“Oh mulheres, se podemos compelir os homens a se curvarem diante da paz, então devemos… (…) nos abster de toda a forma de amor” (ARISTOPHANES III: 86, 128-129), convoca Lysistrata diante de uma platéia feminina assustada e descrente de tal proposição. O objetivo do plano era simples: dar um fim à guerra entre gregos e espartanos. A tática consistia em convencer as mulheres atenienses de que a negação ao leito matrimonial, base formadora das Cidades-Estados, poderia destruir a cidade com ímpeto maior do que qualquer guerra. O que estava em jogo era a estrutura da vida humana, representada pelo corpo cívico da cidade e seu aparato de manutenção, a Democracia.
Entre a sátira política, a atenção dos papéis cívicos e a subversão da ordem para a crítica, a peça de Aristófanes interpretada em 411.a.C para uma Atenas desgastada pela Guerra do Peloponeso (431-404.a.C) expunha comentários políticos sobre um grupo social em vias de desagregação, através da cômica dos absurdos. É preciso deixar claro que o comediógrafo estava longe de convencer o público a refletir, por exemplo, sobre temáticas de gênero. Ao contrário, o autor tentava demonstrar, através da comédia, os efeitos devastadores que uma prolongada guerra instaurava, a ponto de mulheres tomarem decisões políticas para o bem da polis (cidade). Temos, assim, quatro pontos que se destacam na peça e que ajudam a explicar os comentários de Aristófanes sobre a dinâmica social do fim do período clássico grego: 1) a condição limite da capacidade de sobrevivência através da atribuição de papéis sociais inversos (mulheres se envolvendo com política; homens demonstrando lascívia e descontrole)1; 2) o esgarçamento da ordem como promotor da renegociação da sua subsistência, através da ardilosa astúcia feminina2; 3) o resultado das duas etapas anteriores, a assunção de estratégias estruturais do poder político – por mulheres (guerra, legislação, diplomacia e negociação, resolução de conflito); 4) o restabelecimento da ordem vigente a partir de uma lógica que parte do privado e vai para o público, com a exposição da conciliação matrimonial (explicitado no esquema: privado – público – privado). Tal efeito denota o caráter transitório do papel feminino, pois auxilia a sobrevivência da polis como cidadã, porém, não dá continuidade para a efetivação e perpetuação de tal participação em âmbito público.
Diversas releituras da comédia e movimentos sociais realizados ao longo do século XX no mundo ocidental3 se distanciaram no tempo e espaço das preocupações e interesses dos gregos na antiguidade. Porém, é possível rastrear ecos das preocupações do mundo contemporâneo na antiguidade, neste caso, no que diz respeito às frações e cisões no interior de grupos sociais a partir de elementos de estresse-limite e ruptura da ordem pré-estabelecida. Nesse sentido, o historiador Marcel Detienne nos apresenta a valiosa contribuição de “comparar o incomparável” com o objetivo de libertar objetos de análise de esquemas de matriz historicista e demarcados por conjunturas específicas. Sem perder de vista os possíveis anacronismos, a tentativa visa atingir as estruturas e configurações de experiências fundamentais às relações sociais, que se conectam por sua natureza (DETIENNE, 2004). No nosso caso, temos como temática geral a persistente influência que os homens da antiguidade possuem até os dias atuais e, em particular, entre Atenas e Chicago, as consequências da guerra para os que não estão envolvidos com ela.
Eis um ponto interessante que podemos começar a discutir sobre as possíveis relações entre a Lysistrata retratada pelo filme de Spike Lee (Chi-Raq, 2015) e a de Aristófanes. Compreendendo de antemão as notáveis diferenças nos contextos de produção espaço-temporal; apresentação da forma (teatral x fílmica); público; recepção; e respeitando o limite demarcado pelo espectro de influência, percebemos que ambas são a representação base de comentários políticos sobre sua época. O diretor norte-americano (nascido em Atlanta, 1957) começou sua carreira em 1979, dirigiu cerca de 72 produções entre curtas, longas, programas de TV e videoclipes, e tem como ponto central em sua carreira discussões sobre negritude, relações étnico-raciais e as tensões gerada pela opressão branca. Vemos parte disso em Chi-Raq, filme que foi originalmente produzido/distribuído on demand pela plataforma Amazon, porém com restrita circulação nos cinemas dos EUA.
