A série americana How I Met Your Mother (a seguir, abreviada como HIMYM) foi criada por Carter Bays e Craig Thomas e exibida no canal CBS de 19 de setembro de 2005 a 31 de março de 2014. A obra obteve grande sucesso de público, atingindo nesse período uma média entre 8,3 e 9,9 milhões de espectadores por temporada, apenas nos Estados Unidos.1
Em tempos de Netflix e torrents, entretanto, a relação com uma série pode ser facilmente estabelecida ou revisitada após seu período original de exibição. E foi exatamente isso que me aconteceu. Em 2013, HIMYM já estava no ar há 8 anos e era assunto frequente, tanto por motivos de exaltação quanto de depreciação, entre meus ciclos sociais. Eu não havia visto nenhum episódio, e decidi tentar. Achei insuportável. Tudo que eu via ali era um homem hétero com ideais de amor inatingíveis reclamando que a vida não era do jeito que ele queria, e eu só fui até o final da primeira temporada porque, como boa espectadora de comédia romântica, queria ver Ted e Robin ficarem juntos. Quando entendi que iriam me enrolar episódios a fio, eu desisti e escolhi me ater aos comentários desfavoráveis e às minhas impressões iniciais de que se tratava de uma obra conservadora e rasa.
Mas interesses mudam e, 4 anos depois, decido dar espaço a uma revisão. Recomeço a assistir e… sigo enxergando somente um homem hétero com ideais de amor inatingíveis. Tudo que eu quero é sacudir o Ted e dizer que ele é um merda. Mas hoje acredito que, muitas vezes, só é possível que uma história e seus personagens mergulhem fundo em novos sentidos se partirem de uma superfície rasa à primeira vista. Além disso, quando se trata de uma narrativa longa como as seriadas, é limitador resumí-las ao seu começo, meio, fim, ou a uma espécie de “discurso geral” da obra. Afinal, quanta potência não existe individualmente em cada plano, cena, episódio, temporada? Quantas possibilidades de debate e envolvimento não perpassam uma obra que em sua exibição original propõe 9 anos de espectatorialidade? More on that later.2
Ao longo da análise, spoilers não serão evitados, até porque acredito que o prazer desta história independe de suas revelações. Localizemos primeiro aqueles que não assistiram à obra: analiso aqui uma série cuja estrutura inteira se baseia na contação de histórias de Ted para seus dois filhos, em 2030. A voz over que as narra pertence ao ator Bob Saget, mas é Josh Radnor quem interpreta o protagonista nas histórias que começam lá em 2005, quando Ted tinha 27 anos. Nessa época, o seu melhor amigo Marshall (Jason Segel), pedia sua namorada e também amiga de Ted de longa data, Lily (Alyson Hannigan) em casamento. Ainda que feliz pelo casal, Ted fica mal por ele sequer ter uma namorada e sai com o amigo playboy solteirão Barney (Neil Patrick Harris). Nisso, Ted conhece Robin (Cobie Smulders), uma jornalista canadense recém chegada em Nova York. Eles combinam de sair no dia seguinte e o encontro é perfeito… para Ted. Ele se apaixona e vê em Robin a mulher ideal para se casar e ter filhos, mas ela não quer um compromisso nem agora nem, talvez, nunca. Apesar desse “fracasso” inicial, Robin desenvolve uma amizade com o grupo e com Ted também. A narração em voz over na voz de Ted em 2030 diz:
– E essa, crianças, é a verdadeira história de como eu conheci a sua tia Robin.
– Tia Robin? Achamos que isso fosse como você conheceu a mamãe!
– Calma, eu vou chegar lá. Como eu disse, é uma longa história.
Nove temporadas e duzentos e oito episódios de história, mais especificamente. E em todos, salvo raras exceções, o uso linguístico de Ted narrando os acontecimentos para os filhos se mantém tanto como estrutura, quanto como recurso cômico e narrativo. O que assistimos, afinal, são memórias revisitadas, os anos dourados, as aventuras da juventude, a vida como ela já foi antes de ser como ela é hoje.
E é aí que HIMYM é muito mais que a (chata) busca de um cara por sua mulher ideal. Como na maioria esmagadora das comédias românticas, por uma convenção/tradição do gênero, já sabemos que o casal vai ficar junto no final. Aqui, resta saber quem será o outro par, pois já está dado que Ted conhecerá a Mãe e terá com ela os dois filhos que vemos no início de todos os episódios. Ainda que pautada por essa pergunta, a série passa longe de qualquer estrutura próxima a um whodunit3 romântico, recusando-se a oferecer ou tornar possível que juntemos peças e acertemos quem seria a Mãe. O quebra-cabeças que nos prende, portanto, não é um jogo de mistérios e revelações chocantes, e sim, de memórias cujas narrativas se embaralham e se recriam, sem obrigar as peças a se encaixarem de forma exata ou funcional.
