I hurt myself today
To see if I still feel
I focus on the pain
The only thing that’s real
“Hurt” – Johnny Cash¹
Logan (Hugh Jackman) é um homem solitário e amargurado que trabalha como motorista de limousine. Estamos em 2029, um futuro próximo em que supostamente não há mais mutantes, eles foram perseguidos e os poucos que restaram escondem sua natureza dos humanos. O protagonista quer apenas seguir sua vida em paz, cuidando de Charles Xavier (Patrick Stewart), seu amigo e ex-professor, agora idoso e com seus poderes desequilibrados. Caliban (Stephen Merchant) vive com Charles e Logan em uma fábrica abandonada na fronteira dos EUA com o México, e aplica injeções diárias em Charles de um medicamento para controlar suas convulsões. A frágil estabilidade desses mutantes é rompida quando Donald Pierce (Boyd Holbrook) aborda Logan e, em seguida, Gabriela (Elizabeth Rodriguez) surge, pedindo sua ajuda para salvar uma criança, Laura (Dafne Keen). A partir daí, passamos a acompanhar a jornada dos mutantes em busca de uma suposta terra prometida chamada Éden.
O tema da perseguição de minorias é uma recorrência dessa franquia da Marvel, presente nos gibis, desenhos animados e outros filmes em live-action da série, desde X-Men: O Filme (2000) até Wolverine: Imortal (2013). A ideia de que os mutantes são uma espécie ou raça diferente que perturba a sociedade humana já havia sido trabalhada anteriormente, contudo, o que muda em Logan (2017) é o tom dessa luta. Há uma atmosfera de desesperança, arrependimento e esgotamento: as ideologias de inspiração nazi-fascistas que legitimam o extermínio mutante triunfaram, os planos de paz entre humanos e mutantes fracassaram. Se em X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido (2014) era possível voltar ao passado para tentar melhorar o futuro, em Logan o futuro já passou e deu muito errado. Não tem mais volta: há que encará-lo no presente. O espaço que fica é cheio de terra, poeira, sangue, sujeira e latas velhas enferrujadas. A sobrevivência mais elementar é o que move os mutantes, mas não há uma expectativa promissora; eles estão sozinhos naquele mundo hostil. Logan pensa diariamente em tirar a própria vida com uma bala de Adamantium e Caliban não hesita em suicidar-se quando é capturado e percebe não haver escapatória de sua condição de escravo – sua existência como rastreador de mutantes só seria mais danosa aos seus semelhantes.
Essa atmosfera de desalento materializa-se na imagem do filme através de uma grande adesão ao western, retrabalhando as convenções do gênero com ênfase em seus aspectos mais violentos. Os filmes anteriores de live-action baseados nos quadrinhos mutantes flertavam com o gêneros de ação e aventura, mas visualmente predominava uma adesão plástica aos clichês da ficção científica. Luzes frias, trajes pretos colantes e brilhosos, cenários acinzentados, superfícies lisas, design arrojado, a alta tecnologia a serviço de uma visualidade clean. Ainda que os personagens fossem marginalizados (o que poderíamos associar à estética cyberpunk), as narrativas apontavam para um futuro esperançoso e a encenação espetacularizava os poderes dos mutantes. Eles eram representados como personagens cool que poderiam gerar fogo, lasers, gelo, raios, tempestades, portais magnéticos com as mãos, e toda essa opulência de computação gráfica era parte da atração nos filmes, do prazer visual. Quando atingidos em batalhas, seus corpos eram filmados a uma certa distância, víamos os amigos sofrendo com o eventual incidente, mas a câmera não se interessava pelos ferimentos.²
Em Logan, os recursos técnicos usados para representar os mutantes passam a ser mais “materiais”, com predomínio da maquiagem de efeito. Os personagens andam de carro, vestem jeans, chapéus de cowboy e toda a indumentária que remete ao imaginário da fronteira EUA-México. As superfícies possuem texturas variadas, o ambiente é quente e árido, a carne está em evidência e o sangue atravessa o tecido das roupas. Essa guinada aos corpos já vinha sendo esboçada por Mangold em Wolverine: Imortal (2013), quando o sangue começava a aparecer como elemento expressivo em algumas cenas. Mas é no filme de 2017 que os corpos ganham destaque e são acionados como mediadores de afetos. Desde o prólogo, o espectador é convocado a experienciar a obra através de uma lógica corpórea. O filme começa com uma cena de luta sangrenta, somos convidados a observar de perto a fisicalidade de cada golpe desferido pelas extensões metálicas dos punhos de Wolverine, perfurando pele, crânio, músculos. Ao longo de toda a projeção, os corpos são apresentados em proximidade, principalmente nos momentos em que os personagens estão sentindo dor e exclamando gritos de agonia. Não por acaso, o protagonista deste filme é o mutante cujos poderes estão diretamente vinculados ao próprio corpo, tanto a sua capacidade de regeneração quanto a sua “arma”, que são as garras: vemos muitas cenas dele sozinho lidando com suas feridas, seus sangramentos.
