“Lá” é um lugar imaginado

Possivelmente, a imagem de um lugar nunca será esse lugar. Nem a imagem do amor ou da ausência poderão ser esses sentimentos: os índices que empregamos apontam, guardam uma parte do que isso foi. No entanto, não são a própria vida. Partindo disso, o que podemos imaginar? Talvez, por isso, haja a liberdade de rememorar e lembrar de uma viagem, de um espaço, de alguém que foi embora não por meio da restituição do vivido, mas através dos afetos, da invenção do que poderia ter sido. Levanto essas reflexões para que possamos pensar os curtas Vazio/A (Carmen Rojas Gamarra, 2016), Penúmbria (Eduardo Brito, 2016), Fajr (Lois Patiño, 2016),  A ilha do farol (Jo Serfaty e Mariana Kaufman, 2017) e Balança Brasil (Carlos Segundo, 2017), exibidos na competitiva do VI Olhar de cinema – Festival Internacional de Curitiba. 

Em Vazio/A o emprego de imagens de anúncio de um catálogo de móveis e objetos de decoração, junto com o uso de uma voz que se assemelha àquela emitida por um robô aponta para uma universalização – e consequente despersonalização – da dor provocada pelo término de um relacionamento. Há, também, algo de fugaz, de esvaziado e próximo ao consumo na forma como se apresentam esses afetos. O emprego das imagens de móveis que poderiam ser comprados por qualquer um, ao mesmo tempo em que a voz da narradora parece tentar individualizá-los por meio da partilha da própria memória, esmorece o caráter particular e de maravilhoso dessa relação. Esse passado rememorado pela divulgação das vendas, o remorso da narradora ao comentar que a ex-parceira trocou a foto do avatar no seu facebook após o término esvaziam as memórias do que foi. As lembranças, os sentimentos, a saudade e a tristeza não se diferenciam muito nem do consumo, nem do que permanece no mundo: por todos os lugares, ainda haverá liquidação, outros casais vão romper e surgirão outras imagens de amores findos cujos sentidos não mais existirão.

As imagens do afeto, do amor e da tristeza são apresentadas de outras formas em Penúmbria. O filme de Brito nos conta a história de uma cidade em que aconteceu uma assembleia do abandono, onde os homens decidiram pela impossibilidade da vida naquele lugar. Nenhuma das expectativas consegue ser atendida em Penúmbria: não se achou urano, um viajante só poderia encontrar tristeza, o hotel fechou pela carência de hospitalidade e se tornaram impossíveis as visitas de estrangeiros à cidade.  Os cidadãos decidem pela impossibilidade de Penúmbria e saem para outra busca, mais afeitos à possibilidade de um desconhecido espaço longíquo que a possibilidade de mudanças de onde habitaram. A beleza da caracterização de Penúmbria é sua semelhança com qualquer lugar, mas também com lugar nenhum: em qual cidade não há algo que falta, algo que não funciona? Mas, talvez, o que distinga a imaginada Penúmbria é a radicalidade das possibilidades: ali, deixaram de tentar. O cotidiano deixou de ser o espaço da persistência, das tentativas. No entanto, ainda ali, há dois elementos que resistem ao fracasso do progresso, das expedições, das procuras: o afeto e o amor. Esses são os dois aspectos da vida que podem existir e persistir para além do progresso, das escavações por minerais e pedras preciosas, da chegada de um ilustre forasteiro. Para além do abandono, da impossibilidade, uma mulher passeia com os seus cachorros e um homem a ama em silêncio, decidindo permanecer ali, onde todos os outros não foram capazes de ficar. Talvez possa ser essa a imagem do amor, o que ainda resiste vivo, sob os restos das moradias abandonadas, sob as tentativas frustradas, sob todas as perdas do não conquistado. Talvez, por isso, seja esse amor, esse afeto, as únicas imagens humanas que temos em oposição às construções deixadas para trás, às paisagens esvaziadas de Penúmbria.

