O fantástico enquanto gênero literário¹ nasce no século XIX² como uma oposição ao pensamento iluminista que pautava o real a partir do empirismo racionalista e cientificista. A imposição desse projeto racionalista traz consigo a impossibilidade de se abarcar alguns temas, demonstrando lacunas que não podem ser preenchidas pelo pensamento científico. Assim: “transcorrido o período do positivismo científico do século XIX e/ou contestado o materialismo filosófico, brota uma vegetação viçosa fertilizada pelo mistério, que a fantasia faz crescer, florescer e frutificar” (HATTNHER, 2013, p.135). Ora, não é difícil apreender disso que esse projeto buscava o apagamento das diversas apreensões de “mundos possíveis” (GARCÍA; SILVA, 2016) em prol de uma homogeneização da ideia de real. O fantástico e toda a sua gama de subgêneros surgem, então, como uma revanche do irracional, com o intuito de criar uma gama de efeitos desconcertantes a partir do descompasso com a realidade.
Diante desse preâmbulo, o que pretendo neste texto é evidenciar o potencial do fantástico como um perpétuo problematizador das representações do real. Para isso, proponho dois passos. Primeiro, explorar o fantástico por meio de uma de suas variantes, que surge no século XX e se estrutura por meio da ausência da causalidade, que se constitui a partir de “infortúnios da vontade”, no qual “uma impossibilidade inexplicável de agir se abate sobre pessoas, sem que nenhuma razão concreta pareça interferir em suas ações” (TAVARES, 2012, p.42). Segundo, exemplificar em obras literárias e cinematográficas como essa variante do fantástico atinge a representação de um espaço natural. O locus do natural é aqui pensado por meio de sua organização geográfica, que normatiza a vida e distribui lugares e funções para os sujeitos nele inseridos (DELEUZE, GUATTARI, 1997).
1) A “poética do vazios”
A partir de Franz Kafka, surge uma forma de narrar o fantástico que se furta das emanações sobrenaturais “antropomórficas” ou “não antropomórficas” (vampiros, bruxas, fantasmas, objetos, etc.) para se apoiar em uma “poética dos vazios” (CAMPRA, 2016, p. 134), catalisada por silêncios na narrativa, que retiram desta sua noção de realismo. Os nutrientes que abastecem esse efeito são as próprias brechas deixadas pelo real, apresentando espaços inicialmente naturalistas, mas que no decorrer da narrativa são contaminados por uma causalidade que escapa, na qual “o não dito é precisamente o indispensável para a reconstrução dos acontecimentos”. Fica a cabo das elipses a função de destruição da “garantia da ordem e da existência do mundo” (CAMPRA, 2016, p. 126).
Para Campra, “o terror da personagem, e a presumível inquietude do leitor, nascem da falta de uma motivação explícita ou implícita da presença invasora, da impossibilidade de atribuir-lhe um nome – ainda que se trate de um nome fantástico” (ibidem, p. 131). Diz ela:
O mundo pode ser inteiramente natural, inscrever-se em um sistema de realidade identificável, e contudo, escapar à compreensão. O herói fantástico já não pode lutar, enfrenta uma forma do nada. Um puro ponto de interrogação: muito mais inquietante, mais fantástico, hoje, que uma legião de fantasmas. (ibidem, p. 142)
Essa forma de fantástico nos leva a pensar: “não somente se o fato que se conta é fantástico, mas por que esse fato deve ser considerado fantástico e, mais ainda, qual seria esse fato” (ibidem, p. 140-141). É o que acontece, por exemplo, em O Processo, de Franz Kafka, no qual temos um protagonista preso por um crime que ele não sabe qual é nem as autoridades estão dispostas a revelar.
Com isso, chego à definição de fantástico proposta David Roas, para o qual o sobrenatural se ancora na transgressão da realidade:
O sobrenatural é aquilo que transgride as leis que organizam o mundo real, aquilo que não é explicável, que não existe, de acordo com essas mesmas leis. Assim, para que a história narrada seja considerada fantástica, deve-se criar um espaço similar ao que o leitor habita, um espaço que se verá assaltado pelo fenômeno que transtornará sua estabilidade. (ROAS, 2014, p. 31)
O fantástico para Roas “transborda” a concepção de realidade, surge na exceção, como o incomum, por meio da ameaça que pretende abalar as concepções socioculturais vigentes, ou seja, o fantástico é um problematizador das noções de real.
