A história que se monta: representações (e reverberações) da greve do ABC

Em uma sequência de ABC da greve (Leon Hirszman, 1990)1, vemos uma faixa erguida por alguns operários que estão reunidos para discutirem a pauta do movimento sindical e grevista. Esse material é estampado com uma figura de Jesus Cristo de um lado e, do outro, a de Lula. Enuncia: “Eles representam o povo e nunca serão esquecidos”. Tal apresentação de Lula como messias não é um fato isolado. Nos dois outros filmes que abordaremos neste texto, Dia nublado (Renato Tapajós, 1979) e Greve! (João Batista de Andrade, 1979), há uma cena em que vemos um operário lendo um jornal anunciando o retorno à direção do sindicato, após o firmamento do acordo que encerraria os dias de greve. A frase “Ele voltou”, manchete desses jornais, dialoga também com um imaginário comum cristão, que acredita em um retorno messiânico em período de crise. O possível retorno de Cristo para o julgamento final é uma esperança que conduz à ascese: ainda em períodos turbulentos, é preciso agir com destreza nos gestos, boa condução moral, porque, quando ele retornar, o caminho para o céu é o dos homens bons. Produzidas por diretores distintos, essas obras nos apresentam a movimentação da classe metalúrgica no ABC paulista em prol de melhores condições trabalhistas e salários. Realizados no período da ditadura militar no Brasil, esses filmes nos ajudam a pensar algumas das questões referentes à relação do cinema com a política brasileira contemporânea. Nesse sentido, refletimos como a forma do filme estabelece uma maneira possível para ordenar uma narrativa do mundo, a criação de sentidos políticos a partir do cinema e a legitimação de lideranças por meio das imagens.

Screen Shot 2017-06-04 at 10.28.28 PMÀ esquerda, frame de Um dia nublado (Renato Tapajós, 1979); à direita, frame de Greve! (João Batista de Andrade, 1979)

Em Cineastas e imagens do povo, Jean Claude Bernardet escreve O intelectual diante do outro em greve. O texto se inicia abordando obras de Rogério Correa, atentando-se para a maneira como se situa o tempo e os operários no filme. Na análise de Os queixadas, Bernardet pontua:

Por outro lado, me parece, o filme faz coincidir memória e verdade histórica. Confia-se plenamente no fato que a memória das pessoas que viveram uma ação a reproduz fielmente. O filme em momento algum discute a memória, nem a questão da elaboração da história; e esta elaboração, provenha ela de historiadores ou de agentes da ação, é sempre problemática (BERNARDET, 1985, p.158).

Essa questão do cinema como produtor e organizador da memória nos parece um elemento chave no pensamento acerca de imagens que se detém sobre acontecimentos políticos. E aponta para a dificuldade em se produzir e montar essas imagens em um espaço temporal muito próximo a esses eventos. O autor pontua sobre Greve! e Dia nublado:

abordam a mesma situação: a greve dos metalúrgicos de São Bernardo em 1979, e ambos têm a intenção, não de fornecer uma análise sociológica ou política  de um fenômeno, ou pelo menos de se limitar a isto, mas de se inserir na ação. De fato, foram exibidos no calor da hora e participaram da mobilização dos operários durante o período de 45 dias (BERNARDET, 1985, p.161).
Screen Shot 2017-06-04 at 10.46.40 PMFrames de Dia nublado (Renato Tapajós, 1979)

Para Bernardet “Dia nublado mantém-se o mais possível ligado aos acontecimentos” (BERNARDET, 1985, p.162), ao passo que, na obra de Batista, “imagens e depoimentos de operários colocam o tema da greve como um fato” (BERNARDET, 1985, p.162). Há diferenças significativas na forma como esses filmes abordam o evento da greve. Dia nublado se inicia com uma sequência de fotos montadas, as quais, a princípio, não são explicadas. Após algumas imagens, a voz de um dos operários afirma que a greve foi deflagrada devido à intransigência patronal.

Na abertura de Greve!, vemos imagens de policiais sobre seus cavalos, seguidas de uma cartela que data os eventos e a imagem de uma fábrica automobilística. No filme de Batista, há o emprego recorrente da voz em off, que parece querer organizar e explicar não só a situação da greve, mas a atmosfera sociopolítica presente no Brasil naquele momento. Nesse esforço, torna-se curioso pensarmos as escolhas de banda e trilha sonora no filme. Na sequência de abertura, ouvimos uma parte da melodia de Mote e glossa, de Belchior, compositor também de Máquina I, que é trilha de outra sequência. Ouvimos, em uma outra cena, um trecho de Soy libre, soy bueno, da banda Taracón. Destaca-se o uso do som quando, ao vermos uma sequência de fotografias fixas de ataques da polícia, ouvem-se ruídos e sons das sirenes. Dessa maneira, parece-nos que o desejo de apresentar um panorama, uma explicação sobre aquela realidade, estabelecia um diálogo com um presente de produção cultural e artística. Invocar canções que, em um imaginário partilhado, questionavam a ordem de exploração do trabalho e convocavam à liberdade e à outra ordem política e trabalhista. Bernardet comenta sobre o filme: “É a voz em off que fornece estas informações e, embora isso nunca seja dito explicitamente, elas valem como explicação: elas explicam a greve ou lhe dão sentido” (BERNARDET, 1985, p.165).

