Com Amor, Van Gogh (2017) apresenta-se, desde o trailer, como “O primeiro longa pintado à mão do mundo.” Tal introdução já coloca a feitura do filme como principal atração e convite aos espectadores, o que se confirma nos minutos iniciais da obra. Imediatamente depois das logomarcas de produtoras, os diretores Dorota Kobiela e Hugh Welchman informam o público de que mais de 100 artistas participaram do projeto, pintando manualmente cada frame a partir de um material de referência gravado digitalmente com atores. Em seguida, começam as imagens e vamos percebendo, aos poucos, que há um desejo de contar uma história baseada em fatos reais, seguindo a linguagem do cinema clássico-narrativo. Temos um personagem principal, Armand Roulin (interpretado na etapa de gravações por Douglas Booth) que viaja pela França para entregar uma carta escrita por Vincent, recém-falecido, a seu irmão Théo. Nessa jornada, Armand encontra pessoas que conheceram Vincent e percebe que os relatos sobre seus últimos dias são estranhos e divergentes. Armand, então, inicia uma espécie de investigação e o filme adere a esse tipo de narrativa detetivesca estruturada em flashbacks. Cada personagem conta a sua versão da história e o filme dialoga esteticamente com o cinema noir, na tentativa de desvendar a morte de uma figura conhecida à la Cidadão Kane (1941, dir.: Orson Welles). É através desse impulso por solucionar a morte de Van Gogh que Kobiela e Welchman pretendem dar vida à obra do pintor (“bringing to life”, como eles dizem no site oficial).
A técnica é impressionante. Se Resnais já havia destruído o espaço pictural desse pintor em Van Gogh (1948), ao implodir as molduras e realizar travellings, panorâmicas e contracampos, se Kurosawa já havia inserido uma figura humana em live-action dentro das paisagens pintadas em Sonhos (1990), Kobiela e Welchman desenvolvem uma nova forma de relação com a arte de Van Gogh no cinema. Cada figura adquire um movimento próprio, que vai além da dissociação entre figura e fundo. Por meio do trabalho com as cores, há oscilações de luz nos corpos, reflexos em superfícies de vidro, refrações na água e no ar, seguindo uma lógica paradoxalmente onírica e realista. Ao mesmo tempo em que esse tipo de imagem possui uma natureza altamente subjetiva, há uma aproximação com fenômenos físicos do mundo real cuidadosamente estudados, apreendidos de maneira criativa e reproduzidos manualmente.
No making of, Welchman contabiliza um total de 66.960 quadros pintados a óleo, usando uma técnica que levou 4 anos para ser desenvolvida, mais 2 anos de produção, resultando no que eles chamam de “Painting Animation”, que poderíamos traduzir como pintura animada ou animação pintada. Nesse sentido, o filme se distancia dos filmes de pintura analisados por Bazin, que utilizam “uma obra já totalmente constituída e que basta a si mesma.” (BAZIN, 1991, p. 176) Em Com Amor, os artistas realizam um exercício de re-imaginação das pinturas de Van Gogh; não temos acesso às pinceladas originais do artista homenageado, mas a uma espécie de pastiche de sua obra. Nos filmes de Resnais e Kurosawa, as pinceladas são estáticas, fixas, e a câmera passeia por elas, acrescentando movimento a um estilo pictural que, por si, já sugere movimento através de formas distorcidas. No filme de 2017, cada fotograma é um novo quadro, com novas pinceladas realizadas pelos artistas “concentrados em serem fieis às cores e pinceladas de Vincent”, segundo os diretores.
A forma como essas telas pintadas se sucedem na tela do cinema convoca o espectador a uma experiência bastante singular, principalmente se pensarmos na curtíssima duração de cada uma. É como se cada pintura fosse feita para praticamente não ser vista, assumindo-se como mais um fotograma projetado durante a sessão, a serviço de uma apreensão realista da imagem nele representada. Bazin fala de um realismo em segundo grau no filme de Resnais, que se dá a partir da abstração do quadro (BAZIN, p. 175). Podemos pensar nessa lógica aqui também, mas há ainda uma perturbação visual maior no filme de Kobiela e Welchman devido à impressão de centenas de micro-movimentos simultâneos dentro de cada elemento. Assim, o filme demanda uma série de exercícios mentais simultâneos para o espectador.