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Frame de Penúmbria (Eduardo Brito, 2016)

Esses limites das relações do homem com uma paisagem, de como a natureza, um espaço dizem dos sentimentos dos homens se apresentam com outra sensibilidade em Fajr. No filme de Patiño, vemos corpos e vultos no meio de um deserto. Em um momento, há três corpos, cada um em um canto distinto do deserto, em um espaço em que as movimentações da luz e da sombra são os acontecimentos que determinam o prosseguimento e os percursos da vida. Essa travessia sem conversas, essa escuta quase silenciosa do mundo, parece nos perguntar: o que um homem pode fazer e desejar no espaço entre luz e sombra, entre vida e morte, entre espaço e forma? Não podemos afirmar muito. No entanto, ao final do filme, a imagem do corpo de um homem se transforma em luz e é fundida às ondas do mar. Ao final, talvez não haja as divisões e permanências que tentamos estabelecer: no deserto, nas ondas do mar, na luz e no vento há sempre algum mistério, há sempre algo de humano.

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Frame de Fajr (Lois Patiño, 2016)

A expedição ao desconhecido também é o que norteia A ilha do farol. Ter o não conhecido como norte implica em riscos, nos mistérios, em falar pouco durante uma viagem.  Os dados históricos e cartográficos se tornam menos exatos quando colocados junto à informação da queda de um meteoro, da imagem de uma tartaruga frágil na beira de um barco, dos olhares distantes de um menino que ora olhar o mar quando veleja, ora está segurando e olhando um globo terrestre. As memórias e viagens aos lugares inóspitos parecem ter sempre algo que a informação não deu conta: há um mistério para além do que sabemos da relação da ilha com o trabalho dos escravos, para além das contendas de franceses e índios naquele pequeno território. O que, em alguns momentos, parecem interromper nossa trajetória, o medo do que virá são as cartelas do filme: como mapas, parecem estabelecer, nos trechos que as intercalam, quando devemos buscar alguma referência ao passado arqueológico, quando a ilha se torna um lugar seguro, quando retornamos à insegurança daquele lugar.

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Frame de A ilha do farol (Jo Serfaty e Mariana Kaufman, 2017)

Diferenciando-se dos outros filmes supracitados, Balança Brasil parece nos sugerir os riscos possíveis ao olhar do expedidor, do estrangeiro. Conviver com o outro, com outros corpos, com a paisagem de um outro lugar pode ter um tempo curto nos processos das viagens. Desse percurso e período, esse outro talvez não se distinga muito do que vemos de exótico numa paisagem: um corpo que dança, uma casa pobre, uma garota que conversa no sofá sobre ser negra ou não. Ir até à Bahia, ver os que dançam axé na beira da praia, assistir a competição de corpos esculturais cobertos de óleo que estremecem ao ritmo da música pode ser uma viagem de descoberta. A descoberta que também foi clamada pelos portugueses no momento em que colonizaram o Brasil: chegaram até aqui, viram o diferente, o exótico, deram um nome para um lugar cujo cotidiano, a vida, já existiam. Depois de séculos, ir até a Bahia, ouvir um personagem historiador falar da escravidão, mostrar o seu desejo por viagens, a forma como se diverte, talvez não tenha uma natureza distinta. Depois de tanto tempo, a viagem do expedidor não nos parece oferecer muito para além dos estereótipos, o olhar de um turista. Naquela terra de sol e do mar, as imagens dos homens parecerão ser, sempre, a dos que rebolam, dos que suam, dos que mantém os corpos perfeitos como elemento primordial. Torna-se complicado pensar o que poder um expedidor ao rememorar um passado colonial: serão as viagens capazes de alterar a imagem já exaustivamente mostrada do outro? Navegar é preciso, viver não é preciso: seguem, distante de nós, a vida daqueles que vemos.

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Frame de Balança Brasil (Carlos Segundo, 2017)

Por Laís Ferreira Oliveira