Em uma sequência de A família (La familia,2017)1, de Gustavo Rondón, vemos pai e filho no interior de um bar. Depois de um dia de trabalho e de uma tentativa frustrada de roubo de uma garrafa de bebida ao final do expediente como garçom, o pai, Andrés, chega ao restaurante e diz que naquele dia não pediria o de sempre. Hoje, seria rum seco. Exausto, o olhar do menino, Pedro, acompanha silencioso o gesto paterno. Andrés o pergunta se ele deseja comer algo. O filho nega e, após a insistência paterna, solicita ovos e um refrigerante. O garoto pergunta se era ali que o pai passara todas as noites depois do serviço. Andrés responde com resignação: é perigoso circular à noite no bairro. Pedro insiste na questão, indagando se, nos dias sem trabalho, também era ali que o pai circulava. Andrés não o responde. Nesse silêncio, vemos um plano geral do espaço do bar, em que Pedro dorme sobre o próprio braço deitado na mesa do bar e o pai olha para um ponto distante e, ao fundo, a vida e os carros seguem do lado de fora, na rua.
No longa-metragem de Gustavo Rondón, a vida dos homens parece ser modulada de acordo com as circunstâncias cotidianas. A infância, a adolescência e a vida adulta não mais parecem poder serem divididas, estabelecerem processos de desenvolvimento e crescimento do homem. Nas sequências iniciais, acompanhamos meninos que brincam com armas, outros que, desafiadores e orgulhosos, ameaçam uns aos outros, com o gesto de encostar e beber o conteúdo de um preservativo usado. O contato com esse gozo, com esse pedaço de plástico com os resquícios de uma ereção, figura entre um jogo, uma brincadeira, e um ritual necessário para se afirmar como mais poderoso perante os outros. Essa atmosfera também é presente em uma festa em que os garotos se divertem: a música que se escuta fala explicitamente de um ato sexual, cuja letra discute a possibilidade ou não do sexo anal. Em contraste, aparecem os corpos magros e frágeis desses meninos-homens, para quem os limites entre a vida, a morte, o presente e o futuro não são colocados com clareza.
É necessário sempre algum impacto, um evento que rompa o fluxo do cotidiano dos homens, para que sejam reestabelecidas, outra vez, divisões entre os tempos e os lugares do desenvolvimento. Quando Pedro se vinga de uma tentativa de um roubo de celular – modelo simples, o esperado que esteja com uma criança – cortando o pescoço do outro menino da rua, que mora em uma favela, não há entendimento real do risco de assassinato. Essa postura, esse trato com os corpos, a figura de valentia assumida pelo menino, configuram-se antes formas de resistência e de proteção diante de uma realidade cujas figuras afetivas e familiares são distantes. Quando Andrés descobre o gesto do filho, assusta-se e decide que será necessário fugir dali, antes que sejam assassinados também, uma tentativa de escape se torna um gatilho para o reestabelecimento de uma convivência fraterna entre ambos. Pedro, a princípio, questiona a fragilidade e o temor do pai; Andrés, categórico, afirma que os apuros que agora estão vivendo foram provocados pela postura de “malandro” assumida pelo menino. Essa tensão inicial é presente também quando ambos começam a brigar fisicamente pelo desejo de Pedro de ligar para um amigo para saber as consequências e notícias da briga com o garoto ferido. Aos poucos, por exemplo, a agressividade e a raiva de Pedro se transforma em tristeza e perplexidade diante do que aconteceu. Os maiores perigos e desafios agora não são mais aqueles de se mostrar invencível, poderoso e errático perante os outros jovens: trata-se, agora, de conseguir sobreviver, seja fugindo do risco de serem encontrados pelos parentes do garoto assassinado, seja na conquista de dinheiro suficiente para viver. Nesse contexto, é criada uma cumplicidade entre pai e filho até então ausente: o garoto é elogiado por trabalhar bem como garçom, começa a aprender a forma certa de lixar uma madeira. Esses pequenos ofícios começam não só a ensiná-lo uma forma de trabalho, mas, também, configurarem outras formas de algum lugar da vida adulta não mais configurado apenas pelo prazer, pela violência, pela autoridade sobre os outros.
Em uma sequência, o filho entra em uma jacuzzi, dizendo que a água está muito quente. O pai ri e diz que, felizmente, esse é o estado correto. Pedro comenta dizendo que nunca houvera antes entrado numa piscina; o pai contesta: antes, quando a mãe era viva, foram várias vezes à piscina. Esse reencontro, esse outro gesto da memória, do presente, do passado e do futuro é o que A família proporciona. No limite da vida e da morte, do medo e do prazer, um menino e um homem se conhecem, como antes não era possível, nas figuras de pai e filho.
Nota de rodapé:
1- Filme visto no VI Olhar de cinema – Festival Internacional de Curitiba
por Laís Ferreira