Um Jedi usa a Força para conhecimento e defesa. Nunca para atacar.
Mestre Yoda¹
Baseado no best-seller homônimo do escritor R.J. Palacio de 2012, Extraordinário (2017) é o melodrama do verão nos cinemas brasileiros. Segundo o site AdoroCinema, desde a estreia no dia 8 de dezembro até a publicação deste artigo, cinco semanas depois, o longa oscilou entre o primeiro e segundo lugar no total de ingressos vendidos no país. Esse sucesso de bilheteria pode ser entendido pelo forte apelo às emoções do público, conforme identificado pela cobertura crítica local: “um daqueles raros filmes que nos fazem chorar“; “inegável potencial para emocionar o público“; “definitivamente emocionante“; “boas chances de arrancar uma lágrima do espectador“; “materialmente impossível não soltar algumas lágrimas“. Com tais informações em mente, passemos à análise desta obra dirigida por Stephen Chbosky, que atende à demanda das famílias de classe média no período de férias escolares, lançando mão de espetáculos agradáveis e inspiradores.
Auggie Pullman (interpretado por Jacob Tremblay) é um menino nascido com a síndrome de Treacher-Collins, uma má formação craniofacial congênita. Ele precisou passar por 27 cirurgias plásticas e, por isso, possui cicatrizes em toda a superfície do rosto. Em sua primeira aparição no filme, ele veste uma camisa estampada com a logo Star Wars e usa um capacete de astronauta. Aos olhos de Auggie, a Terra é um planeta com pessoas muito parecidas umas com as outras, e todas muito diferentes dele. Depois de um tempo estudando em casa com a mãe, Isabel (Julia Roberts), Auggie se prepara para encarar o primeiro dia de aula em uma escola, aos 10 anos de idade. Seu maior medo são os olhares das outras crianças; até aquele momento, ele podia sair de casa usando um capacete para que ninguém reparasse em seu rosto, mas essa proteção já não será mais possível. Ele precisará se misturar às crianças comuns. Como bom aprendiz de Jedi, Auggie encara o desafio e assume uma postura de resiliência diante daquela situação hostil. Todavia, os valentões zombam de sua trancinha Padawan e a primeira coisa que Auggie faz quando volta para casa é cortá-la, enfurecido. De acordo com a mitologia criada por George Lucas, a trança só deve ser cortada depois que os adolescentes completam os testes e se formam Cavaleiros da Ordem Jedi. Teria Auggie desistido de seu treinamento no lado luminoso da força?
Ao longo da narrativa, não é citado nenhum tipo de religião e o mais próximo de uma cosmogonia que perpassa o filme está nas constantes referências ao universo de Guerra nas Estrelas. Ainda que Natal e Halloween sejam celebrações religiosas, elas só afetam as crianças devido aos feriados, presentes, doces e fantasias. No primeiro dia de aula, depois do jantar, Isabel entra no quarto de Auggie e encontra-o (já sem tranças) batendo com seu sabre de luz de brinquedo em um boneco do Darth Vader, vilão da saga espacial. Auggie está enfraquecido e chora por se considerar feio. Sua mãe olha em seus olhos e, como mestre Yoda, fala as palavras certas para motivá-lo a seguir em frente. Em Extraordinário, há uma crença na educação enquanto força transformadora naquele microcosmo. A palavra falada possui muita importância e, ao alinhar-se a essa premissa, o filme parece tentar, a todo momento, repassar verbalmente lições e frases edificantes aos espectadores. Para além de um discurso implícito na obra – que poderia ser inferido a partir dos acontecimentos com os personagens e da maneira como as situações são encenadas – eles falam entre si sobre o que aprenderam e também diretamente com o público, através da voz over.
Gentileza e bondade são virtudes muito valorizadas e a comunidade retratada possui um funcionamento exemplar. Nesse sentido, o filme é bastante honesto ao situar a história, com recorrentes tomadas aéreas, em uma área nobre de Nova Iorque. Trata-se de um espaço capitalista idealizado onde as liberdades individuais são garantidas, onde não é preciso lutar para se conseguir viver em paz, pois as instituições dão conta de vigiar e punir comportamentos nocivos e recompensar as conquistas de quem o merece. A escola possui “tolerância zero” para bullying e o único lugar em que Auggie se sente verdadeiramente ameaçado é em um bosque, durante o acampamento de verão. No ambiente selvagem, garotos mais velhos tentam agredir Auggie e seu melhor amigo Jack Will (Noah Jupe), mas são impedidos pelos colegas que antes praticavam bullying no protagonista. Os meninos elogiam a bravura de Auggie, que se manteve firme diante dos agressores, e cumprimentam-no com respeito.
Depois de ter seu papel de homem afirmado durante uma briga e sua virilidade reconhecida pelos meninos, Auggie fica orgulhoso mas, instantes depois, se emociona e se afasta, para que eles não vejam seus olhos cheios d’água. Começa a tocar a canção-tema We’re Going To Be Friends, de White Stripes – neste momento cantado pela voz doce de Caroline Pennell – falando sobre amizade em tempos de escola com um tom nostálgico. Os meninos caminham até Auggie e abraçam-no afetuosamente. A reconciliação do aprendiz de Jedi com aqueles que antes pareciam pertencer ao lado das trevas é um dos ápices da história e um dos poucos momentos que mergulham no excesso emotivo. Se a trilha musical do brasileiro Marcelo Zarvos já flerta com os códigos do melodrama (podemos ouvir violinos e piano embalando os momentos mais intensos), as lágrimas aparecem na imagem de Extraordinário com moderação. São momentos bem pontuais e os personagens geralmente tentam escondê-las, o que evidencia o jogo do filme com as expectativas de um público consciente dos clichês mas, supostamente, disposto a chorar.
