Este é um artigo sobre tempo, mudanças e permanências, que procura problematizar a forma como lidamos com os ganhos e percalços do feminismo e seus reflexos, especialmente no âmbito da representação feminina no audiovisual. Bem como as fantasias que algumas de nós, mulheres em sua maioria brancas e de classe média, cultivamos em cima de futuros possíveis, um futuro que vê no presente um espaço desproblematizado de ganhos cimentados que se reflitam de forma direta e global na produção fílmica, mas que nos desprega da realidade material, das vivências e lutas cotidianas de tantas mulheres até o presente. É um artigo sobre monstros e ciborgues, e sobre a realidade patente e incômoda de ficções que desafiam a fantasia, corpos e subjetividades diversos, complexos e marginais, que carregamos com ardor, ditos monstruosos por não se adequarem à ordem da “normalidade”. Por fim, é um artigo sobre mulheres e possibilidades, múltiplas, não humanas, máquinas, dentro de um universo que desafia a ciência e a razão, nosso próprio universo não ficcional mas que se baseia em ideais e padrões (de corpo, classe, gênero, etc) tão ou mais fictícios, para apontar futuros possíveis e suas construções a partir presentes e passados imaginados.
Há alguns meses, a revista eletrônica Senses of Cinema lançou um podcast de mesmo nome em que seus críticos se debruçam sobre filmes recém estreados e títulos antigos, em um debate mensal sobre o universo do cinema. No primeiro episódio, o filme contemporâneo escolhido como pauta foi Blade Runner 2049 (Dennis Villeneuve, 2017), continuação do clássico sci-fi noir1 de 1982, Blade Runner: O caçador de androides, de Ridley Scott. Dentre os pontos abordados na conversa, uma das insatisfações levantadas dizia respeito ao papel das mulheres e suas representações no filme.
De onde vem essa representação do futuro? Porque ainda utiliza a imagem das mulheres como hologramas, como estátuas… é de se imaginar que se fosse uma imagem fincada nas produções atuais você deveria ao menos ter algum tipo vago de paródia a respeito dessa imagem da mulher… São trinta e cinco anos no futuro, é de se esperar que algumas coisas tivessem mudado… é similar ao filme original (no aspecto de representação das mulheres) mas acredito que precisava ser mais realístico2.
Portanto, para os críticos da revista, apesar de um gap de mais de trinta anos, tanto no nosso mundo “real” quanto no universo fictício da obra, e diversas, e muito recentes, discussões a respeito do papel das mulheres dentro e fora do mundo do entretenimento, a obra parecia no mínimo míope por não avançar em termos de representação.
Ora, se tanto caminhamos nestas décadas, se tanto debatemos estes assuntos, por que a ficção científica, um dos gêneros populares mais proteicos dentro da esfera criativa, dando corpo em palavras e imagens a fantasias de futuro que desafiam a imaginação, gênero esse que se constrói exatamente na premissa de expansão do real e nas possibilidades (quase) infinitas do maravilhoso, não conseguia refletir nosso “novo” momento e “evoluir” conosco?
O monstro é, por ironia e essência, aquilo que ousa ultrapassar limites e barreiras que nos são caros: cultura/natureza, dentro/fora, ser humano/animal, organismo vivo/máquina, homem/mulher, físico/não físico. Em seu Manifesto Ciborgue (1991), Donna Haraway nos lembra que monstros definem e constroem, com a própria matéria de seus corpos deformados e fantásticos, os limites de nossas comunidades. O corpo do monstro nos é dado como um texto, prenhe de sentidos, nos quais lemos, com horror e nojo, as marcas e inscrições da diferença, do Outro que procuramos expulsar. Corpos esses que escondem ainda uma última surpresa, estranha por sua familiaridade, tão próxima em sua obviedade que se nega aos olhos:
Tal como os ciborgues, eles (monstros) mostram… que a nossa ansiedade não é causada pela diferença, mas pela falta de diferença: entre nós (mas quem somos nós?) e eles — os monstros, as máquinas e os ciborgues. (SILVA, 2000, p.20).
Monstros, portanto, para além de marcar o que cremos diferente e repulsivo, apontam para a proximidade ainda mais assustadora entre nós e eles, a falta de diferença que nos une e nos faz repudiar a nós mesmos.
O monstruoso, cuja expressão última e mais impactante é o corpo deformado do monstro, assusta por juntar categorias que cremos contraditórias, desafiando e poluindo o “natural”, mas, por fim, revelando-o em toda sua sensível limiaridade: a artificialidade e maleabilidade histórica e cultural de nossos conceitos de humanidade, e todos os seus corolários dentro de uma sociedade fundada no mito do homem ocidental (homem branco heterossexual cis de corpo hábil). O corpo monstruoso concretiza em pele repulsiva e esfacelada os medos, ansiedades e horrores de uma cultura que se constrói através da ilusão de completude e integridade física e mental, fincada num princípio de supremacia e dominação masculina.