Em primeiro lugar, vemos uma imagem com centenas de pinceladas grossas nas quais os pintores inscreveram suas respectivas presenças, uma “textura radicalmente concreta, como se estivesse sendo pintada na hora (o que de certa forma foi)”, como descreve Cicero Pedro Leão. A partir daí, em cada fotograma/pintura, precisamos atravessar essas marcas performativas e penetrar na representação pictórica através de uma abordagem realista – e isso deve ser feito diversas vezes por segundo ao longo dos 95 minutos. A montagem, por sua vez (se é que podemos falar de montagem em uma animação), está alinhada a uma temporalidade clássico-narrativa que segue um fluxo bastante fragmentado, que não ajuda muito nesse processo perceptivo. Cada plano dura apenas alguns segundos e já “corta” para uma outra escala, um plano detalhe, um contracampo, planos ponto-de-vista. Há planos com “câmera” em movimento, outros com ela fixa. Por fim, para além dos aspectos visuais, o filme é extremamente verborrágico, com muitos diálogos e voz over tentando dar conta de uma história confusa, com idas e vindas, frases de efeito e trilha musical induzindo emoções.
Embora a atenção do espectador seja modulada com dificuldade pela natureza das imagens, há momentos preciosos em que o filme permite uma relativa contemplação através de planos mais longos. A beleza das cores e a virtuosidade na execução é deslumbrante, especialmente nos quadros em que podemos ver os detalhes no rosto dos personagens. O público não tem oportunidade de apreciar a performance individual de cada pintor contratado para o projeto, mas os atores ganham um grande destaque ao acrescentar sua camada de vida às figuras. A voz carrega emoções e subjetividade, e suas expressões faciais são ainda interpretadas pelos artistas visuais. Em filmes como O Homem Duplo (2006, dir.: Richard Linklater), técnicas semelhantes de animação foram utilizadas, com rotoscopia de imagens previamente filmadas, seguidas de um trabalho manual dos artistas. Porém, nesses trabalhos, há uma relativa homogeneidade nos campos de cor dentro de cada figura. Em Com Amor, cada pincelada é um acontecimento, há vida sendo inscrita em cada pedacinho da tela e reproduzida em cada movimento.
Comentando os filmes de pintura e refletindo sobre uma certa traição que qualquer filme fará em relação à obra original (que se dá devido à diferença ontológica entre as artes), Bazin escreve: “Os próprios filmes são obras. A justificação deles é autônoma. Não se deve julgá-los somente com referência à pintura que eles utilizam, mas em relação à anatomia, ou antes, à histologia desse novo ser estético, que surgiu da conjunção da pintura e do cinema.” (Bazin, p. 176) Nesse sentido, em Com Amor, Van Gogh, fica a sensação de que esse novo ser estético poderia estar menos comprometido com a contação de uma história nos moldes do cinema de gênero hollywoodiano ou mesmo de tentar dar conta do mistério da morte de Van Gogh. Um universo de possibilidades surgido com o fascinante dispositivo criado pela produção do filme parece ter sido desconsiderado e sua potência esvaziada em detrimento de uma preocupação narrativa que muitas vezes age como uma prisão.
Não deixa de ser terno, entretanto, o gesto de todos os artistas envolvidos na produção enquanto um tributo ao mestre holandês. Podemos notar a admiração deste coletivo pelo pintor homenageado, uma enorme humildade em relação à obra original. Com Amor pode servir tanto como introdução ao legado de Van Gogh para novas gerações ou como um divertido exercício de citação, no qual espectadores já iniciados poderão reconhecer referências a obras famosas e se encantar com a nova vida acrescida a elas através dessa admirável técnica audiovisual.