequenos, a puta é a mãe
E aos seus olhos somos todos queridos,
Monstros e malvados, bons e virtuosos.
Trecho de A Verdade (La Vérité), Marquês de Sade
No primeiro plano de A Criada (2016), longa metragem sul-coreano dirigido por Park Chan-wook, vemos uma tropa de soldados marchando pelas ruelas de um bairro residencial, seguidos por um grupo de crianças, que cantam uma inocente canção infantil. Chove torrencialmente, a terra do chão já virou lama e, pelo cenário e estilo de vestimentas, parece ser o começo do século passado. Depois que a tropa já virou a esquina e saiu de quadro, ouvimos um dos soldados sacar sua espada e ameaçar as crianças, que param de cantar e saem correndo gritando. Essa breve passagem introduz o contexto em que se passa a história. Aos poucos, vamos percebendo que se trata do período de ocupação japonesa, um dos mais obscuros e traumáticos da história da Coreia, em que milhões de homens foram submetidos a trabalhos forçados com péssimas condições e milhares de mulheres foram transformadas em escravas sexuais do exército japonês.¹ Esse violento pano de fundo contamina as relações entre os personagens e a atmosfera do filme: um universo sombrio em que todos são traiçoeiros, mentirosos ou farsantes, dispostos a fazer qualquer coisa para melhorar de vida. Um dos protagonistas é o Conde Fujiwara (não se sabe se este é seu verdadeiro nome, mas é assim que ele se apresenta), que entra na casa de Nam Sook-hee, uma jovem ladra, cuja família é especializada em falsificações de joias, dinheiro, carimbos e assinaturas e que recolhe bebês coreanos abandonados para revendê-los aos japoneses. Fujiwara propõe a Sook-hee uma parceria em um golpe e a menina aceita: Sook-hee vai para a mansão da senhorita Izumi Hideko, japonesa órfã herdeira de uma enorme fortuna, que vive com o seu tio Kouzuki, um tirano que pretende se casar com a sobrinha para conseguir sua herança. O plano de Fujiwara é o seguinte: Sook-hee – agora assumindo um outro nome, Tamako – trabalhará como criada pessoal da senhorita Hideko e a incentivará a casar-se com ele próprio. Uma vez oficializado o casamento, Fujiwara e Tamako enviarão a senhorita Hideko a um hospício, alegando que ela enlouqueceu, e os dois ficarão com todo o dinheiro da herança. O que Fujiwara não esperava era que a senhorita Hideko e Tamako se apaixonariam uma pela outra e que, juntas, viveriam uma tórrida história de amor. Descobrimos, também, que o tio Kouzuki é um grande colecionador de livros eróticos e que ele obriga sua sobrinha a realizar leituras dessas obras a homens japoneses que frequentam sua mansão. O filme se revela, gradativamente, uma espécie de thriller erótico-psicológico. A ambientação sinistra articula-se à dimensão sensual que transborda da trama, alimentando os desejos das personagens e incorporando à tessitura fílmica uma lógica de prazeres sensoriais e narrativos.
O gesto de olhar é uma ação recorrente em toda a projeção. Nós, enquanto espectadores, inicialmente temos acesso ao mundo pelos olhos de Sook-hee/Tamako. Parece que sempre há algo sendo escondido e a jovem curiosa não hesita em olhar pela janela, frestas de portas, buracos em paredes, grades. A câmera, em muitos momentos, reforça essa condição ao se afastar radicalmente, registrando os acontecimentos do lado de fora do casarão: vemos apenas as janelas com luzes acesas e as silhuetas dos personagens. Na segunda parte do filme, quando o foco narrativo migra para Hideko, passamos a acompanhar o seu olhar, mas a linguagem mantém a mesma estrutura. A fragilidade das aparências é frequentemente reiterada pela história, desde a profissão de falsificadores da família de Sook-hee até os comentários que Tamako faz sobre o comportamento do conde e sobre o quanto a senhorita Hideko “ruboriza” perto dele. Contudo, há uma crença do filme em uma ideia de verdade: por mais difícil que seja distingui-la, ela existe, basta retirar as máscaras e disfarces para acessá-la. E, nesta narrativa, somente quem consegue fazê-lo são as protagonistas femininas, o casal Hideko-Tamako; são elas as únicas capazes de alcançar uma possível verdade através do prazer, além de ludibriar todos os homens com suas habilidades fingidoras.