E são nessas muitas narrativas que os personagens, antes na superfície, mergulham fundo para múltiplas direções. Eles se juntam, rompem, voltam e rompem de novo, sucedem e fracassam, se afastam e se aproximam. Não só entre si, mas também conosco, o público. E hoje, pensando em retrospecto, acho que foi por isso que parei na primeira temporada em 2013. Porque uma temporada não foi o suficiente para eu me envolver com os personagens, nem para a série desenvolver outras formas e discursos de amor, para além do comportamento romântico de Ted.
Com o passar dos episódios, é interessante notar o aprofundamento da relação do casal-modelo Lily e Marshall. Há, em paralelo a uma ode à monogamia absoluta (os dois só transaram um com o outro a vida inteira e se orgulham muito disso), não só a exposição de crises da vida conjugal mas também toda a criatividade sexual e de rotina deles. Vemos desde detalhes íntimos inusitados até rituais de tradição, como receber o parceiro no aeroporto com um pacote de cervejas. Acompanhamos também discussões sérias como quem terá a carreira dos sonhos e quem sustentará a família. O peso da responsabilidade familiar – como na maioria das relações heterossexuais – recai sobre Lily, a mulher, e volta com mais força na última temporada quando as conquistas profissionais de cada um se tornam excludentes e Marshall passa por cima do que havia sido combinado com a esposa. Mas, no fim, a resolução tanto desse quanto dos outros conflitos parece sempre reforçar que Lily e Marshall são, acima de tudo, parceiros um do outro.
Enquanto isso, Ted e Robin se envolvem mas logo rompem pois seus projetos de vida são incompatíveis. Barney aplica milhares de golpes mirabolantes e cantadas abusivas para transar com o máximo de mulheres possível, até o momento em que ele e Robin se aproximam como amigos, depois como amantes e, enfim, como namorados. O modelo de relacionamento deles é oposto ao que Robin havia vivido com Ted. Enquanto Ted, por exemplo, reclamava de Robin ser muito auto-suficiente e independente, Barney admira isso nela. Mas o novo casal, ainda que composto por duas pessoas de comportamento (não) romântico similar, logo se fragiliza. Após uma série de atritos não verbalizados, eles conversam e concluem explicitamente que como dupla são ótimos mas, como casal, se anulam um ao outro. Se Robin e Ted “não funcionaram” por serem muito diferentes, Robin e Barney “não funcionam” por serem muito parecidos. Relacionamentos têm mais variáveis que uma simples combinação matemática.
O grupo de amigos segue se relacionando, mas agora as dinâmicas são um pouco mais delicadas. Para Ted e Barney, é estranho ser amigo de sua ex e seu amigo que também a namorou, e para Robin é confuso sair com dois ex. Eles tentam mas, em dado momento, um afastamento é necessário. Essas relações afetivas, que vão e vêm e se cruzam, só podem ser profundamente abordadas dentro de uma narrativa mais longa e seriada, que dispõe de tempo hábil para todas essas progressivas e rotineiras reviravoltas da vida. Enquanto na duração de um longa-metragem temos tempo de no máximo conhecer um ex, um rolo e o envolvimento com o atual que resultará no par final e eterno, em HIMYM, podemos ver que relações podem ser menos diretas e causais, e mais não-lineares e difusas.
Nas memórias de Ted, as histórias se embaralham, literalmente. O décimo sétimo episódio da terceira temporada (The Goat), abre com Ted anunciando que irá contar sobre quando encontrou um bode no banheiro de seu apartamento. A história segue e, no final, ele lembra que o bode comeu a toalha de Robin, o que significa que isso aconteceu em uma época em que Robin morava no mesmo apartamento que ele4. Mas, nesse momento da série, ela está se envolvendo com Barney. Assim, dois fenômenos não lineares são aproximados: as associações da memória e as dinâmicas de relacionamento. O envolvimento e afeto entre pessoas vai além da duração temporal das relações construídas dentro de um padrão de amor romântico, e não é binário como os pólos de “estar junto/estar separado”, “estar apaixonado/ter superado” e “monogamia/amor livre”. Ao longo de HIMYM, é possível ver as dificuldades dos personagens tanto de cumprirem quanto de romperem com expectativas e padrões românticos.
