Embaixo do viaduto de Cascadura, bairro da Zona Norte carioca, há um boteco diferente dos demais, com duas pinturas bem emblemáticas na fachada. Uma delas é o nome do estabelecimento, “Bar do Hélio”, gravado sobre faixas horizontais com as cores do arco-íris. Logo ao lado, há uma espécie de pergaminho com o seguinte texto: “Vivemos em um mundo onde precisamos nos esconder para amar enquanto a violência é praticada em plena luz do dia.” Este bar, juntamente com espaços como o Teatro Rival, na Cinelândia, Buraco da Lacraia e a sede da Turma OK, na Lapa, abriga periodicamente shows de transformistas, resistindo no mesmo Rio de Janeiro que elegeu um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus como prefeito em 2016.¹ Ainda que possamos celebrar a existência desses locais, as personagens de Noturnas e Divinas Divas² lamentam a pouca quantidade de casas noturnas com este perfil, comparada à profusão desses espaços em um passado remoto e nostálgico.
Simplesmente existir enquanto homossexual ou transexual já é um ato de resistência no país recordista de assassinatos de pessoas LGBT no planeta³ e as elegantes senhoras representadas nessas obras são verdadeiras sobreviventes que se orgulham de terem vivido “a sus maneras”, como canta Rogéria. As equipes de Allan e Leandra demonstram carinho e convocam nossa atenção para o que elas têm a dizer. São gestos de escuta, de observação. Como nas reuniões de família em que os anciãos contam histórias do passado, essas bichas idosas são as avós que nunca tivemos, nossas antepassadas quase impossíveis. Cada uma desenvolveu estratégias de sobrevivência próprias e, com rugas e marcas, afirmam-se vitoriosas diante da câmera. Seus corpos exuberantes inscrevem dignamente suas presenças nas imagens e o cinema revela-se assim, a cada fotograma, o veículo por excelência para registrar essas memórias com trejeitos graciosos, vozes graves afeminadas, maquiagens coloridas e performances pintosas.
Diferente de shows de humor encabeçados por homens cis e heterossexuais, onde frequentemente as sexualidades e identidades de gênero não-normativas são representadas como algo negativo, ridículo ou inferior – e por isso, risível -, nos shows de transformistas elas são celebradas. Parte da graça está em zombar do patriarcado e do machismo, prática recorrente também fora das apresentações, notável na irreverência das senhoras durante as entrevistas. Nesse sentido, tanto Divinas Divas quanto Noturnas abraçam o bom humor, ou simplesmente se utilizam de estratégias de abordagens simples para dar espaço à comicidade performada pelas personagens.
Vale refletirmos aqui sobre ideia de “personagens”, termo muito comum em jargão de documentário e muitas vezes questionado pela potencial violência que pode ser efetuada ao reduzirmos a vida de uma pessoa real à superfície de uma personagem.4 Contudo, neste caso, as pessoas representadas gostam de existir enquanto personagens, fazem questão de borrar essas fronteiras e muitas delas trazem sua experiência das artes cênicas para o trabalho na noite. Paullette Godar afirma em seu episódio de Noturnas: “Não existe escola pra transformista.” Semelhante à construção de personagens-palhaços, as transformistas levam em conta as próprias características individuais: partem de seus aspectos subjetivos para desenhar a aparência de sua personagem, dotando-a com gostos que lhe são próprios e criando uma versão de si no gênero feminino. Algumas fazem analogias espirituais, dizendo que as personagens são entidades que elas recebem, ou entidades vivas. Outras dizem que “têm” as personagens, que “são” as próprias personagens, e há as que apagam suas identidades cis, transicionando completamente. Em Noturnas, Denise Taynáh refere-se ao seu passado masculino na terceira pessoa, como se fosse um outro sujeito, que teve sete filhos com sete mulheres diferentes.
Leandra, Allan e suas equipes preferem recuar para dar espaço às personagens. Diante de figuras tão potentes, “apenas” ligar os dispositivos para registrar suas performances talvez seja o gesto mais honesto, “deixar” que elas atuem, ajam, imponham seus corpos e palavras sobre os aparatos técnicos. Em Divinas Divas há uma peculiaridade que é a utilização de videografismos, recurso recorrente em certos documentários brasileiros contemporâneos que aqui acaba funcionando como ornamentos e frufrus, coerentes com o universo das artistas representadas. Eles entram claramente como um trabalho de pós-produção, sem interferir na forma como a câmera se relacionou com as personagens. Nesse filme, mesmo quando situações inteiras são criadas para que elas interajam ou atuem, predomina uma economia na decupagem.
Tal simplicidade formal não aprisiona os corpos em uma estrutura conservadora, cartesiana, racional e masculina, com o intuito de distanciá-las do observador como bichos exóticos. Pelo contrário, em Divinas Divas e Noturnas, a distância existe e nunca é negada por nenhum dos projetos; temos uma mulher cis de classe média alta e herdeira de um teatro e um homem gay cis por trás das câmeras. Ao invés de um desejo de domesticação, há um respeito pelos corpos. É com ternura que Leandra relata sua primeira lembrança de Rogéria, que se dirigiu a ela quando criança e disse-lhe: “Você é loura e branca que nem eu. Quando quiser ficar com as bochechas rosadas, não use blush. Belisque. Como a Scarlett O’hara.” O carinho mútuo entre os realizadores e as transformistas é presentificado também na escolha de espaços íntimos (ou que encenam uma intimidade) para gravar os depoimentos, seja nos camarins, nas casas ou nas salas de ensaio. Nesses lugares, as entrevistadas podem ficar à vontade para transitar entre as personas “de cena” e suas personas sociais, nos casos em que há diferenças entre elas.