Como indica Roberto Reis (1980, p. 4), o fantástico estabelece, nesse cenário, um jogo discursivo duplo e perpétuo entre o real e o sobrenatural. Pois, como aponta Irène Bessière (2009, p. 9) “[o relato] fantástico ressalta o problema da natureza da lei e da norma”. Dessa forma, o real na narrativa fantástica tem como ponto de ancoragem a própria causalidade interna, que, mesmo fraturada e fragilizada, deve oferecer signos que possam ser interpretados a partir da experiência de mundo do leitor. O que se configura tanto no nível diegético, quanto na percepção do leitor/espectador, pois “ao problematizar a realidade, o fantástico problematiza o leitor que se vale dessa mesma realidade” (REIS, 1980, p.8). Pois, se toda leitura obriga o receptor a projetar sua visão de mundo para interpretar o universo criado no texto, “a literatura fantástica obriga, mais que qualquer outro gênero, a ler referencialmente os textos” (ROAS, idem, p. 112).
Para Roas, essa forma de fantástico se caracteriza pela: “irrupção do anormal em um mundo aparentemente normal, mas não para demonstrar a evidência do sobrenatural, senão para postular a possível anormalidade da realidade, para revelar que nosso mundo não funciona como pensávamos” (ibidem, p.158). Construção reforçada por Reis:
O fantástico justamente anula a barra que separa o real e o irreal, o possível do impossível, virando a realidade pelo avesso, arranhando o real em sua complexidade e pujança. Se o fantástico é a regra e não a exceção, se o homem é absurdo, estas revelações, produzidas pela literatura fantástica do século XX, mostram que a realidade assumida e cotidiana é aparente, é frágil, escavando assim o real que está por trás (REIS, idem, p. 6).
Essa ação diante do real pode se dar nas mais diversas interações com o discurso narrativo. Mostrarei agora alguns exemplos ligados à representação do espaço.
2) O espaço fantástico produzido a partir da ausência de causalidade
A ausência de causalidade alicerçada por um espaço insólito é tema, por exemplo, no filme O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel, no qual, após um jantar, um grupo de burgueses são impedidos, sem razões aparentes, de deixar o espaço da mansão. Formando então um espaço insólito, sem barreiras físicas, mas que impossibilita quem está dentro de sair e quem está do lado de fora – ou seja, no espaço realista – de entrar.
Ainda pensando no espaço residencial, outra perspectiva recorrente é a dos ruídos oriundos do “outro lado da porta”. Esses ruídos, por exemplo, causam insônia no protagonista do conto O Bloqueio (2010), de Murilo Rubião, confundido pelo som de uma obra que vai desfazendo gradualmente o prédio em que vive o personagem. Os ruídos do cômodo ao lado também são o estopim para a ausência de causalidade no conto Casa Tomada (1986), de Julio Cortázar, no qual um casal de irmãos vai pouco a pouco apartando-se da casa onde moram, que é tomada por hóspedes desconhecidos:
O som chegava impreciso e surdo, como cadeiras tombando no tapete ou um sussurro abafado de conversa. Escutei-o também, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daqueles cômodos até a porta. Joguei-me contra a porta antes que fosse tarde demais, fechei-a de golpe apoiando o corpo; felizmente a chave estava posta do nosso lado, e também tranquei o ferrolho grande, para maior segurança (ibidem, p. 14).
Algo similar pode ser visto no cinema brasileiro contemporâneo, no filme O Sol Nos Meus Olhos (2013), de Flora Dias e Juruna Mallon. Aqui, a ausência de causalidade é construída a partir de um protagonista que, após encontrar o cadáver de sua esposa, o coloca em uma mala e parte em viagem. O protagonista sem rota procura sua Ilha Desconhecida e, como os protagonistas do conto de José Saramago (1998), está à procura de si mesmo. O que é impulsionado pelos silêncios expostos nos longos planos que se dedicam a mostrar a estrada, que abarca o espaço da solidão, para um protagonista que – na leitura metafórica que o filme permite – pode até se afastar dos problemas, mas não deixará de carregá-los.