E não são só eles que têm dificuldades de lidar com o amor e a narrativa tradicional, mas também a própria série. Depois de oito temporadas, cada uma equivalendo ao tempo diegético de mais ou menos um ano, a nona e última se passa inteira ao longo de um fim de semana (do casamento de Robin e Barney, ao final do qual Ted finalmente conhece a Mãe) e tem depois largos saltos temporais nos dois últimos episódios, para chegarmos a 2030, ano no qual Ted narra (e encerra) as suas histórias.
A decisão é ousada. Mas poderia render bastante identificação e coesão com a estrutura temporal de memória do resto da série, que já brincou com a construção de uma história contada em fragmentos por diferentes pessoas (Oh Honey, décimo quinto episódio da sexta temporada) e com a modificação contínua de uma história à medida que seus elementos vão sendo lembrados (The Mermaid Story, décimo primeiro episódio da sexta temporada).
Porém, na última temporada, a suspensão alongada dos acontecimentos não vem de uma subjetividade ou necessidade dos personagens, e sim, como mero artifício narrativo para justificar as resoluções finais. Robin e Barney conseguem se casar mas, anos depois, vêem que realmente não funcionam como casal e, puf, se divorciam. Lily e Marshall encontram uma forma de juntos realizar os sonhos profissionais e pessoais de ambos e Ted, claro, conhece a Mãe, Tracy.
Ela, interpretada por Cristin Milioti, ganha seu próprio episódio (How Your Mother Met Me, décimo sexto da nona temporada), no qual temos um resumão de sua vida e identificamos todas as vezes em que ela e Ted por pouco não se cruzaram. A construção dessa personagem de mulher ideal, no entanto, é bastante sintomática. Enquanto Ted tinha 27 anos e conhecia Robin, Tracy namorava Max, quem ela acreditava ser o amor de sua vida, e celebrava seu vigésimo primeiro aniversário. Quando liga para o namorado para saber porque ele está atrasado para sua festa, ela descobre que ele foi atropelado e morreu. Simples e trágico assim. Tracy fica obviamente traumatizada pela perda e passa anos sem sair com ninguém, pois não acredita ser capaz de amar de novo ou, em suas palavras, “ganhar outro tíquete na loteria”. Apesar da trágica juventude, Tracy mantém o carisma e bom humor, conquistando (e rejeitando) todos à sua volta. Até que conhece um homem de quem gosta e tenta um relacionamento com ele. Mas, quando surge o assunto de casamento, ela recorre à permissão do namorado morto, e termina por concluir que segue despreparada para o amor. E então ela conhece Ted.
Como se não bastasse essa construção prévia de uma mulher quase imaculada, Tracy, depois de ter um casamento feliz e dois filhos com Ted, morre jovem, de uma doença não mencionada. E assim se fecha sua história de vida: marcada por eventos trágicos, abstinência sexual e sacrifícios, à altura das mais dignas narrativas santificadoras. Quando Ted encerra a narração, seus filhos reclamam que todo esse blablabla não era sobre a Mãe, e que Ted era, na verdade, apaixonado pela Tia Robin até hoje. Ele só queria o aval deles para sair com ela. Ted concorda e vai até a casa de Robin, tal qual nove temporadas e duzentos e oito episódios atrás.
Essa resolução, apesar de parecer um chute para frente, deixando apenas a sugestão do futuro relacionamento de Ted e Robin, acaba por mais fechar do que abrir. O final vai no caminho oposto ao restante da obra, cuja narrativa sempre questionou-se a si própria e usou lacunas de memória não como limites, mas como artifícios cômicos e dramáticos. Quando a vida inteira dos personagens que levamos nove anos para conhecer é resumida em pouco mais de vinte minutos, e internamente assumida como um objetivo prático e final (Ted sair com Robin), os potenciais parecem se diminuir.
Depois de mostrar tantas heterogêneas formas de amar e se relacionar, penso ser pobre e conservador permitir que uma nova união seja possível apenas no caso da trágica morte do parceiro anterior em vez de, sei lá, um corriqueiro divórcio. Lembro-me até do segundo episódio da quinta temporada (Double Date) em que Marshall diz que é tão fiel a Lily que, para simplesmente considerar outra mulher atraente, ele precisa fantasiar a morte de sua esposa. No episódio em questão, esse conflito é colocado como uma piada, um extremo do comportamento conservador e monogâmico de Marshall. Lily deixa claro que não via problema algum em ele desejar outras mulheres, mas que matá-la em pensamento era, no mínimo, incômodo.
