Em uma das primeiras sequências de Nyo vweta nafta (2017), de Ico Costa, vemos um casal abraçado, andando de moto por Moçambique. Enquanto transitam, o homem e a mulher conversam sobre o futuro, sobre o que é possível esperar dos dias seguintes. Uma das conversas se pautam sobre o material de uma casa: deveria ser feita com cana ou de alvenaria? Há argumentos sobre a resistência e o preço de cada uma dessas moradias. No entanto, antes que tenhamos acesso ao resultado dessa discussão, à chegada do futuro, importa mais o momento presente, o que pode surgir de invenção e mistério em um passeio cotidiano. O que o curta de Costa nos mostra não é somente uma aproximação aos homens comuns daquele espaço: é, também, um convite à atenção e à escuta dos pequenos acontecimentos, a reordenação das desimportâncias. Algo próximo acontece quando vemos alguns garotos conversando próximos a uma janela, discutindo sobre outras possibilidades de lugares para viver. Enquanto isso, um dos garotos pede um palito de dente. Chegam a uma conclusão: “Na Noruega, há não palitos”. Há, no mais simples cotidiano, acontecimentos extraordinários. Um palito para limpar os dentes, a matéria de uma casa são os eventos que se tornam decisivos para a continuação da vida. É isso também que nos ensina um dos personagens, que ensaia uma canção de amor para a garota que o traiu e reafirma a permanência do sentimento afetivo. É sobre isso que importa cantar: sobre alguma tensão com alguém que se ama, sobre o que é escolher um gesto de perseverar apesar dos desentendimentos. Nesse contexto, há também os desafios e as conquistas permitidas: no último plano, vemos um grupo dos rapazes subindo a copa de uma árvore alta. É ali, no alto de uma planta, que existe um momento de grande felicidade.
A possibilidade do cotidiano se tornar extraordinário parece ser algo que atravessa os curtas exibidos no primeiro dia da mostra competitiva de curtas do VI Olhar de cinema de Curitiba. Em Ocorridos em um recinto obscuro (Events in a Cloud Chamber, 2016), Ashim Ahluwalia resgata o filme experimental homônimo do pintor Akbar Padamsee, realizado em 1969. O filme mais recente não só possibilita o acesso a um tempo que foi e às imagens de outrora, mas pensa as questões da memória, dos processos artísticos e do sentimento de criação no mais simples cotidiano. Por meio dos fragmentos do primeiro filme, ouvimos a voz de um artista que ensaia sobre si e sobre um pensamento acerca da arte. Enquanto assistimos imagens de Veneza, ouvimos questionamentos sobre as dificuldades em se falar da arte europeia, haja vista uma certa expectativa em se trabalhar com cartões-postais – aqui, tomados para além da paisagem, mas na metáfora de dizer e produzir arte a partir dos lugares comuns e recorrentemente visitados pela crítica da arte. O experimentalismo com a película parece oferecer outra possibilidade de pintura; possibilita, também, a liberdade de produzir sem a necessidade de muitas ferramentas. No entanto, há, nessa relação com o mundo, algo que se repete, que se reorganiza. O narrador diz: “usando apenas esses espaços, posso fazer filme. É livre, mas lógico”. A essa altura, recordar os próprios processos, resgatar antigos trabalhos, estabelece-se, também, como uma possibilidade de entender o presente, arriscar qualquer opinião sobre o futuro. Nesse caso, ouvimos: “a verdade é que as pessoas não entendem a arte”, o que é justificado por um gesto de comprar artefatos por sorte e por acaso, além de apontar para a morte do artista. Em contraposição a isso, aquelas imagens parecem nos lembrar que há, em todas as coisas vivas, no cotidiano de um homem, a possibilidade da criação: há brilho e beleza, por exemplo, na imagem de papeis amontoados. O tempo – e como ele é vivido – parece ser a matéria mais proeminente de todo o processo. A voz que ensaia nos diz que os primeiros vinte anos são aqueles determinantes para a vida do homem; depois, os dias parecem pertencer a memória. Pelo experimento, pela sensibilidade, é preciso, assim, viver com atenção a vida diária e ordinária, em que, a todo instante, há possibilidade de criar, de pensar e tentar esquivar-se da passagem do tempo.
Frame de “Events in a cloud chamber”, de Ashim Ahluwalia
A possibilidade de outras experiências simbólicas do cotidiano também é algo que podemos encontrar em O disco resplandece (La disco resplandece, 2016), de Chema García Ibarra e Ciudad Maya (2016), de Andrés Padilla Domene. Naquele, o desejo de alegria, a urgência para se viver a juventude transformam um lugar qualquer em um grande terreno de festa de celebração. Se não há luzes e aparelho tecnológico como o existente em uma discoteca, basta que se ande com um tênis que tenha luzes brilhantes no solado. O calçado de todos os dias é o que tem potencial para desviar a passagem corriqueira das horas. O sentimento e a abertura para a diversão parecem oferecer, a todo momento, possibilidades para se transformar e modificar qualquer atmosfera ou empecilho contrário a isso. De alguma forma próxima, Ciudad Maya recodifica o que podemos entender como limite entre os dispositivos tecnológicos, o sobrenatural e um cotidiano: a mais simples gambiarra, o uso da internet, passa a constituir o necessário para se contactar com um universo espiritual. Por meio desses filmes, lembramos e reconhecemos que, ao final, não há nada mais extraordinário que o cotidiano.