Em Logan, viver como mutante é um fardo, uma condição que provoca intensa dor. Se nos outros filmes os poderes eram uma dádiva, agora eles são uma maldição. A câmera está interessada em mostrar a pele de Caliban queimar quando exposta ao sol, Xavier atormentado com suas convulsões eletromagnéticas e Wolverine mancando. Tudo ao redor dessas figuras é pesado, carcomido e problemático. Logan apresenta-se aqui como um típico personagem westerner, um herói de faroeste. Ele afirma que “coisas ruins acontecem com as pessoas com quem eu me importo” e que tem pesadelos frequentes em que ele “machuca pessoas”. Toda essa carga de culpa já vinha sendo construída nos filmes anteriores, inclusive com outros personagens verbalizando constatações parecidas, como o Agente Zero em X-Men: Origens – Wolverine (2009), que lhe diz “é engraçado como pessoas boas e inocentes tendem a morrer ao seu redor”, e Jean Grey na obra de 2013 aparece em um sonho para profetizar: “todos aqueles que você ama morrem”. Ele vive o constante dilema: tem medo de agir e provocar a morte de mais pessoas, porém não consegue permanecer inerte quando se depara com uma situação em que alguém que ele ama está em perigo.
Sobre a ambiguidade do westerner clássico e seu compromisso moral com a civilização, Thomas Schatz afirma: “ele tende a gerar conflito através de sua própria existência. Ele é um homem de ação e poucas palavras, com um código de honra não-dito que o compromete com a comunidade vulnerável do Oeste³ e, ao mesmo tempo, o motiva a permanecer distintamente aparte dela.” (SCHATZ, 1981, p. 51) Essa figura existe na dupla periferia, entre a sociedade e a selvageria, mas sem perder o contato com nenhum desses mundos. Trata-se de um homem isolado, psicologicamente estagnado mas de personalidade íntegra, que precisa intervir quando a sociedade é fraca demais para fazê-lo através da lei. Nessas ações, ele finalmente restabelece a ordem social, mas depois precisa partir, seja indo embora ou morrendo. Schatz considera o gênero do faroeste como um “rito de ordem” (junto com os filmes de gângster e detetive), em que os “conflitos são externalizados, traduzidos em violência, e normalmente resolvidos com a eliminação de alguma ameaça à ordem social.” (ibidem, p. 34) Em Logan, a violência e a brutalidade apresentam-se como elementos primordiais nas relações entre os personagens e como propulsores da narrativa.
Outra característica importante dos faroestes clássicos é a disputa por território. Schatz entende o western como um ritual de fundação da América, que “projeta uma visão formalizada das infinitas possibilidades de nação, com perspectivas ilimitadas, servindo para naturalizar as políticas de expansão rumo oeste e o Destino Manifesto.” (ibidem, p. 47) Se essas narrativas estavam originalmente atreladas a um ideário nacionalista, a reapropriação efetuada pelo universo mutante gera uma série de tensões e coloca o gênero em xeque. Por um lado, há alusões claras à política externa estadunidense contemporânea, caracterizada pela xenofobia, e a um sistema econômico calcado no desenvolvimento científico desumano e voltado para a guerra. Em Logan, a noção de território é reiterada, mas está menos vinculada à disputa por um espaço e mais a uma ideia de fuga, é preciso fugir dos Estados Unidos para existir com plenitude. É dos EUA que brotam as forças malignas e opressoras: o projeto Transigen atua na Cidade do México, mas é comandado pela empresa estadunidense Alkali, que por sua vez atende aos interesses bélicos dos EUA utilizando crianças mutantes como cobaias em laboratórios. Neste projeto, os bebês “nasceram das barrigas de mulheres mexicanas, mulheres que ninguém mais consegue encontrar”, como atesta Gabriela em um vídeo-denúncia. Para as empresas, elas não são sequer consideradas crianças, mas coisas, com patentes e copyrights. Se no México os EUA conseguem exercer este tipo de influência sobre os corpos, as enfermeiras e as crianças mutantes vêem como solução atravessar o continente rumo Dakota do Norte, até chegar ao Éden, terra prometida perto do Canadá, onde poderão cruzar a fronteira e encontrar algum tipo de tranquilidade.