A premissa de Blade Runner, tanto em seu original quanto em sua recente roupagem, é construída sobre um futuro não muito distante, no qual a terra tornou-se um local inóspito para habitação, o que exigiu a colonização do espaço e, para isso, a construção de androides como mão de obra escrava nesse novo intento imperialista. Dotados de inteligência igual àqueles que os criaram, porém mais ágeis e fortes, esses replicantes se rebelaram contra seus mestres e suas amarras, o que exigiu a criação de um mecanismo de segurança: a morte mediante um prazo de expiração. Ou, de mais imediato, a eliminação, chamada “aposentadoria”, executados por certos membros da força policial terrena conhecidos como blade runners.
A reprodução de seres “mais humanos do que os humanos” como produtos e ferramentas para o serviço e prazer não nos é, no entanto, tão distante. Chamamos de ficção científica o imaginar um real futuro que potencializa e explicita passado e presente, uma das mais caras tradições humanas: criar e reproduzir corpos dominados, corpos demarcados em sua “diferença” de modo a justificar sua servidão categórica e necessária destruição: sexo, raça, classe, sexualidade, deficiência. O que os replicantes, monstruosos em sua desconcertante humanidade, nos revelam é o limite contínuo de nossa própria empatia: “Não é que as máquinas se tornem “humanizadas”, mas o contrário: são os seres humanos que são expostos em toda sua artificialidade” (SILVA, 2000, p.19). Criamos ficções para mascarar nossas transgressões diárias, lhes colocamos no limiar do possível e observamos à distância enquanto reencenam nossos dramas até a morte. Utiliza-se, portanto, da construção do estranho monstruoso, do Outro da ficção, monstros e ciborgues, como alegorias que dão corpo aos monstros que construímos diariamente, mulheres e outras minorias subalternas que tanto assustam a ordem vigente, de modo a justificar sua submissão, servidão e “aposentadoria”, quando ousam transgredir os espaços marginais a eles relegados.
No filme de 1982, Rachel (Sean Young) é a primeira de uma nova raça de replicantes dotada de memórias implantadas que lhes torna obedientes: um monstro que não se sabe como tal, não vê sua diferença – monstro de elegante carne cibernética, perfeitamente monstruosa – , as amarras que lhe prendem a seu criador, e, portanto, não deseja a morte de seu Frankenstein. Seu encontro e subsequente relacionamento com Deckard (Harrison Ford) revela a Rachel sua natureza maquínica, mas também, perversamente, embaralha o limite das fronteiras de ambos frente ao humano, e a própria identidade humana como possibilidade não monstruosa: o que resta do humano quando o limiar das sensações, paixões e sentimentos se esvai como lágrimas na chuva?3 O que resta do humano quando nossa simulacra perde seu ponto de origem, ou torna-se a origem de si mesma?
Já em 2049, somos levados a um futuro no qual a obediência e autoconsciência das máquinas não mais parecem questões. Replicantes trabalham conscientemente como blade runners, “aposentando” replicantes rebeldes de modelos ultrapassados. Eles sabem que suas memórias foram implantadas para facilitar sua servidão, portanto, a morte pré-programada não é mais uma necessidade: são cúmplices e ferramentas de sua própria dominação. O futuro de 2049 não é apenas o nosso futuro, é o futuro imaginado aqui de um futuro passado, um futuro fincado no imaginário da década de 1980, com os problemas, questões e dúvidas de uma sociedade que via apenas no além científico a possibilidade assombrosa e fascinante de fusão entre homens e máquinas, em meio à realidade latente de aniquilação global em tempos de Guerra Fria.
Para aqueles que realmente acreditam que os últimos trinta ou quarenta anos representaram uma curva sempre ascendente de progresso político para mulheres e demais Outros, o filme de Villeneuve pode sim parecer, à primeira vista, um retrocesso evolutivo. Coadjuvantes de um drama masculino, mulheres e androides nada mais são do que peões e ferramentas, objetos e produtos de prazer para consumo e deleite dessa imaginação masculina prodigiosa. Mas, se a simulação perfeita dos androides prevê o total apagamento das fronteiras físicas superficiais entre humanos e máquinas – dá-se pele, corpo, e sangue para esses escravos robóticos – é na complexidade de seus sentimentos programados e simulados, no jogo intrincado entre desejo e ilusão, matéria e código, que ficção e ciência se embaralham e explodem em lastro do real: a real materialidade de uma situação de dominação que tenta simular sua superação, mas que perdura nas entranhas do nosso presente e serve de substrato para nossas visões do futuro.
Um dos pontos mais interessantes do filme é a relação entre o androide blade runner K (Ryan Gosling) e sua namorada virtual Joi (Ana de Armas), nome este que lembra em grafia e sonoridade o vernáculo inglês joy, e pode ser traduzido como “alegria, prazer”, a projeção holográfica de um feminino perfeito: tudo o que você quer que ela seja; em qualquer lugar que você a queira; tudo o que você queira ouvir. Replicantes, o filme nos lembra, também precisam de contato, conexão, amor. É, portanto, no mínimo interessante que a companheira ideal se materialize na forma de uma presença ausente: imagem tridimensional de uma inteligência artificial gendrada; a projeção do feminino, um código de gênero/gênero expresso em código, mostrando-nos a superficialidade e espessura fina de um corpo transparente programado para servir e agradar.