Hall argumenta a possibilidade da personagem de Aristófanes ter sido baseada em referências femininas mitológicas (2011: 31) e possivelmente em Lysimache, sacerdotisa do templo de Athená Polias, em Atenas, à época da produção da peça (2011: 32;46;52;74). Já as referências de Spike Lee são apresentadas ao longo do filme, como: a aproximação temática genérica da cultura clássica antiga (nomes, referências a episódios famosos da história grega, filósofos romanos e gregos); uma estrutura teatralizada através da imposição de um ritmo de contação narrativa (remetendo a Aristófanes); uma divisão de sessões em episódios guiados por um personagem similar a um Corifeu (interpretado por Samuel L. Jackson)4 tendo como centro condutor Lysistrata (Teyonah Parris). Além dessas referências, há a menção a Leymah Gbowee, líder da greve de sexo durante a Segunda Guerra Civil na Libéria (1999), importante figura que proporcionará o pontapé para o aprofundamento de questões relacionadas aos estudos de gênero, a partir de referências negras. Ainda que Aristófanes seja o responsável pelo conteúdo da peça, Spike Lee nos indica que a perspectiva de luta travada por Lysistrata em Chi-Raq virá de uma releitura adaptada cuja versão terá como principal influência a luta de mulheres negras africanas (liberianas) em guerra.
Não à toa, Lysistrata é apresentada em uma zona conflituosa da cidade de Chicago (EUA), com população predominante de afrodescendentes, denominada “little Iraq” ou “Chi-Raq”, junção de Chicago com Iraque. Dados referentes à situação não declarada de guerra civil mencionadas no início do filme, em fundo preto e vermelho (associados a luto e sangue), fecha a sequência com a frase “minha cidade não é Chicago, é Chi-Raq”. A não identificação com o espaço total da cidade, mas de diferenciação, faz sentido para demonstrar o recorte das interferências urbanas – trens, pichações, arquitetura de casas humildes, construções de grandes prédios. Elas servirão como comentários visuais de identidade e resistência mesclados às tentativas de gentrificação e supressão do espaço considerado como violento.
Logo nas primeiras cenas, vemos um clube noturno figurar o esquema de representação teatral, em que o Corifeu, personificado no personagem Dolomedes, de cima do palco, quebra a quarta parede e comenta com os espectadores do filme sobre a história que será contada a partir daquele momento. Em seguida, vemos Lysistrata no meio do público, e a câmera nos prepara: ela será o centro da história. Ao seu redor, todos vestidos em variações de roxo (cor que representará o grupo de Demetrius ou “Chi-Raq”, namorado de Lysistrata) para uma apresentação de rap. Na letra, referências dão conta do conflito entre espartanos (liderados por Demetrius, interpretado por Nick Cannon) x troianos (liderados por Ciclope, interpretado por Wesley Snipes), em que partes da música e falas são expostas em pequenas caixinhas de textos para reforçar o envolvimento da plateia com a apresentação, remetendo a comentários em redes sociais. Essa dramaticidade, encontrada no coro teatral, está dispersa tanto nessa proposição quanto nas falas de vários personagens sobre diversos tipos de violência (social, racial, econômica, gênero, espaço); precariedade de subsistência e sobrevivência; familiares presos ou mortos em conflitos; danos físicos; intensa repressão policial.
Design de produção de Ciclope (Wesley Snipes) e Demetrius (Nick Cannon)
Passamos para a relação entre Lysistrata e Demetrius, em que atentamos a clara conotação sexual a partir da exposição e sedução do corpo feminino. Tal perspectiva se repetirá ao longo da projeção, principalmente no que diz respeito aos atributos físicos de Lysistrata, repetidos por ela própria, pelas demais mulheres (em referência aos próprios corpos), por Dolomedes, Demetrius ou incitadas por figurantes em pretensa apreciação. Ainda que sejam fundamentais para as artes e ciências humanas, abordagens sobre gênero a partir da perspectiva negra de maneira são necessárias para contemporizar os maniqueísmos de uma história do gênero reproduzida por contornos brancos. A interseccionalidade das discussões respeitaria a necessidade de compreender o corpo feminino negro não como um elemento sexualizado per si, mas aquela que encontra na greve de sexo (temática do filme) a exposição do controle social, a busca por maior poder de decisão e o respeito às próprias necessidades sociais e pessoais.