Entretanto, há um gesto conservador intrínseco ao contexto de realização e comercialização desta obra. A produção de um blockbuster – distribuído mundialmente pelas majors em milhares de salas, inclusive com projeção em IMAX, e acompanhado de altíssimos investimentos em publicidade – com críticas à sociedade estadunidense contribui para o movimento de constante renegociação dos valores americanos no interior da própria indústria hollywoodiana. Segundo Schatz, se os gêneros se desenvolvem e sobrevivem, é porque eles sistematicamente reexaminam os conflitos culturais, adaptando-se às mudanças que ocorrem na percepção do público sobre determinadas questões, assim como sua crescente familiaridade com as convenções narrativas. Desta forma, os assuntos mais “profundos”4 dos gêneros permanecem intactos, enquanto os filmes têm a capacidade de simultaneamente “criticar e reforçar os valores, crenças e ideais da cultura americana dentro de um mesmo contexto narrativo.” (ibidem, p. 35) Nesse sentido, o filme parece degladiar-se dentro do paradoxo representado na figura recorrente dos arpões que perfuram os corpos dos personagens: eles padecem, são puxados para trás, mas conseguem se desvencilhar e avançam – a carne aos poucos se regenera, mas a mancha de sangue permanece na roupa.
A dinâmica ambígua de referências autoconscientes empreendida pela obra age em diversas camadas: seja nos enquadramentos em scope trabalhando a dicotomia interior/exterior, claro/escuro, homem/natureza, seja no texto estelar de Hugh Jackman que depois de quase duas décadas interpretando o mesmo personagem precisa morrer no final do filme para tentar recomeçar sua trajetória. Porém, é na cena em que os protagonistas assistem a Os Brutos Também Amam (1953) no quarto de hotel que o jogo de citações atinge seu ápice. Não surpreende que Schatz descreva este filme dirigido por George Stevens como “barroco (ou ‘maneirista’ ou ‘auto-reflexivo’)” (ibidem, p. 38) por deslocar as questões formais do gênero para o centro do trabalho, tornando-as sua substância. André Bazin, em uma análise parecida, chama-o de “metawestern” (1991, p. 210), realizado em um período histórico pós-guerra que coloca em crise os “mitos” com uma abordagem barroca e decadente, exigindo uma relação intelectual e reflexiva por parte do espectador. No momento em que o filme dentro do filme aparece, a obra convoca o espectador a traçar paralelos entre as narrativas5 ao mesmo tempo em que consolida um duplo abismo, com Logan comentando quixotescamente os gibis de X-Men lidos por Laura. Ainda que ele demonstre um grande ceticismo e hesite em levar a menina ao Éden – suposta terra de fantasias criada pelos autores da revista – quando o faz, se depara com a atualização em realidade de um sonho compartilhado pelas crianças: elas fazem o Éden existir. O cinismo é o que resta aos adultos, mas aquelas crianças precisam sonhar para ter energia e seguir sobrevivendo.
Analisando os faroestes clássicos, Bazin afirma que “esse estilo de epopéia só ganha seu sentido a partir da moral que lhe serve de base e o justifica. Essa moral é a do mundo onde o bem e o mal social, em sua pureza e necessidade, existem como dois elementos simples e fundamentais.” (ibidem, p. 206) Pois em Logan isso não é diferente, e temos uma polarização que se desdobra também nos papéis de gênero. Ainda segundo Bazin:
a divisão dos bons e dos maus só existe para os homens. As mulheres, de alto a baixo da escala social, são, de qualquer modo, dignas de amor, pelo menos de estima ou de piedade. (…) no mundo dos western, as mulheres são boas, é o homem que é mau. Tão mau que o melhor deve, de certo modo, redimir com suas provas a culpa original de seu sexo. (ibidem, p. 203)
Essa configuração está presente no filme de Mangold e é ainda potencializada por todo o núcleo de personagens infantis. Depois que Gabriela, personagem mais próxima do arquétipo da “mãe”, morre no primeiro ato tentando salvar seus “filhos”, a jovem Laura vai representar o feminino naquele universo brutal. Um feminino que resiste usando as mesmas armas que os homens, mas que sonha em viver com seus semelhantes em um paraíso livre de armas. É o sonho das crianças que vai retomar a lógica do western clássico de busca por um território, um lugar seguro para viver como se é, ajudadas pelas enfermeiras mártires e por uma voz feminina que fala no rádio, passando as instruções para que as crianças cruzem a fronteira rumo norte.
Como típico westerner, Logan heroicamente se sacrifica ao final do filme, mas sua filha Laura não aceita enterrá-lo sob uma cruz. Os valores cristãos não cabem para aqueles seres marginalizados e perseguidos pela América. Laura, então, gira os gravetos, formando um X sobre o túmulo e segue com os outros jovens mutantes em sua diáspora.