No início de Estrangeiro (Pohn talay, 2012), de Anocha Suwichakornpong, vemos uma mulher imigrante trabalhando em uma fábrica com pescados. Enquanto trabalha, o grupo de operários conversa sobre uma série assistida na noite anterior. Uma das imigrantes, porém, parece irrequieta. Naquele dia, a funcionaria Wawa Kai parece não conseguir se concentrar da mesma maneira no trabalho. Em muitos dos filmes da diretora tailandesa, os lugares e modos de trabalho representam instâncias em que qualquer pessoa pode refletir sobre a própria trajetória, a forma como sobrevive, os mecanismos da vida diária. Isso pode ser encontrado no outro filme que comentaremos neste texto, História Mundana (Jao Nok Krajok, 2009) e, de formas variadas, no média-metragem Fantasmas (Ghosts, 2005) e em Como. Amor. Verdadeiro (Like. Real. Love, 2008). Seja pelo enfermeiro que cuida de um jovem doente, pela investigação do passado de uma atriz mais velha ou no rosto de uma mulher que olha para a câmera, as formas e as funções que o trabalho influenciam a vida de um indivíduo têm grande relevância nos filmes dirigidos por Suwichakornpong. Próximas à vida ordinária, as histórias contadas nos filmes da diretora apresentam no exercício do trabalho episódios capazes de provocar alterações no cotidiano até então vivido.
Em Estrangeiro, a trabalhadora deixa o expediente e se dirige a uma delegacia. Esse gesto almeja conseguir autorização para poder abortar, após ter sido estuprada. Ao chegar na delegacia, encontra um homem para receber a denúncia. Ele a solicita uma “informação útil para pegar o criminoso” e questiona-a: “você sabe quem a estuprou, certo?”. Nesse diálogo, percebemos o desamparo legal vivenciados por imigrantes no país, especialmente se tratando de uma mulher. Essa conversa permanece inconclusa, bem como a decisão sobre a interrupção da gravidez. Em seguida, vemos a personagem em uma espécie de cais, enquanto olha para o mar. Olhar para a natureza, enquanto a indecisão – do estado, da possibilidade das soluções – atravessa o cotidiano parece ser o conforto e as respostas possíveis. O contato com a natureza diante de situações de difícil resolução é comum nos filmes da tailandesa, como também acontece na cena do parque em Almoço (Lunch, 2010). Ver o movimento do mar ou a forma como se movimentam as árvores parece apontar para alguma permanência, algo que se repete e se mantém, diante da imprevisibilidade do futuro.
Frame de Estrangeiro (Anocha Suwichakornpong, 2012)
Em História Mundana, a relação desenvolvida entre Kun, garoto que, devido a um acidente, perde os movimentos das pernas e passa a precisar de cadeiras de rodas, e o enfermeiro Pun possibilita que conheçamos uma história cotidiana em um lugar da Tailândia. No entanto, o que há de “mundano”, de “ordinário” é, também, o espaço-tempo possível ao extraordinário. Kun poderia ser um garoto qualquer, como outros garotos, que tiveram sonhos, desejaram ser algo no futuro antes, depois foram surpreendidos por um acidente, algo não previsto, outras vontades. Kun diz que recebe visitas do mundo, mas nem sempre quer vê-los, quis antes de ser escritor, depois viu muitos filmes, desejou ser diretor de cinema, mas, subitamente, as imagens agora seriam possíveis apenas consigo: o acidente tornara mais difícil essa profissão. É difícil manter-se aberto ao imprevisto depois ter o corpo acidentando: antes de conversas mais fraternas com Pun, o garoto pesquisa o nome do enfermeiro no Google, tenta elencar o que ele fez de importante. Esse é um gesto que o permite estabelecer uma relação mais amiga e íntima com o empregado, até então tratado com hostilidade. A convivência com o enfermeiro é o que possibilita, também, falar e ir até o mundo de fora: em uma cena, Kun pede a Pun que o deixe por mais tempo do lado de fora da casa, enquanto ele está numa cadeira de rodas, tomando chuva. E é do lado do enfermeiro que o menino se deita na grama.
A relação com os elementos da natureza e a maneira pela qual se relacionam aos sentimentos e processos humanos também está presente em umas das sequências mais bonitas de História Mundana, em que vemos imagens que se aproximam do cósmico e escutamos sobre a natureza de uma estrela. Nessa sequência, ouvimos uma voz que ensaia sobre a existência de um astronauta, refletindo como esse profissional poderia trabalhar com restos arqueológicos de um muro. Sabemos também do hidrogênio que compõe as estrelas e como o esgotamento desse elemento será sempre o início de uma transformação. A voz nos diz: “só a morte é irreparável”. No entanto, há uma ressalva: depois que morre, uma estrela deixa brilho e poeira onde brilhara. Dessa sequência em que as imagens parecem nos mostrar figuras do espaço e das galáxias, somos levados outra vez ao ambiente do quarto de Kun. No canto direito do quadro, em um guarda-roupa, vemos estrelas e planetas de plástico colados no móvel. São enfeites baratos, de natureza fosforescente, que brilham no escuro quando apagamos a luz. O que há de estelar no cotidiano não é apenas a investigação dos elementos do céu: em todos os ambientes da vida, algo está em constante transformação, algo morre e deixa sua poeira – e consequências – ao redor. Essas circunstâncias parecem se relacionar com os pensamentos hinduístas e budistas, comuns na Tailândia, para quais o homem está em constante evolução e, ao longo de sua existência, atravessa diferentes estágios de desenvolvimento.
No lugar extraordinário em que acessamos o cotidiano em História Mundana, a vida sempre surgirá outra vez, apesar das doenças, das tristezas e das perdas dos homens. Se a morte é uma das poucas certezas que temos, também o é a continuidade da vida: antes que encerre o filme, vemos a cena de um parto. Um bebê chora ao sair da barriga da mãe e respirar pela primeira vez. A vida sempre começará outra vez, sempre haverá outro nascimento, sempre um outro ser chegará ao mundo para tentar, uma vez mais, viver. No limite, o mundano se torna maravilhoso pela vida que carrega: há beleza, há esperança, há outros dias novos porque o mundo, o grande mundo, permanece vivo.