Outra negociação realizada com os códigos desse gênero é o deslocamento do foco narrativo para diferentes personagens. Inicialmente centrado em Auggie, o filme passa a acompanhar sua irmã Via (Izabela Vidovic) e, mais adiante, sai da família Pullman e passamos a ter acesso à subjetividade de Jack Will e Miranda (Danielle Rose Russell), ex-melhor amiga da Via. Esse recurso permite que o espectador crie uma impressão sobre o comportamento das pessoas a partir do julgamento de determinado personagem: Jack Will fala mal de Auggie pelas costas, Miranda corta relações com Via. Mas quando entendemos o que está por trás de certas atitudes, podemos relativizá-las. Tal construção vai de encontro à própria filosofia dicotômica Jedi, pois bem e mal são colocados enquanto perspectivas, e não verdades absolutas.
Assim, o sofrimento dos personagens é amenizado. Eles não são vítimas de injustiças, nem precisam lidar com destinos cruéis; todos têm suas aflições e problemas como quaisquer pessoas comuns e, ao mesmo tempo, extraordinárias. O ser humano é bom por natureza, as famílias são alicerces e os filhos são reflexos de seus pais. Especialmente no caso das crianças, o filme as apresenta como frutos do ambiente em que estão inseridas. Há um interesse da câmera em observar de perto suas fisionomias e olhares, quase todos muito expressivos. Talvez o dinheiro seja a única força maligna do filme, mas aquela sociedade é tão evoluída que já elaborou maneiras de amenizar as possíveis violências do sistema capitalista. O nacionalismo é reiterado de forma acrítica por bandeiras estadunidenses e símbolos da NASA, e os valores do american way of life são celebrados. As viagens espaciais, astronautas e guerras nas estrelas são representadas de forma lúdica, dissociadas de um contexto bélico. A história é contada pelas crianças e adolescentes, as questões políticas pertencem aos adultos. O olhar do filme está atrelado à ingenuidade desses jovens que estão descobrindo o mundo, com suas dores e belezas, dentro de uma bolha burguesa repleta de bondade.
A fascinação de Auggie pela física e pela possibilidade do homem controlar a natureza também está associada a esse universo capitalista e funcional. A tecnologia é um elemento muito presente na vida dos personagens e todos eles conseguem usá-la a seu favor, seja no trabalho ou nas relações pessoais. No início do filme, Isabel tem dificuldades para acessar um disquete no qual está o documento de sua dissertação de mestrado. Mais adiante na história, ela consegue passar para um pendrive e concluir a escrita que havia interrompido desde o nascimento de Auggie. O telefone celular de Miranda permite que ela se comunique com o irmão de Via enquanto elas estão afastadas. Via e Justin (Nadji Jeter) se divertem em uma montanha russa e celebram o ano novo olhando para televisores na Times Square. Após um desentendimento, Auggie e Jack Will fazem as pazes através de um diálogo de avatares dentro de um jogo online.
No final do ano letivo, o protagonista e seu melhor amigo fazem uma câmera escura para a feira de ciências. A cada vez que abrem o diafragma na caixa de papelão, a imagem de Auggie é projetada na parede interior, invertida. Nesse ponto da narrativa, ele já está mais à vontade e brinca fazendo caretas, descontraído. Esse gesto traduz metaforicamente uma das mensagens do filme, previamente enunciada pelo diretor da escola, Sr. Buzanfa (Mandy Patinkin): “Auggie não pode mudar sua aparência (the way he looks), mas nós podemos mudar a maneira como vemos (the way we see).” Apesar de parecer deformado, o rosto de Auggie é uma conquista das ciências biológicas, assim como a prótese construída para recriar esse efeito no cinema é produto de uma técnica de maquiagem amplamente noticiada pela mídia na divulgação do filme.
O filme convoca, a todo momento, um olhar de maravilhamento para o mundo. Emily, personagem da peça Nossa Cidade, de Thorton Wilder, interpretada por Via no teatro da escola, diz: “Oh, Terra, és maravilhosa demais para que alguém te possa compreender.” O título original do filme é Wonder, palavra que pode ser traduzida como maravilha, milagre e, se conjugada como verbo, pode evocar uma dúvida, imaginação, possibilidades. No final, Via é aplaudida de pé pela sua boa performance no teatro e Auggie por seu desempenho na escola. Nesse mundo encantado e meritocrático, os talentos são devidamente reconhecidos. Diante da aprovação unânime de uma comunidade antes temida pelo menino, ele conclui, em voz over, que todos nós merecemos ser ovacionados de pé ao menos uma vez na vida. Os personagens se comovem e a trilha sonora acompanha essa afetação, convidando o público do cinema a juntar-se ao auditório da escola. A Força está com Auggie.