Em Na missão, com Kadu (Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito, 2016), vemos o protagonista caminhando na Linha Verde, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele anda com uma menina no colo, que o chama de tio. A menina chora, tem medo, diz que a mãe está lá, do outro lado. Kadu a acalma, diz que Deus está com eles e essa força é maior que a brutalidade policial. Enquanto transita por aquele território, construído naquele momento, em que os moradores da Ocupação Vitória, em Izidora, trafegam na luta pela moradia e recodificam uma das avenidas mais movimentadas da cidade, Kadu atenta para uma colherzinha de marmita, deixada no chão. O objeto indica que, por ali, transitam os trabalhadores. No movimento diário da cidade, no tráfego intenso dos carros, seria muito difícil que reparássemos naquela colherzinha deixada no chão. Talvez alguém a atropelasse, alguém passasse por cima e o objeto só se tornasse mais um dentre os outros esquecidos, uma pequena coisa entre outras deixadas para trás à beira do caminho. Mas com Kadu ali não seria assim: ele olharia para a estrada, para a brutalidade que não só cruzava a avenida, mas estava sempre presente na repressão do aparato policial e na luta por moradia.
Enquanto caminha pela Linha Verde, filma a repressão policial com bombas de lacrimogêneo e sprays de pimenta, o líder, vez ou outra, coloca um dedo na imagem. Para quem vê, isso nunca aparece como um descuido, um engano na hora de tomada: pelo contrário, parece sempre que só mostrar tudo aquilo já não é suficiente. É numa digital, num polegar, no próprio corpo que se constrói a resistência possível. Esse polegar é o índice do corpo, o vestígio de quem filma e é filmado. Um dedo carrega aquilo que nos distingue uns dos outros: não há pessoas com digitais semelhantes, são elas as que podem nos diferenciar – em um corpo vivo ou em um corpo morto. Em um determinado momento, um dos moradores é ameaçado por uma arma de fogo. Outro manifestante diz: vamos lá filmar, Kadu, vamos lá. Kadu hesita por alguns segundos, mas logo segue em direção àquele companheiro que precisa de ajuda. Filmar é resistir, é a arma possível contra à imensa brutalidade policial, mas não é o suficiente. É preciso ir até lá, ter o corpo em presença e combate.
Kadu carrega no próprio corpo a vivência da urgência. É preciso tomar imagens na forma que é possível, pela câmera do celular, sob o medo do despejo. Ele prolonga a marca da insurgência na maneira como sustenta a câmera, que se torna parte integrante do acontecimento. Até então, ele habitava o antecampo – o espaço por trás da câmera -, mas no momento em que começa a correr, é necessário invadir o plano que ele mesmo filma e entrar em cena. A invasão não é apenas um dado da situação de Kadu naquela comunidade, mas ela toma forma como cinema.
Kadu é um homem que parece querer, a todo momento, ser maior que toda aquela violência, um corpo de ferro construído e sustentado pela ternura. É algo semelhante ao que vemos na sequência inicial, em que uma das moradoras diz, como se falasse de um molho de chaves que carrega para voltar para casa: “levo agora vinagre sempre comigo, dizem que é bom, né”. Enquanto explodem as bombas a todo momento na avenida, o líder diz: “gente, tem criança, gente!”. No entanto, não é o apelo necessário ao combate da violência policial: frente às bombas, à violência, a ternura e a lógica são estilhaçadas. Ao ponto de vermos Kadu em cólera, com a mesma menina no colo, xingando e questionando a polícia no limite possível que alguém possa ter de paciência e resistência.
Frame de Na missão, com Kadu (2016)
Depois do grito de Kadu, há a interrupção, o silêncio e a notícia de sua morte. As imagens, ao final, parecem ser menos poderosas que as bombas: não conseguem interromper a brutalidade da polícia, a maneira pela qual há uma governabilidade que não entende a moradia daquelas pessoas como uma demanda urgente a ser solucionada. Dessa maneira, ficamos em dúvida: o que o cinema foi capaz de fazer diante da urgência filmada pelo Kadu? Uma equipe se dispôs a estar ao lado dele, entrar na casa dele para filmá-lo e ouvi-lo sobre o que aconteceu naquele dia da manifestação e confronto com a polícia. Essa é a primeira parte do curta, em que o líder revela não poder demonstrar fraqueza, que não consegue dormir com a cabeça tranquila, que teve um sonho em que a polícia atirava nos moradores. Não poder demonstrar fraqueza parece ser a conclusão de um sentimento ainda mais amplo: Kadu pensa, reflete e duvida sobre a densidade das sensações e necessidades que o atravessam.
A junção do primeiro trecho com o material filmado pelo líder da ocupação foi o que legitimou a circulação do curta Na Missão com Kadu e possibilitou a suspensão da liminar de despejo da comunidade. No entanto, Kadu está morto. Se o filme se anuncia com um fazer junto – a equipe conversa com o Kadu no antecampo, nós os ouvimos falando dos nomes da equipe e da festa de um outro dia -, há algo que se rompe em qualquer possibilidade do comum. Do que temos de vestígio de Kadu é a imagem de um líder contundente e forte, que vive sempre em oposição à morte; o que temos, na realidade, é o cinema que tenta representá-lo, mas não consegue impedir que ele morra. A complexidade daquele contexto sociopolítico parece se antever às imagens: é muito mais brutal do que um filme parece conseguir dar conta de reverter. A ausência de Kadu não parece ser um dado pontual, se pensarmos em uma conjuntura maior em que pessoas continuam morrendo em tantas ocupações no Brasil. Enquanto o filme circula no circuito de festivais, ganhando inclusive prêmios, o que ele pode fazer para evitar a morte de tantos outros militantes espalhados pelo país, que também continuam com suas vidas em risco?
O cinema pode realmente salvar? Uma imagem de cinema, no mundo, se assemelha aos ecos das vozes de um pequeno cartaz, de uma faixa de manifesto na qual tentamos dizer do que nos angustia, do sonho de uma outra realidade. É apenas mais uma de nossas tentativas, uma esperança que talvez ainda possa conseguir menos do que nossa perseverança e desejo de partilha com aqueles que prosseguem oprimidos e violentados pelo Estado. O cinema parece caminhar com dificuldade em um mundo violento: não consegue ser superior a ele, retrocedê-lo, elidi-lo, parece chegar atrasado. As imagens parecem ser insuficientes: é urgente irmos com o corpo, é urgente colocarmos os nosso dedos e digitais como Kadu em uma luta que não se encerra com um registro, uma imagem para o porvir.