A produção cinematográfica equatoriana, que até pouco tempo atrás era bastante escassa, tem ganhado força nos últimos anos. A partir de 2006, o governo deste país estabeleceu o Conselho Nacional de Cinematografia com o objetivo de impulsionar o cinema nacional, o que fez as produções praticamente dobrarem em quantidade. A que distância (Que tan lejos), lançado em 2006, foi o primeiro longa-metragem da diretora equatoriana Tania Hermida, de grande destaque no cenário audiovisual internacional. No Brasil, participou da 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e foi premiado no 2º Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo.
É comum, nos países latino-americanos, que haja pouco espaço de exibição para a produção nacional e que superproduções hollywoodianas monopolizem a programação do circuito comercial. No Equador não é diferente e os realizadores e realizadoras tem pressionado para que haja mais leis de incentivo no audiovisual, visto que, até 2012, apenas 4% dos filmes exibidos nas salas de cinema eram produções nacionais. A que distância segue uma tendência que pode ser observada nos demais filmes equatorianos: boa parte deles aborda algum aspecto da identidade nacional ou trata de temas relacionados à imigração e colonização.
Filmado em apenas cinco semanas e com baixo orçamento, o longa caracteriza-se como um road movie, no qual duas mulheres, Esperanza (Tania Martínez) e Tristeza (Cecilia Vallejo), se conhecem em um ônibus com destino à cidade de Cuenca. Tristeza é uma universitária feminista que acaba de fazer uma monografia sobre as personagens femininas nos contos equatorianos contemporâneos. Após descobrir que seu “ficante”, Daniel, um ecologista mochileiro, está prestes a casar-se com outra, embarca nesta viagem com o intuito de impedir que a cerimônia aconteça, acreditando que o casamento é forçado pelos pais do rapaz, já que são de uma família muito tradicional e a noiva faz parte da elite agrária de Cuenca. Esperanza é uma turista espanhola que apresenta um comportamento típico de turista deslumbrado, enxergando tudo ao seu redor como um grande espetáculo que deve ser fotografado a cada momento. Como Esperanza é espanhola e Tristeza é equatoriana, podemos ver aí um nítido binarismo, não só caracterizado nos nomes das personagens, que claramente fazem uma oposição, mas também por Esperanza ser nativa do país que colonizou o Equador. Frequentemente, Tristeza se mostra incomodada com este olhar que Esperanza tem sobre o país. Em entrevista, Tania Hermida explica sua decisão pela nacionalidade das duas jovens:
Eu queria a história de uma equatoriana e uma estrangeira. E essa estrangeira desde o roteiro era espanhola. Se fosse uma turista de outro país não funcionaria em muitas coisas, desde temas como o taxista e esse ressentimento pela conquista, desde coisas tão absurdas até coisas mais contemporâneas, como isso dos equatorianos que estão na Espanha e o que estão passando por lá…toda essa relação que tem a ver com o passado colonial e com essa relação de agora, então tinha que ser espanhola.¹
Ao longo da viagem, as duas mulheres conseguem caronas com diferentes pessoas em transportes variados, como cavalos, caminhonetes, carros e motos. Trazendo essa variedade, o filme de Hermida propõe uma forma de rompimento com os clássicos road movie norte-americanos, nos quais o carro é o principal meio de locomoção.
O road movie aparece então como o veículo ideal para a representação desses sintomas do nosso tempo. Tanto a literatura de viagem, como o road movie, em si, não constituem gêneros fechados, mas uma espécie de recorte temático que pode estar presente nos mais diversos gêneros. Entretanto, é possível desenhar, especificamente no caso do road movie, algumas continuidades, alguns traços característicos que apontam para a cristalização de um gênero road movie, no qual o deslocamento dos personagens serviria simultaneamente como tentativa de escapar do mundo onde vive e de desenhar novos mapas, de prescrever novas rotas, de descobrir novos territórios. (PRYSTHON, 2006, p. 115-116)
Assim, as personagens, ao buscarem destinos, paisagens e lugares, parecem estar também em busca de si mesmas, de se perceberem na relação com o outro e o mundo. Filmes desse gênero com protagonistas femininas só surgem após a década de 1990, com o filme Thelma e Louise (1991), de Ridley Scott, porém, ao contrário deste, em que a busca pela liberdade acaba em tragédia e morte, em A que distância, as protagonistas encontram autonomia verdadeira e seus corpos e personalidades não são fetichizados, como é comum acontecer com as personagens femininas nas telas do cinema. Ao contrário, as duas são sujeitos de suas histórias, convidando o espectador à empatia e identificação. Para Ann Kaplan (1995), as mulheres são objetos para serem olhados e apreciados. Essa objetificação do corpo feminino direciona a maneira como esses corpos se dispõem e se organizam diante da câmera e inclusive o lugar simbólico que ocupam na narrativa, de forma a serem personagens fisicamente atraentes. Os homens devem ser incitados a desejá-las e as mulheres a quererem ser como elas. Mas por que o corpo feminino está comumente em maior evidência e é maior alvo de especulações do que o masculino?
Segundo Michel Foucault (1999), é com a medicina, a partir do século XVII, que se desenvolve o saber acerca do corpo – expandindo-se, posteriormente, para outros campos do conhecimento, como a sexualidade, a psicanálise, a psiquiatria, etc. Ao tratar do controle do corpo, o autor afirma que o feminino sempre foi o grande alvo da medicina, mantendo-se como centro de interesse. Numa sociedade patriarcal, onde os homens dominam a esfera científica, é o olhar masculino que se afirma como sujeito, como construtor do discurso do saber. Assim, o imaginário acerca do corpo feminino foi criado a partir desse olhar que via na mulher “o outro”, o objeto, o mistério a ser desvendado. Ainda segundo Foucault (1999, p. 80):
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política.