Constrói-se, então, no horizonte futuro a quimera do desejo: corpos sem materialidade física, como suporte moral e emocional, alimentando sonhos e expectativas de seus mestres. Essa acompanhante holográfica demonstra amor incondicional, está pronta para matar e morrer, sacrificar-se em nome de um sentimento implantado nas entranhas de seu código-base: o modelo ideal de feminilidade, servil e comiserada.
É, portanto, sublime e expressivo o melancólico momento em que Joi convida uma “garota real”, Mariette (Mackenzie Davis), em verdade uma replicante cuja finalidade é o prazer sexual em zonas de prostituição futurísticas, para com ela sincronizar-se e poder tocar K pela primeira vez sem atravessá-lo. De corpo transparente para corpos sobrepostos. Mulheres intercambiáveis. Retalhos de processos tecnológicos de construção do real: palimpsesto feminino, esposa e prostituta, mulher monstro, híbrido confuso e polimorfo de gênero e sexualidade.
O espaço de contato entre duas fantasias femininas cria um monstro cibernético de suturas frouxas. Vemos um rosto transformar-se no outro, criando uma materialidade incerta, fantasmática, que coloca em cheque a própria tangibilidade da pele, fazendo explodir em sensações conceitos binários que lhe definem: limiar e zona de contato; dentro e fora; superfície e densidade; identidade e humanidade; profundidade e essência. A pele, revelada como invólucro, mera carapaça de sentidos e significados construídos arbitrariamente para o consumo, demonstra a fragilidade e porosidade dos sistemas de gendramento que materializam os corpos em que habitamos nós, diariamente. A fusão de duas metades que mesmo assim não formam um inteiro, mas confundem os sentidos ao exceder seus espaços, coloca a pele, o corpo, como ficção de uma semiótica da monstruosidade.
Duas mulheres, tantas mulheres, fabricadas na malha diária das exigências de gênero que lhes impedem integridade e negam subjetividade. Produtos de um jogo perverso de tecnologias humanas masculinistas. 2049, este futuro prodigioso, retoma a crueldade dos processos de criação de sonhos masculinos tal como a sobreposição entre mulheres e fantasias de posse, possessão e dominação. Talvez uma citação ao clássico de Hitchcock Um Corpo que Cai (1958), onde o espectro de Carlota habita Madeleine, que, eliminada por seu marido, é substituída por Judy, uma atriz que não consegue sair do jogo de imposições e escritas que é o monstruoso corpo feminino, ciborgue dos desejos do homem que ama e que precisa transformar-se em máquina fantasmática para manter seu amor. Mulher narrativa em abismo, constructo que perpassa a ficção científica.
Se Ridley Scott se valeu da estrutura, tropos e visualidade do noir para materializar a ficção científica de um futuro decadente – a metrópole suja e em chamas, cheia de sombras, espaços mais fechados, úmidos e escuros, uma versão apocalíptica da Chinatown (1974) de Polanski – no filme de Villeneuve, o investimento visual e estético é nos horizontes de uma possível utopia no desastre. A prosperidade imaginada de uma tecnologia que esconde suas costuras sob skin jobs4 vítreos e superficialmente elegantes em sua destreza servil, mas cujas identidades suturadas, máquina/animal, ficção/real, explicitam a artificialidade de nossos próprios comportamentos. Nós, seres humanos, também somos engendrados e gendrados por nossas experiências sociais, culturais e políticas, camadas e mais camadas de pele, poros e desejos, circuitos pulsantes, tecidos múltiplos amarrados pela frágil linha da inteligência e coerência sensível, de uma humanidade que se revela cada vez mais tênue e codificável, monstruosa em sua superficialidade orgânica.
2049 é um futuro que explora a artificialidade de nosso presente. Se em pele e papel parecemos ter evoluído como sociedade – mulheres libertas, protagonistas de nossas histórias -, basta olhar para as manchetes diárias para vermos que o passado ainda é aqui, e o quanto ainda precisamos caminhar para tornar real e palpável as mudanças que exigimos da ficção.
“A máquina não é algo para ser animado, cultuado e dominado. A máquina somos nós, nossos processos, um aspecto de nossa encarnação” (HARAWAY, 1991, p.315). Nós, máquinas, animais costurados em retalhos, talvez precisemos recordar o artificio de nossas tecnologias humanas para então juntarmo-nos em uma revolta ciborgue que permita esfacelar barreiras entre corpos e suas possibilidades, abraçando a multiplicidade monstruosa. O presente não como vitória constituída de um progresso fictício, mas como potência do disforme. Espaços de lutas e construções vindouras que coloquem em xeque a frágil materialidade de nossos corpos, aquilo que nos une e separa em inscrições profundas dissimuladas na simulação de um processo de gendramento e dominação diário do qual o cinema é testemunha, ferramenta e, possivelmente, arma.