Em um primeiro olhar, parece ser curioso encontrar o último longa-metragem de Ana Carolina, A Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum (2014), dentro da programação da mostra histórica da 12ª Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Por ser um filme recente e não se situar como marco canônico dentro da historiografia do cinema brasileiro, ele produz deslocamento imediato. No entanto, a narrativa ficcional do longa – um cineasta impedido de realizar seu próprio filme, que é sabotado pelo poder público e privado – engendra uma alegoria da dificuldade de se fazer cinema no Brasil e quais as implicações históricas da nossa cadeia produtiva cinematográfica. Do mesmo modo em que a película é arrancada do rolo e desenrolada ao longo de um trilho ao final de A Primeira Missa…, Ana Carolina nos convoca a refletir sobre esse caminho amargo de sucessivos desmontes do cinema brasileiro pelos poderes da máquina estatal e do capital.
A trama começa com portugueses em torno de uma cruz, no que parece ser a primeira missa celebrada no Brasil em meio à selva cercada de índios. Um grupo de engravatados invade o cenário e interrompe a filmagem daquela cena, dentro do set orquestrado por um cineasta. Liderada por Ubirajara e Juciara, a equipe – identificada como comitê de viabilização de projetos culturais e afins – confisca os negativos já rodados, com o argumento de que cinema é economicamente inviável. O diretor é levado a encontrar uma série de justificativas para que não parem as filmagens, como afirmar que tudo o que um cineasta precisa para fazer um filme é dinheiro e tesão. Para a equipe de burocratas, é necessário algo mais: mercado, capital e trabalho.
Daí em diante, A Primeira Missa… torna-se uma sátira em torno das inúmeras negociações por trás da realização de um filme. No longa de Ana Carolina, os diálogos entre o comitê e o cineasta passam por embates que dizem respeito à contratação de investidores interessados no lucro, à regulamentação estatal do cinema, até a interferência de um banqueiro estrangeiro. Representante do esforço de fiscalização da viabilidade econômica do filme como produto, a personagem de Juciara repete a frase de que “não temos mercado interno”, então é necessário “amizades pragmáticas que dêem retorno”.
Em meio às pressões externas, o diretor precisa lidar com seus atores, que cobram os cachês atrasados. O set está cheio de índios figurantes e brancos que fazem os papéis dos índios protagonistas. Ana Carolina também ironiza com a tentativa do cinema brasileiro de contar a própria história do país a partir de equívocos de representação. A atriz principal é amante do diretor e faz caras e bocas sensuais durante os takes. O comitê enxerga nela a possibilidade de exploração de cenas de sexo que possam agradar o público estrangeiro. Fernanda Montenegro faz uma participação especial como uma aparição divina que incentiva o diretor a se comprometer para salvar o filme.
A Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum pode ser interpretado como comentário sobre o próprio esforço de Ana Carolina em produzir filmes no Brasil e, ainda que ela seja considerada uma das diretoras mais importantes da história do cinema brasileiro, seus filmes não têm tido o devido reconhecimento de público, em especial dos espectadores que frequentam as salas tradicionais de cinema. A Primeira Missa… chegou a estrear no circuito comercial, mas permaneceu poucas semanas em cartaz. A julgar pela densidade crítica com que trata da relação entre cinema e mercado, é um filme necessário para pensar o modo como nosso cinema pode sobreviver a imposições externas e arquitetar estratégias para não ser esquecido.