Para o restante do texto, gostaria de problematizar algumas relações dessa ausência de causalidade no filme Eles Voltam³ (2013), dirigido por Marcelo Lordello. Na trama, acompanhamos um casal de irmãos abandonados pelos pais em uma estrada deserta. O que parecia um “susto” intencional afrouxa os laços com o real, os pais não voltam e o irmão mais velho prefere ouvir música a preservar a bateria do celular, personagem inclusive que se despede dos dois primeiros atos do filme ao sair à procura de um posto de gasolina. Ficamos apenas com a pré-adolescente Cris, que, após passar à noite na estrada, dedica-se ao caminho de volta para casa. Mas voltar para onde, se a ausência dos pais estabelece uma leitura de mundo não confiável?
Como aponta Inácio Araujo (2014), logo na cena de abertura, Eles Voltam produz algo que “dificilmente podemos entender”. Na sequência, um longo plano-sequência em câmera fixa apresenta mares de morros cobertos por grama verde que se opõem ao céu nublado, enquanto, na parte inferior do quadro, uma estrada rasga a vegetação. Nunca saberemos exatamente onde se passa a ação, e aqui a expressão “no meio do nada” é mais do que bem-vinda para retratar o espaço emoldurado em tela. O ritmo lento do plano deixa a paisagem à mercê de um carro, que estaciona na estrada, ao mesmo tempo em que o som de vozes é abafado pelo barulho do vento. Após uma breve pausa, o carro parte novamente e um novo plano nos revela as duas crianças deixadas na estrada. A sensação de isolamento e abandono da paisagem persiste nos planos posteriores dessa sequência e dão o tom que o filme se pretende.
É essa paisagem, isolada, despovoada, que possibilita a porosidade da ausência de nexos e provoca uma “desterritorialização” nos personagens. Pois, como afirma Jean-Luc Nancy, “A paisagem começa com uma noção, por mais vaga ou confusa que seja, do distanciamento e da perda de referencial, tanto para o olho físico quanto para o olho da mente” (2005, p. 53). É com base nessa desterritorialização que iremos acompanhar a jornada de Cris pelo “mundo do outro” (ARAUJO, 2014), que se desloca por espaços determinados geograficamente apenas por dados culturais dos personagens e pela paisagem que lhe cerca. Permitindo que, no meio do filme, uma casa na praia na qual Cris faz, sem vontade, trabalhos de limpeza, fique ao lado de uma propriedade de sua família. Ou seja, a indeterminação territorial permite que a ausência de causalidade torne uma coincidência absurda em algo verossímil dentro da narrativa fílmica.
A meu ver, esse efeito se assemelha ao que Jean-Paul Sartre propôs como o “fantástico contemporâneo” (2005, p.136). Segundo Sartre, essa modalidade não aceitaria delimitação entre seu meio e o universo natural e, dessa forma, a inserção de um elemento fantástico num ambiente natural tornaria o elemento sobrenatural em natural. De outra forma, se a inserção de um elemento fantástico for capaz de convencer o leitor de que sua composição não pertence ao natural, então todo o universo passaria a ser considerado insólito, mesmo que isso não seja constatado inicialmente. Assim, para Sartre: “o fantástico contemporâneo ou não existe, ou estende-se a todo o universo” (ibidem).
A pertinência de um fato sobrenatural permite, então, duas aproximações: ou naturalizamos o insólito ou admitimos que o insólito está em toda a parte, mesmo que não haja confirmações empíricas de sua existência. Essa postura de mundo contamina e adoece o natural e faz com que duvidemos do caráter naturalista da paisagem, mesmo que imageticamente a paisagem seja calcada pelo realismo. Assim, a natureza guarda consigo certa improbidade, é desonesta e, em suas entranhas, o real se reverencia ao sobrenatural.
Como vimos em Campra (2016), a ausência de nexos possibilita uma forma de produção de efeito no fantástico pautado nos silêncios e na impossibilidade de se estabelecer um culpado para os eventos. Por isso, Cris não é capaz de reagir aos acontecimentos, é passiva nas situações e guiada por personagens enraizados nos espaços pelo qual transita.