Nesse sentido, lembramos o conceito de interseccionalidade pensado por Crenshaw (1993) como medida eficaz para mediar as tensões entre grupos sociais e suas demandas políticas ao oferecer uma base de recontextualização de raça como uma coalizão entre homens e mulheres negras. Segundo a autora, a auto afirmação e a luta por direitos civis negros seria derivada da força discursiva e do potencial de narração da própria história para reflexão de demandas sociais. Esse parece ser o caso do filme, ao demonstrar que , apesar das diferenças internas, há a integração dos gêneros no mesmo espectro de luta, pelo fim do extermínio de negros norte americanos. Porém, tal ação não precisa passar por marcas estereotipadas dos gêneros para legitimar o próprio discurso.
A partir da reflexão sobre esse problema estrutural do longa, percebemos, certa influências estéticas e temáticas encontrados em filmes do gênero blaxploitation produzidos ao longo década de 1970 nos EUA. Sobretudo no uso de cores marcantes associadas a traços da estética kitsch que integram o design de produção. Vemos, por exemplo, como o conflito entre troianos e espartanos é marcado por uma oposição na paleta de cores (laranja x roxo), porém mesclados na evolução de vestimentas que remetem a guerra para Lysistrata (roxo/ roxo e verde/verde, marrom de fardas militares) e as demais mulheres. Quanto à temática, o gênero fílmico busca, como mensagem geral, a afirmação da identidade e protagonismo negro, porém, apresenta pontos negativos na luta de mulheres negras (SIMS, 2006:29), principalmente quanto à hipersexualização associada à submissão salvacionista das personagens femininas. O que, de certa maneira em que vemos em diversas passagens, mulheres se manifestando pela paz comunitária. Ainda assim, consideramos importante a identificação do público com o retrato de luta da heroína como mensagem que discute a violência através do olhar feminino negro, ao mesmo tempo em que o filme coloca em discussão as próprias estruturas identitárias.
Transição do figurino de Lysistrata (Chi-Raq, 2015)
A ideia de greve do sexo de Lysistrata, as discussões com figuras femininas de diversas idades, contextos sociais e posições díspares em favor do bem comum indicam uma resolução geral próxima à apresentada por Crenshaw (1993). A solução da guerra através do sexo se apresenta como uma medida de impacto na economia dos afetos sociais. Spike Lee alia a essa condição demandas estruturais mais profundas como o investimento em infraestrutura (“o governo investe em guerras e reconstrução de países, mas não há tal investimento nessa parte da cidade” fala de Miss Helen) e educação (“a melhor maneira de esconder algo de um negro, é colocá-lo em um livro”, fala de Miss Helen em referência à frase de Malcolm X sobre a falta de acesso à escolaridade e educação de negros norte americanos). O diretor utiliza pequenos e marcantes episódios que funcionam como sketches dentro do filme para corroborar seu argumento através da performance do coro para além do conteúdo de suas mensagens. Por exemplo, o papel de Miss Helen (Angela Bassett) e a representação da figura de referência feminina negra a partir da noção de ancestralidade e sabedoria de mulheres mais velhas. A partir da personagem podemos enxergar a personagem como o centro da comunidade afetiva feminina. Ela gravita ao redor de diversas concepções do ser mulher e negra na região de ChiRaq, enquanto Lysistrata representaria a tentativa de efetivação dessa posição. Além dela, também temos a figura do padre (John Cusack) e seu potente discurso antibelicista e crítico da virulência do capital. Sua representação tem função política ao servir como mediador de conflitos, que em sua condição de branco, admite que a essência da supremacia branca (e seus derivados interesses) se estabelece através da violência para fins de controle. A noção do “outro”5, como nesse caso as comunidades negras e pobres de regiões periféricas. Aliás, é importante frisar seu papel como avatar de representação da religiosidade de comunidades negras, que carrega consigo o sincretismo afro americano de uma igreja que une símbolos diversos de paz sob a figura de um Jesus negro (adicionando ao filme um caráter simbólico daqueles que lutam contra as misérias e injustiças humanas). Portanto, a guerra travada a partir de Lysistrata não é oposta à paz, mas uma maneira de criar condições para obtê-la.