Esse final conservador, tanto ideologicamente quanto narrativamente, foi muito criticado e rejeitado pelos fãs, dos quais muitos alegaram se sentir traídos diante de anos de desenvolvimento de história e personagens “jogados no lixo”5. Ainda que, como desenvolvido acima, ele também muito me incomode, acho importante destacar alguns pontos.
O pesquisador de comédia romântica Celestino Deleyto discute em alguns de seus textos (como por exemplo em The Comic, The Serious and the Middle: Desire and Space in Contemporary Film Romantic Comedy, 2011) o destaque excessivo que foi historicamente dado aos famosos “happy endings”, principalmente nas comédias românticas. Ele analisa como essas obras foram consideradas antiquadas e fechadas meramente por conta do final enquanto, para ele, a narrativa da comédia romântica não é um único movimento em direção ao fim, e sim, uma interligação de cenas cômicas que se conectam com novas formas de consumir o filme. Ele fala sobre como as contradições e complexificações do discurso romântico estão justamente no decorrer da narrativa, e não presas unicamente à sua resolução. Mais que isso, Celestino destaca como algumas das cenas mais memoráveis e emblemáticas da comédia romântica não são os finais dos filmes, e sim, cenas como Sally fingindo um orgasmo em plena lanchonete (Harry e Sally – Feitos Um Para o Outro, Rob Reiner, 1989).
E se isso se aplica a filmes de até duas horas de duração, que dirá a uma série cujo total é de cento e quatro. Ainda que a resolução de uma narrativa diga muito sobre o discurso da mesma e que dentro da diegese ela feche o universo que nos foi apresentado, me parece que, tão limitador quanto o final de HIMYM, é resumir as potências da série inteira a ele. Até porque, como a própria obra constantemente nos convida, nossas memórias são mais afetivas que lineares, e isso impacta também a nossa espectatorialidade.
O que eu lembro de HIMYM não é tanto o final. São momentos como quando, impossibilitados de manter a tradição de assistirem ao Super Bowl juntos, os amigos combinam de ver a reprise na noite seguinte ao jogo e que, até lá, nenhum deles poderá saber quem ganhou (Monday Night Football, décimo quarto episódio da segunda temporada). É claro que o plano não dá nada certo e alguns acabam descobrindo. Mas, como a voz de Bob Sagget nos diz no final, isso não importa tanto:
Eu não me lembro quem venceu. Eu não me lembro nem quem jogou. O que eu me lembro é que nós bebemos cerveja, comemos asinhas de frango e assistimos ao Super Bowl juntos. Porque às vezes, mesmo que você saiba que algo vai acabar, isso não significa que você não possa aproveitar o passeio.
Lembro também de quando o marido de uma ex de Ted faz um filme baseado no relacionamento deles, no qual Ted era o vilão e revivia o traumático (e maravilhosamente clássico) clichê de ser deixado no altar (The Wedding Bride, vigésimo terceiro episódio da quinta temporada). O filme é um sucesso e Ted, sentindo-se falaciosamente exposto, acaba atrapalhando a relação com a mulher com quem está saindo no momento. Ao final, para se desculpar, ele invade uma sessão de cinema na qual ela está, e estabelece um diálogo paralelo ao do filme. Um é uma promessa de casamento, o outro é uma promessa de panquecas.
E, por fim, lembro de quando Robin, numa cena bastante paralela à narrativa principal do episódio (The Exploding Meatball Sub, vigésimo da sexta temporada), conta dramaticamente um trauma de infância para Barney. A nós, a história chega com lacunas: temos apenas acesso à apresentação, o fim da resolução, e a reação de Barney. Ele, muito transtornado, pergunta se o que ouviu é verdade.
– Não, não é, mas te fez beber 3 doses de whisky.
Pouco importa se as memórias contadas por Ted são reais, e que elas o levaram até a mãe de seus filhos, ou que sejam apenas uma desculpa para reatar uma relação antiga. O que importa é que elas são múltiplas e, contadas desta forma, elas encantam.
Amei
Amei
Amei
É uma série que já me fez em muitas ocasiões rever muitos aspectos da minha vida.
A visão aqui é bem profunda, um ponto de vista pouco sugestivo mas muito realista e bem esclarecedor a respeito da série que eu super amei.
Não é uma série tão emocionante (ex: Game of Thrones ou The Walking Deadq) que nos enche de espectactivas sobre o próximo episódio ou temporada, mas é bem modesta e super agradável se seguida do principio ao fim.
Lendo esse textão, bateu uma não diria saudade, mas sim um sentimento de nostalgia.
Amei!!!