Importante pensar sobre o poder de suas palavras e a necessidade que elas têm de historicizar suas trajetórias, atribuindo-lhe seu devido valor. Conforme reflete Rancière: “O homem é um animal político porque é um animal literário, que se deixa desviar de sua destinação ‘natural’ pelo poder das palavras. Essa literalidade é ao mesmo tempo a condição e o efeito da circulação dos enunciados literários ‘propriamente ditos’.” (RANCIÈRE, 2005, p.60) E esses enunciados vão agir sobre o sensível, sobre o imaginário coletivo de uma comunidade. Não foram apenas os comunistas guerrilheiros e machos que fugiram da polícia e perturbaram a ordem durante os anos de chumbo: essas personagens estavam lá também, podiam ser presas simplesmente por estarem vestidas de mulher e querem o reconhecimento que lhes é de direito. Em Noturnas, Ruddy Pinho diz com muita naturalidade que foi presa, “mas eu não fui muito torturada nem nada, não, porque eu sempre dava pros soldados.” Brigitte de Búzios, em Divinas, questiona: “A gente não pode ser contra a sociedade senão a gente vira o quê, um animal em extinção?”
Outra dificuldade recorrente é o reconhecimento como artistas. Elas fazem a própria maquiagem, muitas delas têm experiência como cabeleireiras e sabem pentear as perucas, outras costuram e personalizam as roupas que vestem nos palcos. Jane Di Castro, também na série de Ribeiro, conta do preconceito que as artistas travestis sofreram e que só depois que Bibi Ferreira dirigiu o espetáculo Gay Fantasy, em 1981, a imprensa deu-lhes alguma atenção: “A entourage do poder não nos admitia como artistas, nós fomos aceitas muito por uma imposição nossa. Nós já éramos ativistas na época sem saber.” O audiovisual entra, agora, um tanto tardiamente, como uma ferramenta possível de fabricação historiográfica:
Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas. (…) Não se trata pois de dizer que a “História” é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidade de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. (RANCIÈRE, 2005, p.58-59)
Essas personagens fazem questão de dizer que foram pioneiras: as primeiras a colocar prótese nos seios, a tomar hormônios (sem saber que consequências teriam a longo prazo), as primeiras travestis a aparecer em um programa de TV, a desfilar na sapucaí como rainha de bateria.
É significativo, também, atentar ao vocabulário empregado por elas, ao não usarem termos como “drag”, por exemplo. Elas praticamente não mencionam em suas falas a atual cena drag que proliferou mundo afora, influenciada pelo programa norte-americano RuPaul’s Drag Race. As jovens bichas e suas amigas se reúnem religiosamente em bares, casas noturnas ou mesmo nas casas das manas para assistir o programa ao mesmo tempo em que ele é exibido nos Estados Unidos através de streamings piratas – e reassistir depois, inúmeras vezes, decorando os bordões da semana. No mesmo Rio de Janeiro em que houve uma ascensão de novas artistas na noite jovem, não surpreende que as gerações anteriores se sintam excluídas das boates em que as gays fishy fazem seus lipsyncs com bateção de cabelo e espacates, pulsando vitalidade e celebrando as divas contemporâneas. As referências das divinas divas são outras, seus corpos habitam outro tempo, seu imaginário sonoro reverbera outras paixões. Todavia, ainda que a geração drag e as transformistas pouco se comuniquem, não é coincidência que elas estejam hoje impondo sua visibilidade quase simultaneamente. A Turma OK comemora 56 anos de transformismo e é uma lástima a escassez de registros audiovisuais dessas personalidades, se comprarmos com as artistas do projeto carioca Drag-se5, por exemplo. Se Pabllo Vittar hoje tem milhões de visualizações na internet, décadas atrás, pouquíssimas transformistas tiveram espaço semelhante na TV e no cinema, mesmo lotando teatros inteiros com seus espetáculos. O que resta são algumas fotos, recortes de jornais e uma ou outra imagem em movimento, preservadas como tesouros por cada performer.
Em ambos os projetos, está presente o apreço mútuo que elas têm, elogiando as habilidades e talentos de cada uma. O shade, tão comum no seriado de RuPaul, aparece em menor grau nestas obras: as disputas internas são encenadas mais como uma brincadeira entre elas do que como uma inveja ou ódio “reais”. O foco de interesse de Divinas Divas e Noturnas está nos afetos construídos naquela rede de bichas elegantes. Uma anedota que representa bem a leveza como essas desavenças são retratadas é contada por Samantha Alucardd em Noturnas: ela vencera o concurso de Miss Universo Gay em 1983 mas a travesti que ficou em segundo lugar, inconformada, “quebrou a casa toda”. Apesar do incidente, Samantha diz que hoje elas são amigas: “ela sempre me chama pra ir na casa dela, na Riachuelo. E, na estante, está lá o meu troféu e a minha coroa que ela pegou no dia.”
Dedicado à memória de Rogéria, Luana Muniz, Marquesa e todas as estrelas que nunca deixarão de brilhar.