Miss Helen e as mulheres de Chi-Raq em protesto; Padre Mike Corridan em velório.
Ao retomarmos os pontos sobre a peça de Aristófanes enumerados no começo deste texto, percebemos diferenças e semelhanças com o filme, de acordo com o estabelecimento de cada arco estrutural argumentativo de maneira a compará-los. Compreendemos que o sentido geral de inversão de papéis socialmente construídos não se reporta diretamente à peça, mas seguem o seu oposto, o de chamar atenção para o protagonismo feminino. E, também, para reforçar o papel feminino como figura de autoridade para o estabelecimento (em forma de luta) de uma maior participação social cidadã e posicionamento público, o que, dado o contexto de produção de cada obra acaba por lhes distanciar. Porém, podemos considerar que a noção de astúcia feminina seria uma temática conceitual aparente em ambas as produções, sob o aspecto geral de uma inteligência feminina que pode assumir diversas aparências (DETIENNE & VERNANT, 2008). Baseada na deusa Métis, essa noção pressupõe uma metamorfose que supera a força através da ação em momento oportuno, premeditando através da flexibilidade, do tempo, da sutileza e da sagacidade o jogo das ações para benefício da causa defendida. No caso do filme, há uma positivação da ação feminina para o uso de tal astúcia, através do progressivo convencimento e ampliação da luta, para alcançar seu intento. Já a peça apresenta o paradoxo dessa ação. Ao coordenar a tática de greve de sexo como resolução do conflito interno, ela torna a proposição de astúcia inteligente uma ação positiva, porém, para a lógica externa, isto é, para a organização social a qual Aristófanes se dirige, ela se passa através de noções absurdas, logo é encarada per si como representação negativa. As astúcias femininas apresentadas em ambas as produções são visíveis graças aos contextos de ruptura total, de maneira a auxiliar a reorganização da lógica comum anterior, pré-estabelecida. Visto por esse prisma, a sexualidade seria a metodologia de negociação para o reconhecimento de como a lógica feminina influencia a vida em comunidade.
Tal lógica se torna aparente tanto no filme quanto na peça, pois o local de negociação e cessão dos conflitos é o leito conjugal. A partir daqui, o distanciamento entre antiguidade e modernidade se torna um campo de difícil conexão dada a natureza propositiva de cada personagem inserido em suas próprias lógicas. Isso porque a conotação sexual do filme se reporta, em muitos momentos, a representações fálicas, como canhões, armas e gestos que remetem à cópula sexual, em uma releitura de diversos dispositivos de controle e reprodução de violência e da vida, através do sexo. Esses aparatos representam uma (re)fomulação e (re)fundação da nação e da história negra através do ato sexual em si. Servindo-se, portanto, de uma resolução pública dos conflitos, com a plateia a acompanhar a negociação conjugal em um leito às vistas de todos em um gymnasium6. Vencida a ação, Lysistrata é a voz que convoca a todos para a reconciliação sob sua assinatura, confirmando de vez que a lógica da cidade passa a ser uma negociação entre partes iguais, com a presença de instituições religiosas, civis, políticas e ativistas de direitos sociais.
Vemos assim que a ação sexual é elemento estratégico de sobrevivência cidadã seja para leituras sobre a antiguidade, seja pra modernidade. Tanto em direção à ação pública (Chi-Raq), quanto em direção à privada (Lysistrata), a sexualidade feminina é alvo de discussão e elemento social de intensa negociação, cuja elasticidade de aplicação depende de caracteres específicos segundo suas épocas. Abordada pela comédia/sátira ou pela tragicomédia, tal assunto sem dúvida é meio de comunicação eficaz para compreender como cada sociedade, no tempo-espaço, reporta essa dinâmica, seja através da reflexão política geral ou de demandas de grupos sociais específicos.