Em comparação com os filmes supracitados, é em ABC da greve que temos a figura de líder sindical de Lula com mais força. Se Greve! “evita transformar Lula em herói” (BERNADET, 1985, p.171), em ABC da greve ouvimos Lula dizer: “para mim, a maior consagração pessoal seria o Lula ser preso e torturado”, cercado por trabalhadores. Falar de si em terceira pessoa e reconhecer o martírio como consagração é algo apenas concedido aos heróis – e ao messias. Se em Dia nublado e Greve! temos sequências em que, durante a fala de Lula, há planos que priorizam a imagem dos trabalhadores durante os discursos, aqui temos a imagem do líder sindical cuja postura e voz forte reverbera. Quando os empresários rompem com o compromisso firmado de descontar dos salários antes do prazo previsto e a direção sindical afastada se reúne para pedir não o retorno à greve, mas a oportunidade do restabelecimento da direção do sindicato, há planos longos que enfocam em Lula. Na apresentação desse mesmo evento, Dia nublado e Greve! apresentam tempos distintos na abordagem do líder. Outro aspecto interessante de notar no cotejo das três obras é quando a equipe de ABC da greve conversa com um dos responsáveis pelas relações da fábrica para tomar imagens no interior da instituição. O pedido é embasado no fato de constituírem uma equipe de jornalismo. Frente à negação do funcionário, o diretor argumenta que, na parte externa da fábrica, a tomada das imagens é livre.  Do lado de fora, no mundo, não é preciso pedir autorização para tomar as imagens. Ao contrário dos outros dois filmes, aqui temos a expressão clara da importância da imprensa como um elemento possível ao questionamento, à investigação e à denúncia.

As formas como esses filmes operam com um evento político de forma distintas podem nos auxiliar a pensarmos de que maneiras é possível, em um contexto de extrema crise e instabilidade política no Brasil, produzir, reunir, organizar imagens que auxiliem a entender os acontecimentos que nos atravessam no presente. Especialmente desde junho de 2013, quando manifestações com um grande número de pessoas aconteceram nas ruas e com o golpe jurídico que vivemos em 2016, há incertezas sobre a compreensão e futuro da política brasileira. Podemos voltar ao que sublinha Michel Foucault sobre a natureza do documento em Arqueologia do saber: “o documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e a elaboração à massa documental de que ela não se separa” (FOUCAULT, 2016, p.8). Em uma época de grande volume de produção de imagens, é possível questionar como esses registros podem operar como documentos e construtores de memória coletiva. Enquanto vivemos a incerteza do futuro político, o inacreditável do presente, quais filmes se tornam possíveis fazer?

Diante da dificuldade de responder essas questões, podemos voltar ao que diz Deleuze em Bergsonismo:

o presente não é; ele seria sobretudo puro devir, sempre fora de si. Ele não é, mas age. Seu elemento próprio não é o ser, mas o ativo ou o útil. Do passado, ao contrário, é preciso dizer que ele deixou de agir ou de ser útil. Mas ele não deixou de ser. Inútil e inatível, impassível, ele É, no sentido pleno da palavra: ele se confunde com o ser em si. Não se trata de dizer que ele ‘era’, pois ele é o em-si do ser e a forma sob a qual o ser se conserva em si (por oposição ao presente, que é a forma sob a qual o ser se consome e se põe fora de si). No limite, as determinações ordinárias se intercambiam: é do presente que é preciso dizer, a cada instante, que ele “era” e, do passado, é preciso dizer que ele ‘é’, que ele é eternamente o tempo todo. – É essa a diferença de natureza entre o passado e o presente (DELEUZE, 1999, p.42).

Nesse livro, Deleuze retoma as teses de Henri Bergson, atravessando os conceitos de intuição, duração e memória. Se, de alguma maneira, tentarmos utilizar desse pensamento para compreender um certo lugar das imagens, colocamos-nos em contato com imagens do presente que irão, a todo momento, apontar para fora. As imagens do presente não dão conta de explicar o futuro, diagnosticar o que virá: elas caminham com o que há por vir. No entanto, olhar para o passado, para as imagens que já caminham no espaço entre o esquecimento e o desejo da lembrança, permite compreender o que ainda afeta o tempo vivido agora. Olhar para o passado é conseguir, ainda que com limites, entender algo sobre o tempo de agora.