O filme se engaja nessas duas figuras, convocando o espectador a uma experiência sensória. Quando as mulheres estão transando, o universo parece adquirir sentido e a montagem intercala planos próximos e gerais, cuidadosamente coreografados. Os mais fechados são captados com lentes macro, vemos a saliva, os fios de cabelo, uma sensação de intimidade, com direito a um “plano ponto de vista” da vulva de Hideko “olhando” para Tamako. Os planos abertos são fotografados com um aspecto de maciez e textura suave: composições geométricas e harmônicas predominam na janela em scope, a câmera flutua ao redor dos corpos, gira, envolve-os. A luz fria do luar banha as moças junto com a luz morna dos abajures. O ambiente todo parece confortável, desde os tecidos da roupa de cama, os padrões do papel de parede, da tapeçaria, há lindas flores nos vasos. Sobe o som, ouvimos a música clássica orquestrada, com muitas cordas, o volume aumenta na medida em que as personagens se aproximam do orgasmo. Gemidos, sussurros, o ruído das genitálias molhadas se chocando uma na outra, as peles roçando, todos esses elementos tomam conta da banda sonora, embalados pela trilha musical que remete à estética dos melodramas clássicos.
Dessa maneira, o filme utiliza tanto os procedimentos de alignment (alinhamento) quanto de allegiance (lealdade, filiação) – vocabulário proposto por Murray Smith no livro Engaging Characters (1995) – para convidar o espectador a torcer pelas heroínas Hideko e Tamako. Por alinhamento, entendemos a forma como o filme nos dá acesso às ações, pensamentos e sentimentos das personagens e, conforme vimos acima, isso é feito ao longo de toda a obra. Na primeira parte, estamos alinhados a Sook-hee/Tamako e, na segunda parte, a Hideko, sendo que as cenas de sexo são o ápice dessa adesão, o filme engaja-se duplamente. A terceira parte não possui um alinhamento único: já entendemos que ambas são as heroínas, o foco é dividido entre as duas. Por sua vez, a filiação está associada aos mecanismos que o filme utiliza para que o espectador simpatize ou não com determinadas figuras. Durante toda a narrativa, os personagens masculinos são eticamente condenáveis, mas as femininas são ambíguas. Sook-hee é apresentada como uma golpista e, embora estejamos alinhados a ela durante a primeira parte, o fazemos cientes de que ela não possui um bom caráter. O primeiro ato termina com Sook-hee sendo vítima de uma emboscada e, então, passamos a acompanhar a história pelo ponto de vista de Hideko, agora revelada como mentirosa. Suas motivações são ambíguas até a metade do filme, quando descobrimos que as duas mulheres se amam “de verdade” e que, embora os “meios” empregados por elas sejam questionáveis, é a partir do encontro dos corpos que elas terão uma espécie de salvação. E a falta de simpatia concedida aos homens faz com que os “fins” dessas moças sejam facilmente justificáveis. É na mútua confiança que elas se livram de suas prisões: uma fugindo de uma vida dura, miserável e sem perspectivas e a outra escapando da clausura na luxuosa mansão. Enquanto Fujiwara e Kouzuki se torturam e matam no porão (o que lhes proporciona algum prazer, vale ressaltar), as mulheres gozam na cabine do navio, utilizando-se de práticas aprendidas na literatura erótica colecionada pelo tio.
Ao espectador, há ainda a possibilidade de desfrutar um prazer advindo da virtuosidade narrativa da obra. Todas as pontas soltas da trama são amarradas – algumas exigem um grau maior de boa vontade, como o incêndio no manicômio e a cena em que Hideko induz Fujiwara a beber vinho, mas nenhuma é deixada de lado. Assim, a estrutura, que transita a focalização narrativa entre as duas personagens principais, repetindo as mesmas situações por pontos de vistas diferentes, pode proporcionar uma espécie de recompensa ao espectador que se mantiver atento durante os 145 minutos de projeção. No artigo Parallel Lines (2001), Murray Smith analisa filmes com histórias paralelas e apresenta o conceito de ‘architectural’ pleasure (prazer arquitetural), uma satisfação que deriva da forma com que essas histórias nos são contadas: “a revelação sucessiva da mesma ação testemunhada por diferentes pontos de vista cria um tipo de fascínio formal, direcionando nossa percepção para a maneira com que várias linhas de ação se entrelaçam” (SMITH, 2001, p.155). Smith usa termos como jigsaw (quebra-cabeças) e clues (pistas) para descrever a maneira como estes filmes se estruturam, e faz sentido que a sensação obtida no final da projeção seja análoga à que se alcança após a conclusão de um enigma. Outro autor que analisa narrativas audiovisuais complexas (neste caso, televisivas) é Jason Mittell, que trabalha com o conceito de efeito especial narrativo, comentando as obras que trazem “a estética operacional para o primeiro plano, chamando atenção para a natureza construída da narração e demandando admiração direcionada a como os escritores conseguiram realizá-la” (MITTELL, 2012, p. 43). Ou seja, mais do que nos sentirmos “enganados” pelo filme (e por seus personagens trapaceiros), somos logo recompensados com novas informações que reconfiguram a narrativa e “explicam” lacunas. O filme chega ao final proporcionando um certo alívio, talvez um orgasmo, e o espectador pode gozar junto com Hideko e Sook-hee.