Indo na contracorrente, na obra aqui analisada, temos uma diretora, ou seja, a mulher também presente atrás das câmeras, deslocando o costumeiro olhar fetichizante e objetificante sobre o feminino, fazendo ressignificações. Tania Hermida é uma artista assumidamente feminista, que milita pelos direitos das mulheres no Equador e seus filmes apresentam protagonistas femininas.
Já dentro do ônibus com destino a Cuenca, as duas protagonistas, Esperanza e Tristeza, são obrigadas a descer e tentar carona na estrada devido a uma rebelião da população indígena (que representa 40% dos habitantes locais). A manifestação interrompe o transporte rodoviário e traz pautas contra o Plano Colômbia², uma intervenção dos Estados Unidos contemporânea à época das filmagens, evidenciando um diálogo da obra com o contexto político da época.
Uma forte crítica feita pela diretora ao longo da obra é em relação à manipulação midiática sobre a população. Essa crítica aparece em vários momentos, como quando Tristeza é abordada por uma garotinha indígena vendendo balas na rodoviária e leva um susto. A menina afirma de pronto: “Não se assuste, não vou fazer nada! Você anda vendo muita televisão!”. Em outra cena, um repórter entrevista as personagens na estrada, querendo saber como a greve dos indígenas atrapalhou a viagem delas. Esperanza, que é mais despolitizada, não diz muita coisa, mas Tristeza começa a fazer um discurso em apoio à greve e o repórter imediatamente lhe corta. Há, também, algumas passagens em que vemos populares assistindo novelas e futebol, como se estivessem deslocados no tempo, enquanto uma rebelião acontece no país e a mídia ignora ou a difama. Dessa forma, a diretora deixa clara sua oposição aos meios de comunicação de massa e à alienação que podem provocar no povo.
Em dado momento do filme, Tristeza se encontra com um indígena que lhe dá carona, ele então pergunta de onde ela é. Estranhando a pergunta, a moça responde que é equatoriana. O rapaz conclui que não parece, pois as equatorianas não costumam andar sozinhas por aí, insinuando que são mulheres mais tradicionais e recatadas. Em seguida, um amigo do jovem chega e eles começam a conversar usando o dialeto quéchua e Tristeza nada entende, pois só sabe a língua do colonizador, o espanhol. Ela, que tanto critica Esperanza, também acaba percebendo o quanto desconhece das características originais de sua terra, ao não conseguir compreender a língua do povo nativo.
Ao longo do filme, as duas personagens centrais criam um forte laço de amizade. O filme rompe com o senso comum de que relações entre mulheres envolvem muita rivalidade e competição, imagem que, com frequência, é difundida no cinema, nas novelas e na grande mídia em geral. Esperanza, guiada por Tristeza, conhece os caminhos do Equador, muda sua perspectiva de turista deslumbrada e passa a conhecer paisagens e pessoas reais (e não projeções romantizadas), indígenas protestando por seus direitos, viajantes, trabalhadores, identificando os problemas sociais do país, suas diferenças e hierarquias.
Ao chegar em Cuenca, Tristeza encontra o rapaz por quem é apaixonada se casando com outra. Ele está feliz e, de modo algum, foi obrigado àquilo. Percebemos, então, que ela acabara idealizando um romance entre os dois que de fato não existia. Tristeza revela-se uma personagem feminista complexa, que não precisa provar o tempo todo que é livre e desconstruída, mas que também erra, que também se ilude e se envolve em relacionamentos que não lhe fazem bem. Enquanto isso, o rapaz, na verdade, era só mais um abastado da elite de Cuenca que mantinha aventuras extraconjugais com Tristeza enquanto seu futuro e reputação estavam garantidos no noivado com a “mulher perfeita” para a sociedade local. Ao invés de permanecer infeliz pelo que ocorreu, Tristeza passa a sentir-se confiante e a cultivar sua autonomia desenvolvida na viagem com Esperanza. Depois de compartilharem tantas aventuras, as duas constroem um forte laço de amizade e, ao desenvolverem confiança mútua, Tristeza acaba por revelar seu verdadeiro nome, Tereza. A amizade entre as duas é das maiores belezas que se tem nesse filme, em que companheirismo e sororidade são marcas da jornada dessas duas mulheres, mesmo elas sendo muito diferentes: uma europeia e a outra latino-americana. A relação que elas estabelecem é crucial para o caminho que tomam, pois é a partir deste encontro que suas vidas mudam de rumo e de perspectiva, em direção ao crescimento e aprendizado. Tereza, a partir do contato com Esperanza, aprende a sentir-se mais confiante e esta, influenciada pela amiga, passa a ver o mundo de forma mais crítica.
Ao final do filme, na cena em que elas jogam as cinzas de uma parente de Jesus (um viajante que elas conhecem pelo caminho) no rio, Tereza diz: “Que estranho…”. “O que?”, pergunta a companheira de viagem. “Estar aqui”, ela responde. Esperanza, então, argumenta que essa frase na verdade é dela, porque é ela quem é a estrangeira e quem sempre estranha o fato de estar tão longe de casa. Tereza, ao enxergar outras facetas do próprio lugar em que vive, começa a perceber-se no mundo de forma diferente, uma forma “estranha”, algo que ela não sentia antes. O deslocamento no mundo provoca também um deslocamento interno na personagem. Não à toa, ao mesmo tempo elas despejam as cinzas de uma morta, como se estivessem se despedindo daquilo que já foram, cena que marca o fim do filme e o renascimento das personagens. A que distância é uma obra na qual fronteiras são rompidas para o encontro mais verdadeiro de todos: o encontro consigo mesmo e a percepção empática do Outro.