Um questionamento possível de levantarmos é: como os filmes feitos na época da greve do ABC ainda podem nos ajudar a entender a política contemporânea? Nesse caso, nossas análises também podem se deter em quais seriam as escolhas estéticas para realizarmos filmes sobre o que se passa agora. Poderia o cinema, neste momento, olhar para esse volume de imagens, comentá-las, vale-se da voz em off como uma outra onisciência, a voz que nos respondesse e levasse-nos da deriva? Um narrador como o que há em Greve! talvez pudesse tentar juntar, narrar o grande volume de imagens e informações que temos acesso, especialmente a partir de junho de 2013, sobre manifestações e paralisações. Se o cinema talvez não o faça, ao assistirmos a cobertura midiática dos grandes veículos, especialmente a televisiva parece que, ali, há esse gesto, uma tentativa de organização. Nessas coberturas, muito claramente são criados os culpados pela corrupção, os que podem assegurar o retorno ao ordem. Podemos pensar, por exemplo, na cobertura da investigação feita pela Lava Jato, em que se criaram símbolos como o heroísmo do juiz Sérgio Moro, uma suspeita não comprovada do envolvimento de Lula e Dilma na corrupção e, recentemente, a revelação da participação de Michel Temer e Aécio Neves no esquema de desvio de dinheiro. Diante disso,  há uma instabilidade nos lugares de representação e nas possibilidades nos discursos políticos: enquanto, para aqueles viventes dos lugares de insurreição, é difícil afirmar o que se passa, aqueles que dele não participam produzem as narrativas dessa história. Nesse cenário tumultuoso, torna-se cada vez mais delicado pensar quais serão as narrativas, os comentários sobre os líderes que possam viver conosco, que partilhem conosco a vivência mesmo da história. Cada vez mais, o que se vive nas ruas estabelece distâncias com o que é contado, pelos outros, sobre esse lugar político.

Ao se debruçar e analisar a obra deleuze, em Deleuze, os movimentos aberrantes, David Lapoujade elucida:

politicamente, historicamente, socialmente, os movimentos aberrantes sempre são máquinas de guerra, agenciamentos guerreiros – como atestam os nômades, os trabalhadores itinerantes, os sábios e os artistas ao longo da história universal, em virtude dos novos tipos de espaço-tempo que criam. De uma maneira muito geral, os movimentos aberrantes são inseparáveis de uma força crítica destruidora” (LAPOUJADE, 2015, p.23).  

O que pode haver de aberrante nos deslocamentos dos territórios, no esfacelamento dos lugares políticos antes existentes, nas figuras de liderança, é também ímpeto e força para destruir e recriar outro futuro. No entanto, esse gesto não é o que perfazido pelas narrativas da grande mídia: ali, o que há de aberrante é outra vez organizado, outra vez posto em lugares facilmente compreensíveis e onde mesmo a tensão tem justificativa, começo e fim.

Dia nublado, Greve! e ABC da greve nos lembram que, de um mesmo evento político, próximo a um dos líderes mais icônicos da história brasileira, são possíveis as mais diversas narrativas. Olhar para nosso passado parece ser o mecanismo possível para que elaboremos o presente. O conforto de rememorar cintila como é a natureza dos vidros quebrados: ali, já despedaçados, fragmentados, ainda resplandecem a luz que se projeta sobre eles. No entanto, ainda que remontados, esses pedaços não alcançam a primeira natureza que tiveram. De alguma maneira, reconfigurar o presente, transformar o ambiente político, também atravessa a produção de imagens. Encontrar quem nos represente politicamente de fato parece ser um dos atuais dilemas; entender o papel das imagens nessa busca é outra encruzilhada. O que nos é necessário? As imagens que convoquem e estabelecem uma liderança, os discursos que assegurem a estabilidade a contrapelo da imprevisível ordem das instituições e projetos políticos? As dúvidas parecem surgir e aumentar na proporção inversa das soluções possíveis. Há alguns anos, envolver-se com protestos sem ter, necessariamente, filiação partidária ou a movimentos sociais tornou-se um gesto comum. A deriva parece coabitar conosco, no gesto aberrante onde, talvez, seja possível a liberdade e esperança. O que se coloca como desafio agora é, no trabalho com essas imagens, entender qual narrativa da história podemos montar. E, provavelmente, esse entendimento nos encontrará somente quando passarmos por esse presente.

Notas:
1 As gravações se iniciaram em 1979, mas a morte do diretor antecedeu a finalização do filme, que foi concluída em 1990 pelo fotógrafo Adrian Cooper.
Referências:
BERNADET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
DELEUZE, Gilles. Bergnosnismo. São Paulo: Editora 34, 1999.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.
LAPOUJADE, David. Deleuze e os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1 edições, 2015.
Por Laís Ferreira Oliveira