Pensar um recorte da historiografia do cinema brasileiro a partir dos filmes dirigidos por mulheres é considerar a invisibilidade de boa parte desta produção. Não apenas pelo fato de que a circulação, a exibição e a pesquisa em torno da produção cinematográfica nacional ainda seja marcada pela legitimação hegemônica de diretores que costumam entrar nos cânones, mas sobretudo porque uma parcela grande dos filmes feitos por mulheres desapareceram ou foram deteriorados. Dos longas-metragens de diretoras pioneiras como O Mistério do Dominó Preto (1931), de Cléo de Verberena, e Inconfidência Mineira (1948), de Carmen Santos, só é possível encontrar registros esparsos de fotografias e documentos. Torna-se tarefa árdua para o pesquisador contar uma outra história, que ainda permanece fragmentada e lacunar, já que não é mais possível ter acesso aos próprios filmes.
Compondo a programação da 12ª edição da CineOP, três curtas-metragens dirigidos por mulheres são exemplos de filmes que resistiram ao desaparecimento: dois realizados nos anos 60 – Rosae Rosa (1968), de Rosa Maria Antuña, e A Entrevista (1966), de Helena Solberg – e um dos anos 80 – Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar. Exibidos na mesma sessão, os três filmes são atravessados por suas contingências históricas e singularidades estéticas, mas apresentam questões em torno do lugar da mulher na sociedade brasileira que, de alguma forma, se complementam, quando colocados em sequência.
Com duração de cinco minutos, Rosae Rosa é uma experimentação ficcional, sem diálogos. Nas imagens em preto e branco, uma jovem está entretida com uma rosa, no jardim da varanda de sua casa burguesa, enquanto um mendigo a interpela, pedindo esmola na calçada. A diferença de gênero entre os personagens passa pela distinção de classe, que impossibilita a aproximação. O curta de Rosa Maria Antuña dá abertura para uma questão importante para os próximos dois filmes e que se tornou uma problemática comum nas discussões de gênero: de que maneira é possível pensar um debate sobre a mulher sem considerar sua condição de classe?
O documentário Mulheres da Boca compõe imagens do cotidiano de prostitutas nas ruas e em boates da zona da Boca do Lixo, no Centro de São Paulo. No início do curta, testemunhamos uma prostituta ser violentada por um cafetão, que cobra o valor total do que ela ganhou na noite. A sequência encenada é seguida por um passeio pelas escadas de um prédio deteriorado, em que várias mulheres ali permanecem à espera de homens que irão explorar seus corpos, em quartos com portas entreabertas. Uma das prostitutas faz pose para a câmera e se despe na rua. Durante uma sequência ao som da canção Je t’aime, moi non plus, o filme assume um tom de melancolia ao se aproximar dos corpos de strippers em planos de detalhe.
Se Mulheres da Boca detém seu olhar curioso para mulheres de condições sociais desfavorecidas, A Entrevista é um apanhado de relatos de jovens de 19 a 27 anos da classe média carioca. Realizado durante a ditadura militar e dentro do Cinema Novo – Helena Solberg é considerada a única mulher que dirigiu filmes no movimento –, o curta alinhava depoimentos em off de várias moças que expõem seus pontos de vista sobre casamento, educação, sexo e relação entre homem e mulher. Enquanto as múltiplas vozes vão se sucedendo, as imagens desencadeiam a encenação de uma mulher em rituais preparativos para se casar. A atriz presente na cena – Glória Solberg – é cunhada da diretora e se torna a última mulher a ser entrevistada, concluindo o comentário crítico do curta sobre a opressão da mulher no contexto político de repressão militar no Brasil.